31 de dezembro de 2006

CINEFILIA: A Europa à procura de um lugar na animação

... E, subitamente, o SIN CINEMA tenta re-inventar-se de novo, quando ainda há bem pouco tempo sofreu um "lifting" para melhorar a leitura dos poucos (mas fiéis) "pecadores das imagens". A mudança, desta vez, que coincide com a entrada em grande em 2007, prende-se com uma renovação de conceito: criar ciclos semanais, apostando no facto da semana ter tantos dias quanto o número de pecados. Assim, tentarei passar a sugerir um tema que se estenderá por sete pecados visuais e uma análise mais profunda do tema escolhido. Nesta primeira abordagem "SIN CINEMA - 7ª arte como 8º pecado capital", o destaque vai inteirinho para a animação de raíz europeia, a propósito da estreia de ARTUR E OS MINIMEUS, de Luc Besson. O filme estreou-se como promessa infantil de Natal e impressionou à partida pelos valores de produção envolvidos - nada mais nada menos do que 65 milhões de euros!! As receitas, até ao momento, têm estado aquém das expecativas, até porque o "target" da obra (com vozes de Madonna, Freddie Highmore, Robert DeNiro ou Snoop Dogg) parece demasiado abaixo das produções da PIXAR, que se esforçam por criar histórias e estéticas visuais que possam ser consumidas tanto pelo avô como pelo neto. Com um brilhante tratamento digital na animação (embora combine também uma acção em imagem real), ARTUR E OS MINIMEUS carece, ainda assim, de algo mais do que a componente de fábula fantástica. A dinâmica das personagens é pobre e o sentido de humor poderia ser também mais apurado... Um chavão que, na verdade, se constata nas mais recentes tentativas do cinema europeu em fazer sombra ao apogeu norte-americano na matéria. O que se passa nas duas indústrias é, essencialmente, um défice de boas histórias e o caso europeu revela-se ainda mais vulnerável quando tenta compensar fracas premissas dramáticas com projectos oníricos de pouca densidade... Exemplos? SONHO DE UMA NOITE DE SÃO JOÃO, obra que se estreou no ano passado e que, acima de tudo, tem o mérito de representar a entrada de uma produtora luso-galaica, a Dygra Filmes, no território lucrativo das longas-metragens de animação digital (está, entretanto, a ser preparada uma nova obra em torno do herói Viriato). Aos poucos, a animação alarga-se a cada vez mais espectadores, mas nem sempre o excesso de oferta é proporcional à qualidade dos resultados finais. Nisso, os Estados Unidos continuam a liderar a técnica e o engenho narrativo. Nós, europeus, lá vamos tentando fazer frente e à procura da nossa "Amélie Poulain" animada...


ARTUR E OS MINIMEUS * *
Pecado:
Soberba
Luc Besson deixou no ar a hipótese de se retirar do cinema, mas voltou atrás para realizar a trilogia que escreveu primeiro em livros. O primeiro filme ainda se encontra em exibição nas salas e foi apresentado como a grande promessa deste Natal. Acima de tudo, trata-se de um enorme fogo-de-artifício visual, com belíssimas imagens digitais, uma história enternecedora de seres mágicos que habitam um jardim. Fora isso, sente-se que há muito dinheiro para uma fábula demasiado infantil. Realce-se, contudo, o regresso de Mia Farrow.

SONHO DE UMA NOITE DE SÃO JOÃO * *
Pecado: Preguiça
Produção luso-galaica já disponível em DVD, esta obra onírica cumpre todos os requisitos do filme europeu de animação pouco convincente: animação a precisar de ser afinada, má gestão dramática, infantilização das personagens e um universo mágico muito acentuado. Trata-se das aventuras de uma jovem por um mundo de fantasia, de forma a poder recuperar a crença do pai cientista no seu trabalho. Vale, sobretudo, pelo esforço.

BELLEVILLE RENDEZ-VOUS * * * *
Pecado:
Gula
O cinema de animação europeu não tem nada a perder com a noção de autor. Que o diga Sylvain Chomet, criador de um dos mais estimulantes filmes animados dos últimos anos, capaz de restituir um classicismo francês não só na história como no traço. As peripécias de Madame Souza para recuperar o seu neto, raptado na América, são deliciosas e revelam um imaginário visual (e musical) único. Nomeado para o Óscar de Melhor Filme de Animação.

A SUSPEITA * * * *
Pecado:
Avareza
No campo da animação com bonecos de espuma e movimento "stop motion", nós por cá (ou melhor o hercúleo trabalho de José Miguel Ribeiro) demos nas vistas com esta curta-metragem de pouco mais de 20 minutos sobre um crime "à la Hitchcock" que decorre numa viagem de comboio. Perfeccionismo artístico e boa criação de personagens, num filme vencedor do Cartoon D'Or, recentemente lançado em DVD.

PINÓQUIO 3000 *
Pecado:
Luxúria
Em filme infantil, não há certamente um explícito pecado de luxúria. Esta escolha vai para o olhar lânguido da fada desta versão futurista do conto de Carlo Collodi, que é mulata, tem formas voluptuosas e fala com sotaque crioulo... (!?) Quem se lembrou desta e de outras deturpações não tem qualquer sentido crítico e o filme falha em todas as frentes. A versão de Benigni é... (custa dizer) melhor!

O SALTA-POCINHAS * *
Pecado: Inveja
2005 foi um ano com muitas estreias de animação europeia e esta... foi só mais uma! Produção belga que se limita a retirar fórmulas de outras fábulas já existentes vai, inclusivamente, repescar a figura medieval de O Salta-Pocinhas (por cá bem melhor imortalizada em livro por Aquilino Ribeiro), a raposa espertalhona que promete salvar o reino de uma conspiração. Resta, apesar de tudo, um bom sentido de ironia para compensar uma animação digital ainda muito presa a arquétipos.

VALIANT - OS BRAVOS DO POMBAL * * *
Pecado: Ira
Por ser um filme passado na II Grande Guerra, esta obra britânica tem talvez as cenas mais agressivas dos exemplos mostrados. Mas não deixa de ser uma longa-metragem infantil bem intencionada, que recorda a importância dos pombos-correio nos cenários de batalha. De todos os sete filmes, é talvez o mais aproximado dos padrões americanos, quer pela animação mais descomplexada, quer pelo moralismo e as peripécias bem imbricadas na história. Contudo, fracassou nas bilheteiras.

28 de dezembro de 2006

Os 10 pecados cinéfilos de 2006

As listas começam a surgir, à medida que esmorecem as estreias de Natal e se aguardam as primeiras grandes estreias do ano – elas começam a chegar como é o caso de BABEL e O TERCEIRO PASSO... Como traçar um retrato do ano cinematográfico? Bem diversificado, com poucos filmes que realmente merecem ser recordados mais tarde, um excesso de animação e... cinema português débil (o único êxito considerável é mais uma adaptação de uma peça de teatro e de uma "sitcom" televisiva. O segredo, contudo, está em saber escolher. E não é assim tão difícil assinalar os 10 pecados cinéfilos de 2006. Eis a minha lista:

10 - VOLTAR
Pedro Almodóvar regressou à sua homenagem feminina e ao território dos romances de cordel com uma pitada de fantástico. Não é a sua obra mais sólida, é antes um bom regresso à sensualidade humorística.

9 - A CIÊNCIA DOS SONHOS
Embora massacrada por parte da crítica nacional, este delírio de Michel Gondry consegue desprender-se dos argumentos de Charlie Kaufman e ter asas para seguir sozinho. Onírico, ingénuo e iconoclasta é, essencialmente, um belíssimo conto de amor.

8 - JUVENTUDE EM MARCHA
Pedro Costa criou este ocaso para a sua trilogia dedicada aos personagens reais do Bairro das Fontainhas. Denso, este docudrama distorce as convenções do realismo e apresenta retratos doridos de pessoas à espera de um rumo.

7 - A LULA E A BALEIA
Além do bom exemplo de UMA FAMÍLIA À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS, o cinema "indy" norte-americano deu nas vistas neste melodrama sobre as consequências de um divórcio junto de dois jovens. Sente-se o dedo de Wes Anderson (aqui mero produtor), na atenção aos pormenores cénicos e narrativos.

6 - O MUNDO
Um parque de diversões oriental, em que todos os monumentos do mundo possuem réplicas, dá o mote a este drama crepuscular sobre vidas desmembradas numa China cosmopolita. A vida suburbana contrasta com uma visão de aparente globalização onde a tragédia acaba por se revelar.

5 - BOA NOITE, BOA SORTE
George Clooney supera-se neste belíssimo retorno à "Caça às Bruxas", desta vez centrando a óptica no jornalismo. O tratamento da imagem a preto-e-branco é de pura antologia, bem como o desempenho de David Stratheirn.

4 - ENTRE INIMIGOS
Spike Lee aliviou o seu estilo com um filme de golpe, mas Martin Scorsese, que fez o mesmo, saiu-se melhor: embora seja um "remake", este jogo dúplice de agentes infiltrados ganha pelos toques de mestre de Scorsese e pelas interpretações grandiosas de Nicholson, DiCaprio e Damon.

3 - O NOVO MUNDO
Outra das surpresas do ano, vem pelas mãos do perfeccionista e atípico Terrence Malick: uma visão crepuscular de Pocahontas, com belíssimos ambientes e uma gestão dramática de perder o fôlego. É também o filme-redenção de Colin Farrell, depois do desaire de ALEXANDER.

2 - MATCH POINT
Woody Allen ainda consegue inovar: desta vez, com um drama surpreendente, um teste às convicções humanas, rodado em Londres e ao som de ópera. Talvez por isso, esta tocante história seja o seu melhor filme nos últimos anos. Não é só uma questão de sorte... é também de génio!

1 - UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA
O cineasta das mutações orgânicas preferiu a transformação de atitude em nome de um passado que se quer obscuro. Poderá o mesmo homem ter duas faces? Viggo Mortensen é a pessoa certa para o responder, numa poderosa tese sobre a desconstrução de um monstro por detrás de uma pessoa normal. Cronenberg cria o seu mais sólido objecto de cinema, com uma direcção soberba e ainda uma participação minúscula e irresistível de William Hurt. O pecado de 2006 é claro: a IRA.

25 de dezembro de 2006

Um Natal como peixe na água

Quando, neste período, se liga um canal de televisão (o electrodoméstico mais universal neste tipo de encontros familiares), o cenário nem sempre é o mais aliciante: filmes que repetem todos os anos desde que me lembro (tipo MÚSICA NO CORAÇÃO ou E.T. - O EXTRATERRESTRE), versões manipuladas de novelas já existentes (quem se lembrou de "Morangos com Açúcar - Férias de Natal"?), galas intermináveis com música ligeira portuguesa (quase sempre tão ligeira que nunca é levada à sério, nem pela plateia que está presente nos estúdios) ou uma muita rara emissão de circo de prestígio no segundo canal. Embrenhado que estou pelos prazeres da animação, este Natal, o pequeno ecrã pertence à SIC. Não só porque escolheu transmitir À PROCURA DE NEMO no dia de hoje, como o vai fazer num horário consensual: o início de tarde. Uma excelente medida de bom gosto, já recompensada pela exibição de outros filmes de animação. Neste caso, a aposta é imbatível: trata-se da melhor animação dos estúdios Disney dos últimos anos, que parece sintetizar na perfeição a tradição das fábulas clássicas da animação, com o prodígio visual das técnicas digitais de ponta, mérito da PIXAR. Sedenta de audiências, a SIC tem o trono garantido, porque não só À PROCURA DE NEMO deve juntar a família em volta da televisão, como transmite as emoções que todos temos nestes dias à flor da pele: estar mais próximos daqueles que nos ajudam a perceber o que somos.

Pecado do Dia:
Inveja

À PROCURA DE NEMO
SIC, 14.15 * * * * *
A Pixar promete ser para o século XXI o que a Disney foi para o século XX: ser o estúdio que dita as coordenadas em matéria de animação, conquistando milhões nas bilheteiras e dando excelentes lições de como contar uma boa história. Com uma diferença: depois de alguns percalços, a Disney continua a deter a Pixar, sinal de que quer continuar a reinar neste novo século, onde tanta animação parece querer despontar (muitas vezes, mais preocupada com os cifrões do que com a novidade). À PROCURA DE NEMO é por tudo isso o melhor exemplo de como a tradição só tem a ganhar com os novos tempos. É tão perfeita a alegoria das profundezas do mar, em matéria de organização sociológica, como o traço, o movimento dos peixes, a criação de ironias (os tubarões que querem ser vegetarianos...) e a procura consistente das dimensões moralistas da fábula. Nunca como nesta longa-metragem o património da animação se combinou tão bem com as tendências visuais de ponta... E tudo a partir de uma história simples, até nem muito criativa: limita-se a um peixe-palhaço que se separa do seu pai e vai parar ao aquário de um dentista. Resta a Merlin, o pai, seguir viagem e não desistir enquanto não consegue trazer de volta o peixe que dá nome a esta obra que foi um dos maiores êxitos de animação e Óscar de Melhor Filme do género.

19 de dezembro de 2006

NA SALA ESCURA: Da plasticina para os píxeis

... Em período de festividades natalícias, também eu me rendi à animação. Não há nada a fazer: é tempo de convívio familiar e de desenhos animados. Até mesmo os adeptos fervorosos de "stop motion" Nick Park e Steve Box aceitaram produzir uma obra de financiamento norte-americano em que as doces figuras de plasticina já surgem convertidas aos prodígios do píxel. POR ÁGUA ABAIXO é o divertimento certo para este Natal, com poucos concorrentes à altura, mas já deixa saudades o lado artesanal a que associámos esta dupla. A realização coube desta vez a David Bowers (argumentista de O GANG DOS TUBARÕES), mas é o dedo da produtora britânica que sobressai na construção da história, nos diálogos saborosos e no humor cáustico. Segundo consta, a razão pela opção do digital deve-se às inúmeras cenas envoltas em água (elemento difícil de lidar com os materiais dos bonecos deliciosos da Aardman Productions) e nem tudo correu bem com esta longa-metragem: o orçamento roçou os 150 milhões de dólares e a Dreamworks fez demasiadas pressões sobre a realização. Resultado: nos próximos trabalhos, a Aardman promete voltar a caminhar sozinha. Ainda assim, POR ÁGUA ABAIXO não perdeu com estes solavancos e é um dos mais divertidos filmes de animação desde SHREK. Na verdade, neste Natal, nunca o esgoto pareceu tão apetecível...


Pecado do Dia: Soberba
POR ÁGUA ABAIXO
Nas Salas (Dreamworks) * * *
Os meios são muitos... nota-se na multiplicidade de peripécias em que se envolvem os ratos Roddy (voz de Hugh Jackman) e Rita (voz de Kate Winslet) nesta aventura pelo cano abaixo. O que parece foi que a tradicional história de Rato do Campo, Rato da Cidade foi invertida para os tempos modernos de consumismo e, mesmo nas grandes urbes, existem duas categorias de roedores: os que vivem na pompa de uma habitação e os que convivem no lodo do esgoto. Esta alegoria civilizacional funciona como uma luva para criar as mais diversas personagens e brincar com os preconceitos sociais. Se Roddy é um betinho por ter vivido sempre como animal doméstico, percebe que o mundo no esgoto pode funcionar em comunidade. Nesta fábula distorcida, devido ao ritmo incansável e ácido do humor, a moral está lá, dissimulada, e até mesmo o vilão é patético... O mais importante é a diversão e há momentos de antologia neste novo prodígio digital - as lesmas canoras, o sapo mimo, a habitação oscilante onde Rita convive com a família e algumas armas utilizadas para combater o mal (alguém pensou num pacote de natas para deter um inimigo numas claras em castelo?). Se não for levada demasiado a sério a fragilidade narrativa, POR ÁGUA ABAIXO mantém-se bem à tona enquanto objecto lúdico para todas as idades. O que é que se pode querer mais neste período de festas?

15 de dezembro de 2006

NA SALA ESCURA: Sagas fantásticas rimam sempre com Natal

... O que fazer quando não se pode estender mais a obra de Tolkien (apesar de estar já em pré-produção uma adaptação de HOBBIT) e as aventuras de Harry Potter não conseguem estrear-se com a brevidade que os grandes estúdios desejariam? Procurar potencial literário em outras sagas impregnadas de fantasia e aura medieval. No ano passado, a época natalícia foi dominada por AS CRÓNICAS DE NÁRNIA, mas o resultado foi pouco entusiasmante, motivado por bons meios mas pouca capacidade para amuderecer o ritmo onírico da narrativa e encenar condignamente as batalhas de acção. Este ano, o fantástico volta a marcar presença nas salas e ERAGON é já o candidato principal a campeão de bilheteiras no território do filme fantástico. Parte também de um êxito-surpresa literário (a obra milionária homónima do jovem Christopher Paolini) e tem todos os ingredientes para ser um êxito: histórias com dragões, efeitos especiais de ponta, um enredo pouco complexo, Jeremy Irons e John Malkovich para dar um toque de prestígio à história... e o ímpeto juvenil (mais heróico que HARRY POTTER). Cinema novo... é que nem por isso!

Pecado do Dia: Ira
ERAGON
Nas salas (Castello Lopes) * * *
Eragon (interpretado pelo estreante Edward Sleepers) vive num tempo de temor, dado o domínio territorial do vilão Galbatorix (John Malkovich, num desempenho caricatural tão secundário que roça a figuração), que aniquilou todos os Cavaleiros que lhe pudessem fazer frente. O que não contava era com um ovo de dragão que vai parar às mãos do protagonista e que promete instaurar uma nova ordem de resistência. Com esta obra, o estreante Stefen Fangmeier tem a possibilidade de se estrear no cinema pela porta do grande espectáculo. O resultado, embora pouco inventivo, é competente. Na verdade, ERAGON cumpre todos os requisitos do espectáculo, é verosímil na criação dos dragões, não se dispersa em narrativas secundárias, deixa em aberto a produção de novos capítulos e ainda apresenta um bom desempenho de Jeremy Irons, na pele do obrigatório mentor do protagonista. Magia juvenil, boas cenas de acção e ainda um minúsculo desempenho da cantora Joss Stone dão forma a mais um conto fantástico. Que só fraqueja se se considerar a trilogia de O SENHOR DOS ANÉIS como base de referência.

11 de dezembro de 2006

NA SALA ESCURA: Docudrama despedaçado

... O "timing" da estreia de JUVENTUDE EM MARCHA pode não ser o mais adequado – já se sente o Natal em todos os cantos – ou daí talvez seja o oposto: este novo "murro no estômago" de Pedro Costa alerta para os contrastes urbanos, ou melhor ilustra-os simplesmente, pelo que é até neste período de muito consumismo e suposto sentimento de partilha e união familiar que o embate com este belo e grotesco documento dividido entre a ficção e o documentário de autor (afinal, as personagens são de carne e osso, bem como os espaços onde habitam) pode ser mais forte. Um retrato denso, conduzido por Ventura, o pai de todos e de ninguém. Ou melhor, um anti-Pai Natal, que com a simples presença acaba por dar lições de humanidade a seres à procura de um rumo.

Pecado do Dia: Avareza
JUVENTUDE EM MARCHA
Nas salas (Atalanta Filmes) * * * *
O Bairro das Fontainhas, na Amadora, volta a ser o cenário desfragmentado que Pedro Costa recorreu para criar o seu ocaso de uma trilogia iniciada com OSSOS e estendida com NO QUARTO DE VANDA. Neste seu derradeiro capítulo, o desnorte mantém-se motivado pela possibilidade das personagens passarem para outras habitações, que possibilitam novas condições mas não amparam o desnorte. JUVENTUDE EM MARCHA é, por isso, uma nova poesia triste e melancólica, traduzida pelo olhar pesado de Ventura e por um revisitar tocante sobre algumas personagens (seres humanos, reais) já conhecidas. E o cineasta, que não passou despercebido no último Festival de Cannes, volta a interrogar as inquietações de pessoas à deriva sem procurar dar resposta ou ceder a moralismos. Resta uma combinação negra de drama e observação documental de poucos meios, que possibilitam ao cinema transgredir as suas noções elementares em nome de um olhar. Acima de tudo, um olhar. Despedaçado, carregado de manchas turvas, mas um simples olhar. Que se estende por quase três horas de duração. Este talvez seja o único ponto fraco de JUVENTUDE EM MARCHA, porque torna a obra mais difícil de digerir. No entanto, o toque dramático das vidas em foco, a atenção aos pormenores, a beleza-fealdade cénica tornam este um dos mais sólidos e intensos filmes nacionais. E com uma temática tão forte, nunca poderia ser fácil de digerir. E de assimilar.

8 de dezembro de 2006

Mudar de máscara como Welles

... "É preciso mudar alguma coisa para que fique tudo na mesma." A máxima ficou famosa no clássico O LEOPARDO de Visconti e é aqui apropriada para introduzir um ligeiro "refresh" no SIN CINEMA - o primeiro desde a sua fundação. O conceito, embora não estanque, mantém-se inalterado e o que se pretende, essencialmente, é que estes breves apontamentos sobre obras de todos os tempos (e disponíveis seja em cinema, DVD ou televisão) tenham uma leitura mais atraente. No fundo, seguir sugestões que, a pouco e pouco, começam a chegar dos primeiros leitores assíduos deste modesto "blogue". Ideias há muitas, tempo para as concretizar é que nem por isso... Assim, sem grandes compromissos, além de continuar a encarar a Sétima Arte como 8.º Pecado Capital (como é que eu me lembrei disto?!), tentarei identificá-las melhor. E quem sabe produzir alguns ciclos... Para já, deixo uma recomendação para este feriado de Dezembro: o quase desconhecido RELATÓRIO CONFIDENCIAL, ou a outra realização de Orson Welles em que se percebe que O MUNDO A SEUS PÉS não foi fruto do acaso, dado os pontos de contacto entre os dois filmes.

Pecado do Dia: Soberba
RELATÓRIO CONFIDENCIAL
DVD Prisvídeo * * * *
Com o título original de MR. ARKADIN, este outro retrato megalómano de Orson Welles sobre um aristocrata que não se consegue desprender do vício do poder transmite bem a ideia de que Welles conseguiu, de facto, criar um estilo, elevando sempre o seu cinema para um nível técnico de profundidade e, respirando, já nesta etapa algo densa da sua carreira, as influências que Espanha teve no seu percurso (atente-se nas belíssimas sequências criadas durante as procissões religiosas). Porém, em RELATÓRIO CONFIDENCIAL, o magnata do título é assumidamente um vilão que consome a energia de quem o circunda e acaba por se render ao poder de forma mais perversa do que o célebre Citizen Kane. O que se pretende é o jogo de manipulação psicológica (bem construído sob a premissa de um pedido de Arkadin para que se investigue a sua vida, enquanto vai eliminando as "peças" pelo caminho), com a elipse narrativa habitual e uma composição exageradamente esculpida por Welles (aqui, já com dificuldades para levar os seus projectos de cariz imagético-literário a bom porto). No final, percebe-se que "o monstro tem pés de barro" e, em vez de "Rosebud" Mr. Arkadin possui um vínculo familiar que o pode fazer cair por terra. Mais um ponto alto numa carreira em que o cinema era força, fusão de cena com subtexto. E RELATÓRIO CONFIDENCIAL é um manancial de duplos sentidos, uma história que coloca a moral em cheque em nome de mais uma poderosa "persona". Ou máscara, se se preferir.

4 de dezembro de 2006

Quanto pesam os sonhos?

Há filmes que nos custam admitir que gostamos, que entendemos onde o realizador quis chegar, que percebemos as suas motivações e o seu estilo. Mas que sofre de um arraso global da crítica especializada e que nos leva a sentir vergonha pela empatia gerada connoso. Digo vergonha, porque na maioria das vezes há uma sintonia versátil entre aquilo que admiro e as estrelas que vejo afixadas na coluna de um jornal. Não sou detractor das classificações da imprensa, admiro os discursos cinéfilos de quem antes de eu nascer já se deliciava com os "westerns" de John Ford ou os planos aproximados e afectivos de Bergman (eu próprio tenho tentado contribuir para esse tipo de reflexão e crítica cinematográfica), mas é preciso relativizar o seu peso, até porque quem já viu muito surpreende-se com pouco. Não é obrigatoriamente um defeito, dado que apura o faro, obriga a domesticar o olhar para as "nuances" que verdadeiramente importam, mas leva a que se perca a espontaneidade de um visionamento. E é tão boa a visão ingénua de uma obra, esquecendo-nos que há uma câmara por detrás de cada cena e que tudo o que nos parece novo e imediato é o reflexo de um laborioso trabalho de argumento e realização (um filme envolve sempre, pelo menos, o empenho de duas centenas de pessoas...!). A Ciência dos Sonhos, de Michael Gondry, tem a capacidade de nos rejuvenescer por ser certeiro no modo como oscila entre a realidade e o mundo onírico de Stéphane (Gael García Bernal). A principal crítica negativa que o filme tem sofrido deve-se ao modo como Gondry, mestre da arte do "videoclip", adapta dinâmicas técnicas e visuais para o seu filme deste género estilizado, mas Gondry em vez de reduzir o seu cinema a um simulacro de um teledisco, parece que o abre para outros rumos impregnados de fantasia. E quem não gosta de sonhar numa sala escura?

Pecado do Dia: Soberba
Para quem viu e se deliciou com as deambulações pelas várias dimensões da
consciência de Jim Carrey em O Despertar da Mente, o desafio dramático proposto por Michel Gondry é mais fácil de aceitar. Desta vez, já não há um argumento alucinante de Charlie Kauffman mas antes um projecto de raiz pensado e alinhavado pelo próprio Gondry, que se revela um excelente inventor de cinema. A história de um jovem francês que, insatisfeito com o seu ofício de ilustrar calendários, começa a deixar-se dominar pela ilusão e vai construindo uma paixão genuína pela sua vizinha (Charlotte Gainsbourg), é um conto surrealista que nos propõe um desafio semelhante a A Senhora da Água de Shyamalan. A forma como ambos os filmes rompem com o cinema convencional exige uma predisposição do espectador para se deixar ir pela ilusão e, neste caso, acompanhar as consequências algo esquizofrénicas de um amor que cresce ao sabor da imaginação. Os interlúdios de fantasia, propostos por Gondry, são de uma beleza estética avassaladora e, embora excessivos, trazem contornos algo infantis a um amor do qual se espera o melhor dos finais. Pela capacidade de nos fazer sonhar, Gondry constrói um interessante novelo narrativo feito de afectos e consegue tirar partido do talento de Gael García Bernal para elevar o filme. Espera-se apenas que, no futuro, Gondry não se circunscreva a este género e consiga transpor a sua veia criativa para outros planos. A Ciência dos Sonhos é, por isso, um filme de autor para este novo século, que se constrói a partir de muitas linguagens (sejam elas visuais ou, até mesmo, verbais). * * * *

24 de novembro de 2006

NA SALA ESCURA: A última tentação de Scorsese

Martin Scorsese deixou um aviso: Entre Inimigos será a sua derradeira grande obra, ou melhor, a sua super-produção ao sabor dos caprichos de uma indústria que ainda não o soube compensar com aquilo que já lhe é de direito há um bom par de filmes: a estatueta dourada para Melhor Realizador. Será desta? A questão fica no ar e faz sentido porque esta obra, que representa o regresso de Scorsese ao universo de "gangsters" tem o condão de um trabalho sólido de autor: o enredo elaborado, os planos criativos, as reviravoltas necessárias para manter o interesse ao longo de mais de duas horas e meia e... um encontro há muito esperado. Não, não é o "frente-a-frente" entre Leonardo DiCaprio (sucessor de DeNiro como protagonista das obras mais recentes do cineasta) e Matt Damon. É antes o cruzamento de talentos (como é que nunca ocorreu antes?!) entre Scorsese e Jack Nicholson. Esta dupla faz faísca, não só porque Scorsese percebeu que Nicholson é o contraponto necessário à dupla de infiltrados, como o próprio actor parece deixar-se ir nos caprichos da sua inesgotável fonte de criatividade dramática. A sua personagem é digna de antologia no género de filme de "gangsters" e engrandece uma obra que, embora se trate de um "remake", consegue ter alma própria e um pulsar genuíno para uma proposta de novo cinema de autor. E nunca Scorsese foi tão negro. Será que é desta o Óscar? Nicholson pode já preparar mais uma garantida nomeação...

Pecado do Dia: Ira
Apesar da acção de Entre Inimigos ser em Boston, o dedo mágico de Scorsese para contar uma intrincada história de falsos polícias e criminosos mantém a mesma convicção e verve narrativa dos bons tempos de Tudo Bons Rapazes. Esta nova incursão pelo universo do crime, despojada dos artifícios e excesso de meios explorados nas duas anteriores obras do cineasta, revelam que o âmago de "contador de histórias" negro se mantém inalterado e o jogo de golpes e contragolpes segue a sua missão com grande eficácia. As personagens de DiCaprio (esforçado, no mínimo) e Damon (excelente composição mais perversa do que o costume) caminham pela dicotomia não só de posição face à lei mas enquanto elos identitários. Nesta cadeia de personalidades ambíguas, há ainda um Nicholson como vilão perfeito e uma mulher (Vera Farmiga) envolvida nos dois pólos que configuram o peso central de Entre Inimigos. Tudo bate certo até o final inesperado. Embora reincidindo em temáticas já por diversas vezes exploradas na sua carreira (e de partir de uma base dramática que, para todos os efeitos, não é sua), Scorsese voltou aos velhos tempos e mais profundo e complexo do que nunca. * * * *

22 de novembro de 2006

Morreu o cineasta dos mosaicos narrativos

Altman filmou até ao fim. O seu último trabalho, A Prairie Home Companion, foi rodado já com o cineasta em estado muito débil e com a supervisão de Paul Thomas Anderson para que, no caso do declínio do mestre, o jovem realizador de Magnólia pudesse assumir as rédeas do projecto. Mesmo assim, Altman concluiu aquele que seria o seu derradeiro projecto (morreu ontem, aos 81 anos) e que respeitou, mesmo assim, a tendência narrativa das suas obras mais famosas: mosaicos intensos, interpretados por um leque de grandes estrelas (sempre desejosas de entrarem num novo projecto de um realizador que tinha a interpretação como um dos valores superlativos do seu cinema), uma atenção especial à música e, no fundo, várias vozes para transmitir uma mensagem. Deixa saudades? Certamente que sim, por ter construído (salvo algumas excepções, como o estranho Popeye com Robin Williams...) muitos dos mais sólidos modelos narrativos e questionando sempre as potencialidades do cinema comercial. Nunca recebeu um Óscar como Melhor Realizador, apesar de diversas nomeações, mas a Academia compensou a negligência com uma estatueta dourada de homenagem na última edição (onde Altman lançou algumas farpas no discurso, mostrando estar já com uma aparência frágil, dilacerada pela doença). Obras inesquecíveis? M*A*S*H*, Short Cuts - Os Americanos ou o mais recente Gosford Park. E, claro, O Jogador, obra de transição para um modelo de reabilitação cinematográfica, depois de uma década de 80 mais vulnerável. Mas o próprio Altman era um jogador da indústria do cinema, sabendo fintá-la nos momentos certos para filmar sempre segundo os seus valores. E a câmara de Altman era inteligente como poucas...


Pecado do Dia: Soberba

Tim Robbins é o rosto perfeito para incarnar a personagem dúplice que protagoniza este passeio obscuro pela "feira de vaidades" de Hollywood. Trata-se de Griffin Mill, um produtor de cinema que começa a ser chantageado por um argumentista cuja história foi negligenciada. É assim que Altman constrói um interessante novelo, com paragens obrigatórias em diferentes pontos de uma indústria a olhar para o seu umbigo. O Jogador é, por isso, um jogo de egos, de frases memoráveis ("A única coisa que quero é ver-me livre dos realizadores e actores para ver se chego a algum lugar neste filmes") e um sinal de vitalidade narrativa. O "cameo" final de Bruce Willis e Julia Roberts é tão estranho quanto essencial para dar forma a este caleidoscópio de vícios onde há lugar para todos e mais alguns. * * * *

16 de novembro de 2006

Uma família às avessas com... a religião

A comédia espanhola é um género a considerar, embora o preconceito de ver cada filme de "nuestros hermanos" tomando por referência a fase mais desbragada de Pedro Almodóvar possa comprometer a análise e o desfrute de viver cada cena com um sorriso. A última surpresa neste campeonato pouco expressivo tive-a por intermédio de um lançamento recente em DVD de Querida Família, sátira da dupla Teresa de Pelegrí e Daminic Harari que aborda as repercussões ideológicas de quem herdou genes palestinianos e israelitas, embora toda a acção se desenrole num bairro urbano de Barcelona. Na verdade, Querida Família é mais uma comédia familiar (ou melhor, sobre a inclusão de um namorado na família da amada) que combina o ritmo frenético das "sitcoms" televisivas com os efeitos humorísticos de outras obras mais mediáticas, como Um Sogro do Pior. Porém, aqui as ambições narrativas são mais complexas e os efeitos na moldura familiar mais estridentes também. O que não inviabiliza uma consequente "lufada de ar fresco" na construção de personagens à beira de um ataque de nervos. Rir do próximo é, no fundo, reconhecer nos outros as nossas imperfeições. Ou aquelas que conhecemos mas que voluntariamente evitamos.

Pecado do Dia: Ira

Há um lado negro na história de Querida Família que surpreende: a vida de Rafi (Guillermo Toledo) não vai ser a mesma depois de ir jantar com a família da namorada, de origens israelitas ao contrário deste professor universitário que se orgulha de ser palestiniano. Com este ponto de partida, que dá azo às mais desvairadas peripécias, tudo o que tem para correr mal, acontece mesmo e a família da sua namorada foge a sete pés das convenções: a mãe vive amargurada, o avô é cego e tem traumas de guerra, a irmã é ninfomaníaca e o pai... leva com sopa congelada na cabeça e pode estar à beira da morte. Na verdade, a premissa da ruptura religiosa é só um efeito secundário nesta sátira extrema aos laços afectivos e, apesar de nem sempre o filme conseguir escapar das armadilhas da caricatura, consegue assumir-se como entretenimento ligeiro e constante. Escapando da natureza de seriado televisivo e encenação humorística graças à filmagem ágil. E é como se costuma dizer: "De Espanha, nem bons ventos, nem bons casamentos!" * * *

13 de novembro de 2006

Os vértices clássicos do melodrama

Quando acaba de estrear a versão cinematográfica do romance O Perfume, de Patrick Süskind, veio-me à ideia a problemática da adaptação literária para o grande ecrã. Como traduzir com sucesso as imagens que nos vêm à mente quando se lê um livro? Pela natureza dúplice que o efeito da escrita gera no leitor, o resultado acaba (quase) sempre por ser redutor – ainda que não tenha visto este último trabalho dirigido por Tom Tykwer, a crítica generalizada parece não ter descoberto a "fragrância" deste filme. Porém, mais do que seguir a corrente antes de comprovar o efeito da adaptação (que concorre com a exigente expectativa da leitura...), lembrei-me de um caso relativamente recente em que o filme iguala a fonte literária, senão mesmo a supera... Escrito por Graham Greene, O Fim da Aventura é um romance de tonalidades melodramáticas muito acentuadas, lembrando os jogos de ciúme dos anos 30/40. É para lá que a acção recua cronologicamente e nos mostra um estranho triângulo amoroso entre uma mulher e o seu marido insípido que pede a um amigo para contratar um detective que a siga. O que se passa é que esse amigo é o amante a perseguir... A premissa é inventiva, mas O Fim da Aventura tem muitas mais linhas dramáticas para desfiar, incluindo o peso de uma promessa e as subsequentes consequências religiosas, mesmo para quem não acredita no que quer que seja. Em 1999, Neil Jordan levou a história ao ecrã, numa sumptuosa adaptação, onde todas as subtilezas descobertas na obra literária foram transpostas para cinema. Eis, um clássico moderno ou uma nova roupagem para o melodrama digno herdeiro de Casablanca. Aqui as letras são só o ponto de partida e, afinal, a imagem até consegue condensá-las num instante.

Pecado do Dia: Luxúria

Especialista em criar atmosferas perturbantes (afinal ficou famoso por Entrevista Com o Vampiro e Jogo de Lágrimas), Neil Jordan preferiu a chuva imensa e uma belíssima fotografia esteticamente datada (nomeada para um Óscar, em 2000) para construir um dos mais profundos melodramas dos últimos anos. O Fim da Aventura explora em doses generosas os dilemas do trio protagonista, que transcendem rapidamente a condição aparentemente redutora dos seus papéis - graças a Ralph Fiennes, uma calorosa e brilhante Julianne Moore e Stephen Rea, a acção condensa muito bem os efeitos emocionais de uma história de amor que acaba dilacerada por uma promessa e as suas repercussões ideológicas. Vive-se o medo da guerra, mas os conflitos que se sentem são interiores e afectivos. No meio de uma perfeita estrutura dramática, Neil Jordan aprofunda também de forma artística a relação carnal do par Fiennes/Moore, em cenas de nudez e sexo filmadas com sensibilidade e sensualidade extremas. Neste labirinto de enganos e luxúria, pressente-se o estilo de Graham Greene e até algumas apropriações anexadas nesta adaptação ao grande ecrã (como parte do final) parecem fluir na perfeição e não traem o património litérário. E o romantismo à antiga ressuscita no cinema... * * * * *

6 de novembro de 2006

NA SALA ESCURA: Um fresco histórico de perder a cabeça

Recebeu elogios e apupos na estreia em Cannes e percebe-se porquê: a visão que Sofia Coppola realizou sobre a vida de Marie Antoinette não é a da mais convencional abordagem histórica porque se centra nos pequenos "nadas" de que era feita a vida num palácio em vésperas de Revolução Francesa. O estilo já o conhecemos de Lost in Translation: difuso, interrogador e algo niilista. Porém, com Marie Antoinette a realizadora deixa-se dominar pela opulência, os rituais historicamente datados e dá uma perspectiva moderna do universo controlado da realeza. Kirsten Dunst veste a pele na perfeição porque possui o rosto de menina obrigada a virar rainha, sem contudo perder o ímpeto de quem se vê subitamente espartilhada perante um meio feito de múltiplas linguagens e muitas ironias (principalmente observadas perante os padrões sociais de hoje). E é precisamente esse estilo de filmar, entre o fascínio pelo requinte monárquico e a ironia pura, que a obra convence. Mais do que profundidade histórica, Coppola preferiu o falso deslumbramento.O que não é de todo negativo. É apenas uma forma de filmar diferente para a maioria das obras que se estreiam no circuito comercial de cinema. Mas que começa a ser norma num estilo de uma jovem realizadora a querer (com aparente desinteresse) o prestígio cinéfilo.

Pecado do Dia: Soberba

Como contar a história de Maria Antonieta sem cair na tentação de mostrar o desenlace mais
mediático da sua história? Sofia Coppola não precisa dele... Em vez da guilhotina, a realizadora mostra o destino da jovem rainha de uma forma simbólica numa belíssima cena passada numa das varandas do Palácio de Versalhes. Este é só um detalhe narrativo de uma cineasta que continua a dar cartas num "cinema comercial alternativo" (se é que tal categoria existe). E já se começam a denotar marcas no seu estilo, corroboradas poe este opulento Marie Antoinette: o recurso a banda sonora "rock" nostálgica (para criar um assumido efeito de desenquadramento com o ritmo de vida na segunda metade do século XVIII), uma forma despojada de enquadrar a acção, a aposta nos silêncios e diálogos lacónicos e o olhar para as distâncias e particularismos entre seres humanos – como se comprova na relação mais protocolar do que afectiva entre Antoinette (Dunst) e Luís XVI (Jason Schwartzmann, num registo bem conseguido de sexualidade subtilmente ambígua). Na verdade, o filme é um fresco excessivo sobre a ostentação da realeza e parece ter "pouco sumo" quanto às implicações históricas das figuras em causa. Isso pouco importa aqui... Pode soar a desperdício (as críticas negativas aproveitam muito este argumento), mas é bom observar a ousadia de retratar a figura de uma rainha mais humana, frágil e desenquadrada do que com os facilitismos heróicos. Muita opulência, para pouco, dirão alguns. O suficiente para transmitir as emoções invisíveis mas genuínas que Coppola tão bem caracteriza. Destaque ainda para as presenças de Judy Davis e Marianne Faithful que, no meio de tanto luxo, pouco mais são do que figurantes... O que resulta numoutro sinal de ousadia artística ou, para os detractores, mais uma deixa para o desperdício artístico desta obra. * * *

3 de novembro de 2006

"Hip hop"... hurra!

É um facto: as músicas "hip hop" e "R&B" transformaram-se em música pop por excelência (e símbolo da nova geração MTV), lançando o rock para circuitos menos mediáticos, aspecto que lhe deu novo fôlego em matéria de reconhecimento. Basta olhar para as tabelas de "singles" mais vendidos, as vastas listagens da Billboard ou, à portuguesa, perder um minuto a ver o formato estafado do programa "Top+". Pessoalmente, aprecio as batidas, o ritmo de um ou outro compositor da área – acho que Timbaland, Neptunes, Will.I.Am têm feito excelentes trabalhos na transformação de artistas desinteressantes em intérpretes de música sofisticada, plástica e ritmicamente elaborada. Exemplos? O último disco de Nelly Furtado é uma boa surpresa, a estreia a solo de Pharrell Williams também, sem contar com o novo peso de artistas, já no campo da "neosoul", como Jill Scott, Maxwell, Amp Fiddler, John Legend, Erykah Badu ou Anthony Hamilton. Isto para dizer o quê? Que a música negra norte-americana, inicialmente de "ghetto", ganhou fama, estilizou-se e o cinema obviamente que se interessa pelo fenómeno. Mediaticamente, a visão de Curtis Hanson do fenómeno Eminem (felizmente, descolando-se dele...), em 8 Mile, foi o primeiro passo sério na análise deste género musical, centrando-se nos duelos de improviso de rimas cortantes entre dois ou mais intérpretes que sentem o peso da marginalidade no corpo e depois o traduzem por palavras. 50 Cent tentou também transpôr a sua ascensão no grande ecrã mas deu um tiro no pé, mesmo convocando um dos mais sólidos cineastas contemporâneos, Jim Sheridan, que, com Get Rich Or Die Tryin', conseguiu a proeza de realizar o seu filme menor. O último caso que chamou a atenção da Academia (venceu o Óscar de Melhor Canção no ano passado) é Hustle & Flow, retrato amargurado de um proxeneta que sonha ser artista respeitado de "hip hop". Um sonho que pode ser conseguido pela ordem inversa das coisas. Mais um conto desencantado, já disponível em DVD, que merece ser visto com atenção. Embora musicalmente pouco entusiasmante, é mais uma pista para se compreender a cultura musical que partiu da rua. Com todos os seus preciosismos e desigualdades.

Pecado do Dia: Ira

Djay (soberbo Terrence Howard, justamente nomeado para a estatueta dourada de Melhor Actor graças a uma complexa composição que oscila entre a marginalidade e a busca da redenção pelas rimas) é um homem desenquadrado, misógino, que usa o corpo das mulheres que vivem consigo para ganhar dinheiro. O seu modo de vida promíscuo e rude é, desde logo, descrito no início de Hustle & Flow, num aparente monólogo... A mensagem que passa (e passará ao longo de todo o filme) é performativa: "A vida de um chulo não é fácil!" O realizador Craig Brewer tira partido da amargura do protagonista, para construir uma espécie de "taxi driver" do "hip hop" (perdoe-se a heresia...) que quase vê a luz quando encontra um colega de infância, agora produtor, e a quem convence ajudá-lo a construir um disco. Os meios são escassos e a imaginação também, mas é a verborreia de Djay e a sua noção de ritmo que vão predominar. Mas o "sonho americano" não chega da forma esperada e a vida dura será mesmo assim até ao fim... Hustle & Flow é um murro no estômago e nas convicções do drama social. Musicalmente é estereotipado, mas vive mais pela aspereza dos diálogos, até ao clímax final, embricado na história sem exageros. Um olhar interessante para as novas tonalidades do "hip hop", que demora a desprender-se da retina... * * *

27 de outubro de 2006

NA SALA ESCURA: Um "road movie" disfuncional

Todos os anos há filmes-surpresa: aquelas obras de poucos meios que, à partida, ninguém dava nada por elas, mas que o efeito "boca a boca" entre os espectadores que têm a sorte de a ver acabam por gerar bilheteiras generosas e críticas irrepreensíveis. Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos (prefiro muito mais o título original Little Miss Sunshine) lidera as preferências nesta categoria (se é que os "filmes-surpresa" se podem considerar uma categoria...) e tem todas as razões para isso: começou como um projecto marginal de uma dupla de realizadores em estreia, com um naipe de actores interessante mas nenhum deles da primeira divisão (só talvez Steve Carrell, que se tem afirmado como uma das mais recentes estrelas da comédia ligeira norte-americana), deu nas vistas no Festival de Sundance e acabou por gerar 50 milhões de dólares nas bilheteiras. Por cá, a estreia foi discreta, embora a Lusomundo se tenha esforçado por vender o filme como mais uma comédia desbragada e algo acéfala, como é norma na maioria dos produtos do género que ganham mais destaque nas salas dos "multiplexes" - o título português é um esforço nesse sentido. E já se fala de Óscares... o de Argumento Original e Melhor Actor Secundário para Alan Arkin (o avô "muito à frente" desta família desintegrada) ou Steve Carrell são talvez os pontos mais fortes. Vai uma aposta?

Pecado do Dia: Avareza

Filme independente que se preze, a palavra contenção não é ponto fraco, mas ponto de honra. A dupla Jonathan Dayton e Valerie Faris tirou partido disso mesmo para criar uma das histórias mais surpreendentemente cómicas que os estúdios de Hollywood nos ofereceram nos últimos anos. Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos começa como retrato até algo dramático de uma família disfuncional, com uma mãe desesperada, um pai perdedor, um filho que fez voto de silêncio e uma doce menina que sonha participar num concurso de beleza para crianças até aos seis anos (!!). É justamente esta personagem que arrasta toda a família numa longa viagem de carrinha para chegar a tempo ao espaço do próximo desfile de "misses". Rapidamente, o filme transforma-se num "road movie" em alta velocidade, com excelentes números cómicos (as constantes avarias da camioneta e o episódio do hospital são de antologia... bem como o momento final passado no palco do já referido desfile). Simples e bem intencionado, Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos funciona pelo ritmo, os diálogos inteligentes e uma excelente caracterização de cada uma das personagens desta família bizarra. Mas não assim tão distante da nossa. * * * *

23 de outubro de 2006

NA SALA ESCURA: A imaginação ao poder (das imagens)!

Custou mas foi! Estava difícil arranjar um tempinho para ir ver ao cinema a última experiência visual de M. Night Shyamalan. As críticas eram mistas, o "feedback" pouco receptivo, as bilheteiras desencorajadoras, mas o património artístico do realizador contemporâneo que melhor conseguiu reinventar o género "thriller" (sem com isso corromper a tradição do "film noir" e as intrigas hitchcockianas) foram mais fortes... Com A Senhora da Água, Shyamalan levou ainda mais longe as suas ambições enquanto contador de histórias negras e é pelo desafio meio infantil (o pecado que Spielberg demorou a desprender-se) deste objecto estranho que consegue voltar a marcar pontos. Para quem estava à espera do habitual "twist", das premissas realistas, dos jogos claustrofóbicos omnipresentes em O Sexto Sentido ou Sinais deve ter ficado desiludido, porque é na componente alegórica (já relativamente expressa no soberbo A Vila) que tudo se volta a jogar, num desafio que só entra quem tiver apetência pelas histórias fantástica de embalar. Shyamalan teve de romper com a Disney para levar este filme até ao fim - aquele que mais o motivou desde o início de uma intocável carreira - e conseguiu com a Warner Brothers um novo fôlego, apesar de tudo fiel ao seu espírito de "mago do cinema moderno". A Senhora da Água é um notável desafio, desequilibrado a espaços, mas capaz de recuperar uma aura onírica no grande ecrã que, desde que Peter Jackson lançou a sua visão da trilogia de Tolkien, parecia estar circunscrita a sucedâneos digitalmente estimulantes, mas narrativamente pobres. Lúdica, esta obra nunca poderia ser consensual, mas é salutar o efeito-surpresa que ainda consegue lançar neste início de século. Para quando um novo jogo imagético? Aguarda-se nervosamente...

Pecado do Dia: Inveja

Tudo se passa num condomínio fechado (a forma como este espaço é filmado convoca piscadelas de olhos à Janela Indiscreta de Hitchcock, referência máxima para quem abraça o "thriller" com tamanha convicção) e o ponto de partida é, mais uma vez, o do realismo desencantado. Subitamente, o inesperado acontece, deixando confuso o responsável por este espaço habitado por pessoas diferentes, numa espécie de Torre de Babel contemporânea. O onírico atravessa-se no real e dá-nos a conhecer um universo paralelo que só entra quem acredita, quem se deixa dominar pela imaginação, quem possui uma veia criativa. A narfa, estranha criatura personificada pela aparente beleza ingénua de Bryce Dallas Howard, é o elo de ligação entre mundos e que vai mudar a vida de quem precisa de uma orientação superior (a conotação religiosa também não é inocente). A partir daqui tudo pode acontecer e... acontece mesmo. Pouco recomendável para pessoas pouco dadas a fantasias, A Senhora da Água é uma imensa ilusão, complexa e infantil, como um conto de embalar. Tem criaturas fantásticas, emoção, heróis e vilões e um final surpreendente. Paul Giamatti tem mais um grande desempenho e o próprio Shyamalan transfigura-se mais do que o costume no grande ecrã. Como todas as fábulas místicas, a obra é excessiva, mas neste registo movediço tudo é possível. É só acreditar. * * *

13 de outubro de 2006

Boa notícia em dia de azar

É sexta-feira 13, mas sou pouco dado a superstições. Por isso é de louvar a notícia que confirmei esta manhã ao abrir um diário de referência. A Fundação Calouste Gulbenkian vai exibir 50 grandes filmes no ciclo "Como o Cinema Era Belo" já a partir de 4 de Novembro. Escolhida por Bénard "Sr. Cinemateca" da Costa, a programação é heterogénea, numa mescla equilibrada de grandes clássicos e obras contemporâneas de autor, com escolhas irrepreensíveis capazes de nos fazerem acreditar no cinema enquanto arte da imagem como contadora de histórias. Com três sessões (14.30, 18.30 e 21.30) apenas aos sábados e domingos, o ciclo "Como o Cinema Era Belo" pode constituir um excelente programa de fim-de-semana. Mais detalhes sobre esta boa notícia - e toda a programação que não esquece Welles, Ford, Dryer, Minelli, Curtiz, Cronenberg, Spielberg ou Shyamalan? Basta ir a http://www.gulbenkian.org/filmes.asp.

Pecado do Dia: Soberba

A obra-prima escolhida para dar o pontapé de saída deste ciclo inesperado mas de aplaudir tinha de vir de um mestre intocável e o escolhido foi o do "western", John Ford, pois claro. O Vale Era Verde, de 1941, escapa à definição de fita de cowboys do mesmo realizador de O Homem Que Matou Liberty Valance ou Forte Apache, porque se centra na vida da classe mineira numa América ainda a crescer em dificuldades. O retrato familiar é tocante e as referências à autoridade paterna, à rebeldia juvenil e ao esforço do trabalho são filmados com o dom realista que o cineasta também explorou, por exemplo, em As Vinhas da Ira. Vencedor do Óscar de Melhor Filme no seu ano de produção, é um projecto conservador mas mesmo assim sintomático de um cinema pedagógico e emocionalmente exemplar. * * * *

10 de outubro de 2006

Os génios morrem à fome

Uma das razões para o fascínio do cinema é a sua capacidade em surpreender sempre. Ou seja, quanto mais embrenhados estamos no reconhecimento de cinematografias, estilos,"nuances" de movimentos e tendências cronológicas, logo vem uma obra baralhar tudo por estar esquecida, um facto que nunca tínhamos ouvido falar ou até mesmo a noção de que quanto mais se conhece mais vontade se tem em ir mais longe e perceber o quão pouco se conhece. Apesar de ter ainda muitas falhas no meu património de referências cinematográficas, esta sensação ocorreu-me há poucos dias, quando dei por mim a relembrar uma outra faceta de Orson Welles, o colossal "Citizen Kane", que entrou na indústria de cinema como potencial génio, com apenas 24 anos de idade e não se conseguiu desviar do estigma de que "o génio morre à fome", terminando cedo a sua carreira nos clássicos e perdendo-se nas últimas (e penosas...) décadas da sua vida, marcadas por projectos impossíveis e inacabados, além de prestações sofríveis como actor -- ficou famosa a sua "voz off" num anúncio televisivo de comida para cão, como símbolo da sua decadência artística... Por isso, causou-me surpresa a obra misteriosa, de 1971, chamada Malpertuis. Neste conto surreal sobre homens e deuses, Welles tem um breve mas intenso desempenho como o patriarca de uma estranha família que, horas antes da sua morte, se reúne para conhecer o destino da sua herança. Mas nesta obra de Harry Kümel o efeito de perturbação é mais forte e a aura envolvente desta história oscila entre o sobrenatural e a reflexão cínica sobre as relações familiares... E assim se descobrem pequenas pérolas que, apesar de algumas fragilidades, valem enquanto objecto-símbolo de uma carreira e reflectem muito bem a queda do mito de Welles, aqui gordo e envelhecido, a sucumbir ao seu engenho.

Pecado do Dia: Soberba

Candidato à Palma d'Ouro de Cannes em 1971, Malpertuis apresenta-nos um universo onírico, que se reflecte na própria montagem expressiva, para nos contar a epopeia de Jan (Mathieu Carrière) no contacto com a sua estranha família, dividida com a morte do seu patriarca e o compromisso de aceitar as condições para ficar com uma avultada herança. Aqui respira-se uma atmosfera propositadamente densa, de contrastes, com momentos de profundo ruído visual para depois apostar em planos mais intimistas. Nada é ao acaso, apesar de alguns cortes abruptos no seguimento do filme. Mas, em Malpertuis, tudo se entranha pelo teste imagético às noções de divino/humano e que culmina num dos finais mais bizarros da história do cinema recente. Iconoclasta e perturbante, esta co-produção alemã e francesa conta ainda com Welles, esse "monstro" que se quer imortal, aqui numa alusão profunda à sua fase mais decadente. * * * *

7 de outubro de 2006

NA SALA ESCURA: Um documentário sem nuvens

É um género que tem dado cartas e a projecção que o DocLisboa (a começar dentro de duas semanas...) tem todos os anos na programação cultural da capital prova que não é só um feito internacional. O documentário reinventa-se, atravessa as fronteiras do seu género e dos moldes como é apresentado na televisão (não esquecer que, hoje em dia, existem canais temáticos que passam ininterruptamente este produto audiovisual) e chega com cada vez mais ambição ao cinema. Exemplos mais mediáticos? A Marcha dos Pinguins, Fahrenheit 9/11 ou Os Friedman. Pelos exemplos referidos, facilmente se percebe que também as suas estruturas narrativas fogem ao convencional e levam a questão da impossibilidade de ter objectividade mesmo num produto de princípios jornalísticos muito ao extremo. Caso-limite desta constatação? O relato autobiográfico Tarnation, de Johnathan Caouette, que se assume como documentário por partir de pistas reais - fotografias, filmagens antigas, etc. - mas aproveita uma intencionalidade de conflito de identidade do realizador-protagonista para abrir espaço à confissão negra. Longe deste registo, a "aula de ecologia" em forma de filme de Al Gore, Uma Verdade Incoveniente, que ainda se encontra em exibição nas salas nacionais, é uma interessante proposta sobre como apresentar um tema complexo como o aquecimento global sem cair na monotonia da exposição da tese. O resultado final surpreende porque a obra oferece ao espectador uma forma performativa de aprender, num exercício de oratória com recurso à tecnologia surpreendente. O tema em questão é só por si alvo de preocupação, mas o modo como este filme de Davis Guggenheim se encontra construído promete um futuro bem mais risonho para o documentário nas salas de cinema do que para o nosso planeta.

Pecado do Dia: Ira

Quem vê Uma Verdade Inconveniente não sai da sala muito bem disposto. O planeta está a reagir
à intervenção humana e ao descuido quanto à emissão de gases poluentes. Al Gore - que ganha uma segunda vida depois da derrota eleitoral com George W. Bush - explica tudo e expõe as suas ideias recorrendo à tecnologia audiovisual e o resultado final é o de um documentário com uma componente performativa muito forte, capaz de, mesmo assim, deixar no ar a ambiguidade sobre o percurso político de Al Gore e os interlúdios emocionais que são usados em Uma Verdade Inconveniente para aliviar a retórica sobre a problemática da poluição ambiental e as suas repercussões no futuro. O êxito de mais esta experiência audiovisual (rendeu uns surpreendentes 23 milhões de dólares) é de salutar porque apesar da ira de Al Gore contra a o desinteresse da população em geral e da administração norte-americana em particular para a questão do ambiente ser sincera, existe ali um fundamento de esquerda que gera alguma inquietação pela forma de aparente falsa submissão como se vai integrando na acção... Mas quando é o ambiente que está em jogo, o discurso ganha o seu peso independentemente dos pressupostos ideológicos. Al Gore vence esta partida pelo tom escorreito e David Guggenheim pela filmagem televisiva a querer entrar no cinema. Os géneros audiovisuais misturam-se e evitam que o discurso do documentário se torne "nublado" . * * *

2 de outubro de 2006

Sociedade "da abundância" em registo vazio

No outro dia vi em DVD, e pela primeira vez, uma das obras que mais deu nas vistas no ano cinematográfico passado, com direito a nomeações no Festival de Cannes e tudo. Porém, Os Edukadores sofre de um grande problema, à parte da sua vontade excessiva de querer ser alternativo. É convencido... E não há nada pior do que um filme que quer parecer mais intelectualmente interessante do que na verdade é. O cineasta Heins Wangartner cria um triângulo amoroso interessante, formado por três jovens desenquadrados com os valores sociais dos meios cosmopolitas de hoje (até aí tudo bem...). O pior é quando simplifica essa convicção, através de um rapto atabalhoado de um suposto burguês que tramou a vida à jovem protagonista. Daí perde-se o ímpeto revolucionário e a chama crítica de muitas das fragilidades que as democracias consumistas de hoje estimulam. E Os Edukadores consegue ser mais cansativo do que uma tarde de novelas da SIC. Na verdade, esta obra alemã possui pontos fortes - a crueza da forma de filmar é incisiva - mas desperdiça uma vontade de ter um olhar introspectivo. É, acima de tudo, um olhar vazio.

Pecado do Dia: Soberba

Em Os Edukadores, a crítica à sociedade da "abundância" resulta num discurso politizado, cheio de pequenas nuances revolucionárias, mas... vazio. Esta metáfora política, que surge numa co-produção germano-austríaca estilizada, apresenta-nos Jule, Peter e Jan, três jovens que se envolvem romanticamente, e que partilham o gosto por passarem mensagens de ordem contra o progresso através de pequenos actos de rebeldia. É precisamente o triângulo amoroso que se forma, e que vai ganhando espessura com o desenrolar da história, que corrompe as motivações do filme e tornam este candidato à Palma D'Ouro do ano passado do Festival de Cannes, um projecto que quer chegar longe mas que... não chega a lugar nennhum. E é por isso que termina como começa, sem as personagens terem crescido, apesar de andarem em deambulações ocas, corrompendo o exterior porque... sim. O DVD lançado agora pela Atalanta possui alguns extras interessantes, mas não chegam para dar mais vitalidade a um relato também não muito estimulante sobre a juventude culta mas sem referência das sociedades ocidentais. * *

30 de setembro de 2006

NA SALA ESCURA: A poesia do caos, cinco anos depois

Muita gente tem questionado a razão por que um realizador que reincide no "politicamente incorrecto" se deixou submergir por uma tragédia como o 11 de Setembro de 2001 e rodou um filme patriótico, melodramático, centrado na experiência poderosa de dois membros da Autoridade Portuária de Nova Iorque, que conseguiram escapar com vida à queda das Twin Towers. Oliver Stone já dissecou o Vietname por três vezes, o assassinato de JFK também. Fez a apologia da violência, denunciou regimes políticos repressivos na América Latina e traçou o percurso de Nixon. O seu cinema é, naturalmente, de grandes causas, porque este cineasta (talvez o melhor do cinema contemporâneo "mainstream") usa as imagens - manipula-as com requinte, seria melhor dizer... - para delinear retratos profundos, quase sempre fracturantes. Depois do desaire de Alexandre, O Grande (ainda ninguém percebeu muito bem por que é que este épico falhou, apesar de ambicioso e esteticamente interessante, mas, acima de tudo, vazio...), Stone foi mexer num trauma recente da história norte-americana e, pelas consequências globalizantes de hoje, mundial, usando menos intervencionismo crítico perante a situação em redor, mas centrando-se no limiar da vida/morte de dois homens, presos durante longas horas nos escombros do World Trade Center. Homem de esquerda, Stone poderia ter criticado a postura de Bush, elaborado rebuscadas teorias da conspiração ou colocar um olhar mais azedo numa obra que chega aos ecrãs cinco anos depois do dia em que o mundo mudou. E que colocou nas nossas vidas, directa ou indirectamente, um receio, uma suspeita, um olhar de soslaio para alguém de cor diferente... Stone procura com este soberbo World Trade Center a redenção, não só com os espectadores que possam ter ficado desiludidos com as suas últimas experiências cinematográficas, mas com uma Nação que só agora começa a retratar os seus maiores traumas no ecrã. Numa era de tecnologia de ponta e multi-informação, quanto tempo demora a olharmos de frente para um tragédia, a ficcioná-la ou até mesmo a rirmo-nos dela? Cada vez menos... Com World Trade Center, o que Stone consegue fazer é levar o espectador a jogar as mãos na consciência para questionar os limites da maldade humana.


Pecado do Dia: Avareza

Contenção é a palavra de ordem que domina a visão de Oliver Stone sobre a tragédia do 11 de Setembro de 2001. World Trade Center prefere usar as imagens televisivas sobre a tragédia do que encenar em grande escala o embate dos dois aviões nas torres mais elevadas de Nova Iorque. A primeira colisão só é visível numa sombra, a outra é anunciada por telefone. O efeito é perturbante e revela a mestria de Stone em brincar com as convicções do espectador, porque apesar deste não voltar a ver no ecrã o que já conhece de cor, toma o embate como garantido, justamente pelas imagens que viu na televisão aquando da tragédia. Depois, há que centrar um monumental acontecimento na vida de dois homens, bombeiros, que ficam soterrados nos escombros da primeira torre. É aqui que se entra na poesia do caos, na tragédia de quem é inocente e vê a sua vida corrompida por um enorme colapso. As personagens de Nicolas Cage e Michael Peña fazem-nos acreditar que há esperança e conseguem envolver o espectador quase sem se mexerem na maior parte da acção - o esforço de Cage é mesmo de louvar... Depois vêem-se as suas famílias, espectadoras de uma tragédia que não compreendem. Oliver Stone usa um microcosmos social, mas que aborda as várias nuances imediatas do 11 de Setembro de 2001. Não optou pela análise política, pelas repercussões estratégicas internacionais ou pelo medo do terrorismo. Fez antes um poderoso melodrama, que faz recuar este acontecimento à sua essência, a dos sentimentos. E ajudou-nos a perceber que, muitas vezes, quando assistimos a uma tragédia pelos média, esta já vem filtrada. Com World Trade Center temos a ilusão de ter estado mais perto de um colapso. Pelo menos, o sentimento parece chegar até nós. Será que Oliver Stone se rendeu ao seu país e aceitou os seus inúmeros defeitos? Não. O que não quer dizer que não possa filmar belíssimos casos de vida. * * * *

27 de setembro de 2006

As imagens também dançam

Por motivos diversos (muito trabalho, mudanças, contenção de custos e cansaço apesar da semana de férias há bem pouco tempo...), tenho estado quase de costas voltadas para o cinema em sala escura. Um pecado que prometo compensar um dias destes... Solução imediata para este mal? Consultar a pilha de DVDs que tenho lá por casa (e que consegui reordenar novamente por ordem alfabética, devido a mudança necessária) e escolher ao acaso um filme que me pode marcar o serão pelas melhores razões. Billy Elliot não foi escolha minha... mas ainda bem que o revi, no outro dia, à noitinha, na companhia da pessoa certa. Revi-o pela quarta ou quinta vez e chego cada vez mais à conclusão que este musical inglês (dos produtores de Quatro Casamentos e um Funeral ou O Diário de Bridget Jones) é mais um manual de uma adolescência à descoberta de si própria pela dança do que um mero seguidor dos cânones do musical dançado. E, no final, deu-me vontade de dançar ao acaso, como nas crises de criatividade do jovem protagonista (excelente Jamie Bell). E logo eu, que não sou fã de musicais - há Moulin Rouge, Toda a Gente Diz Que Te Amo e pouco mais do que os clássicos Chapéu Alto ou Serenata à Chuva. O que torna Billy Elliot excepcional é a sua capacidade de restituir o espírito rebelde e ingénuo da juventude, transportando a música para a história como escape para uma realidade mais crua. Esta inserção nada poética e até abrupta é absolutamente performativa. E dá vontade de ver de novo.

Pecado do Dia: Inveja

Foi uma estreia certeira, digna de causar muita inveja pela consistência de uma primeira obra:
Stephen Daldry, hoje ainda mais respeitado porque após Billy Elliot construiu o elenco feminino mais sólido dos últimos anos em As Horas, surpreendeu toda a gente com uma história simples, passada numa Inglaterra provinciana, dilacerada por greves de mineiros durante a governação de Margaret Tatcher, em que um jovem rapaz que deveria praticar boxe, se deixa seduzir pelos movimentos graciosos do ballet. É uma história contada em jeito de Patinho Feio - o número final de O Lago dos Cisnes sintetiza a analogia na perfeição - com a música a ilustrar as imagens com uma imensa comoção. Mais do que isso, há a veracidade dos desempenhos, seja Jamie Bell a construir uma personagem em mutação psicológica permanente, ou uma Julie Walters como a professora de ballet cheia de frustações e exigências. Este conto que é um valente sopro para auto-estimas mais fragilizadas mostra que as imagens também dançam. Sejam as do ecrã ou as que se colam na nossa cabeça. * * * * *

19 de setembro de 2006

Jornais à procura de um lugar ao sol

E, subitamente, o mercado jornalístico entrou em polvorosa devido à estreia de um semanário com nome de tablóide britânico que, desde o primeiro número, assume que não cede a promoções e espera, em poucas semanas, tornar-se líder do seu sector. Mas alguém acredita que, verdadeiramente, possa fazer mossa ao "saco de plástico"? Há uns meses diria que não, hoje com o "lusco-fusco" gerado dou o largo benefício da dúvida. A estreia foi, de facto, em grande, com um visual arejado (talvez demasiado tabloidizado no que concerne ao caderno principal), muitas ideias e um descomprometimento que já há alguns anos fazia falta. Mas onde está o suplemento de cultura? A boa edição fotográfica? O "Sol" é jovem e ambicioso e precisa apenas de limar umas arestas. A sua entrada no mercado só pode ser louvável, até porque obrigou o "Expresso" a mudar de visual e a perder o quase monopólio dos semanários (depois, gerou um dano colateral: o encerramento há muito anunciado do "Independente", um jornal que guardo num cantinho privilegiado da minha memória). No meio desta picardia, importa não esquecer que, mais do que projectos em constante renovação, o jornalismo precisa de deixar de ser preguiçoso, escrito sempre a partir da secretária, menos dependente das agências externas e procurar histórias próprias. Toda a gente sabe disso, mas como investir quando as vendas caem todos os dias e os gratuitos ganham terreno a cada nova semana? O que é certo é que o jornalismo está a mudar a sua essência com uma rapidez estonteante e, parece-me, que no futuro a informação será cada vez mais um bem "de borla". Este paradoxo será interessante de observar de perto. Muitas vezes, longe da visão saudosista do grande ecrã.

Pecado do Dia: Avareza

Neste período de convulsão jornalística, apeteceu-me recuar às origens, às aulas académicas de jornalismo e à figura de um certo professor de sotaque norte-americano que me deu a ver pela primeira vez, como o cinema de meios escassos e múltiplas ambições deu cartas há mais de 60 anos no olhar atento sobre o jogo de influências que rodeia a imprensa. Apesar de algo datada, a comédia O Grande Escândalo, de Howard Hawks, é um excelente exemplo de como os meandros jornalísticos podem ser os mesmos do cinema clássico. Claro que há um olhar romântico e uma caricaturização excessiva do par protagonista, Cary Grant e Rosalind Russel, em verdadeiro rodopio para conseguirem a "cacha" sobre um condenado à pena de morte. Exemplo perfeito do género "screwball comedy", O Grande Escândalo" apresenta uma guerra dos sexos ambígua, críticas à honestidade do repórter sem escrúpulos, mas acima de tudo, transmite o sentimento genuíno de prazer que a profissão de jornalista comporta. É uma relação de amor-ódio, que invade muitas vezes a esfera pessoal, onde o mérito se negligencia, mas onde, no final, tudo acaba por ter o seu sentido. O mestre Howard Hawks move-se neste meio com a profundidade com que abordou o melodrama ou o western. Ficou famoso em Hollywood por isso mesmo, por uma perfeccionista versatilidade. Neste caso, teve um dos seus pontos altos, criando uma obra-mestra para a comédia e um tratado anedótico sobre as perversidades de uma profissão que, embora hoje muito mais dependente da tecnologia, mantém os níveis de inconstância e adrenalina. Para quem lhe veste verdadeiramente a camisola. Depois há sempre o desabafo da personagem de Rosalind Russel para a de Cary Grant: "Now, get this, you double-crossing chimpanzee, there ain't going to be any interview and there ain't going to be any story. (...) I wouldn't cover the burning of Rome for you if they were just lighting it up. If I ever lay my two eyes on you again, I'm gonna walk right up to you and hammer on that monkeyed skull of yours 'til it rings like a Chinese gong! ." * * * * *