31 de agosto de 2006
Pausa para Marrocos
Pecado do Dia: Preguiça
É o que se pede neste curto período de férias, apesar de, em território novo, pouco dar para descansar com a vontade de ir à procura do mundo que se desconhece. Marrocos é uma terra fértil, até como cenário para bons filmes. Que dizer do remake que Alfred Hitchcock dirigiu em 1956 de um filme seu (ainda no período britânico da sua carreira), O Homem Que Sabia Demais? Inicia-se com James Stewart e Doris Day a passearem-se por Marraquexe, num mercado agitado por comércio de rua, onde se dá um misterioso crime. Neste caso, Marrocos é apenas uma encenação prolífica para uma deliciosa conspiração que só o génio de Hitchcock conseguia concretizar, mas dá uma clara noção da multiplicidade de estilos, cores e dispersões culturais que atravessam Marrocos. Atente-se na cena da viagem de autocarro e na sequência passada num restaurante marroquino em que o casal protagonista adensa as suas suspeitas de que o desaparecimento do filho é apenas a ponta de um longo novelo. O Homem Que Sabia Demais é um dos clássicos mais exuberantes de Hitchcock, criado com meios de encher o olho, uma belíssima fotografia (que assenta como uma luva no exotismo de Marraquexe, onde decorre toda a primeira parte) e um final célebre que envolve um crime e uma orquestra - numa brilhante simbiose de som e imagem. Depois, há ainda o tema Que Sera, Sera, cantado por Doris Day e que acabaria por vencer o Óscar de Melhor Canção em 1956. Este clássico, que passa em Setembro no ciclo "Hitchcock na Esplanada" da Cinemateca, não é talvez a referência mais óbvia quando se pensa em Marrocos no cinema. Na verdade, we always have Casablanca... * * * *
28 de agosto de 2006
Cinema português "falha" na TV
Pecado do Dia: Ira
O que terá passado pela vontade de Mário Grilo - um dos mais interessantes teóricos do cinema vivos - em colocar uma série de personagens fechadas numa caverna forçada é um mistério (talvez houvesse uma tentativa de actualizar a metáfora de Platão, mas que foi completamente desdenhada). O que é certo é que, em A Falha, as personagens andam à deriva. Trata-se de um grupo de oito velhos amigos de escola que se reúnem muitos anos mais tarde e percebem que esse período lhes moldou a personalidade e existem uma série de assuntos por resolver. Na segunda metade do filme, há uma ruptura súbita, porque os protagonistas ficam enclausurados num acidente numa pedreira e o descalabro emocional avança sem avisar. É um jogo de ira, de violação psicológica desconexa, que desequilibra uma obra que nunca se consegue impor em matéria dramática. Resta um bom espectro de personagens e actores - Alexandra Lencastre, Rita Blanco, Rogério Samora, Adriano Luz ou Teresa Roby (no seu último papel em cinema) Mas não é assim que o cinema português se consegue aproximar do público... **
24 de agosto de 2006
NA SALA ESCURA: A maldição do filme do meio
Pecado do Dia: Preguiça
Se há um aspecto que o primeiro capítulo de Piratas das Caraíbas conseguiu impor foi uma das mais deliciosas composições dramáticas de um herói pouco convencional, à semelhança de Indiana Jones. O pirata Jack Sparrow colou-se à pele de Johnny Depp que, com este filme de aventuras, conseguiu provar finalmente ao grande público que é um excelente actor de comédia, capaz de arriscar nas interpretações, neste caso criando uma hipótese de "mimo" para o século XXI. O que se passa é que neste segundo capítulo, Piratas das Caraíbas: O Cofre do Homem Morto, o realizador Gore Verbinski dá prevalência à diversão pura e dura, aos efeitos especiais de ponta, aos diálogos desconexos, às coreografias de luta excessivas, às reviravoltas narrativas desprovidas de sentido e aos seus vilões (apesar das muitas fraquezas da história, o vilão Davy Jones é talvez o ponto mais interessante desta sequela). Para trás fica Jack Sparrow, o casal Will e Elizabeth, uma intriga sustentada e uma ideia de entretenimento com fundamento. Na verdade, O Cofre do Homem Morto deixa tudo em suspenso, explora mal a introdução da figura do pai de Will e é, por vezes, tão tonto (como acontece na extensa sequência passada na ilha deserta) que chega a embaraçar o espectador. Apesar de tudo, a noção de espectáculo não está ausente e há uma vontade em quebrar alguns constrangimentos do primeiro filme - a ambiguidade da relação entre Elizabeth e Jack Sparrow é ambiciosa perto do final do filme, o monstro marinho é uma boa ideia mas desperdiçada... O que parece é que este O Cofre do Homem Morto foi inteiramente feito para encher os cofres necessitados da Disney. O que esperar de 2007? * *
21 de agosto de 2006
NA SALA ESCURA: O herói que poderia ser pássaro ou avião
Pecado do dia: Soberba
Apesar de durar quase duas horas e meia (qualidade que parece fundamental para um filme se assumir como épico), Super-Homem - O Regresso é vertiginoso, tem poucos momentos mortos, uma estrutura familiar complexa e um vilão exageradamente cruel que, apesar de pouco profundo, permite a Kevin Spacey exercer o seu cinismo habitual (e irresistível) em doses de número circense próximos do de Jack Nicholson no primeiro Batman de Tim Burton. Desta vez, o tempo passou e quando Clark Kent (Brandon Routh, a fazer esquecer sem convencimento a memória de Christopher Reeve) regressa ao "Daily Planet" percebe que Lois Lane (Kate Busworth) refez a sua vida, é casada e tem um filho. O pior é que Lex Luthor dá novos sinais de vida e pretende criar um espaço só seu. A seu lado está uma bem trabalhada Kitty (Parker Posey, com visual à Wanda Stuart, revela para os mais distraídos que é uma excelente actriz de comédia) e uma megalomania que nos lembra que esta é uma história de super-heróis com as habituais doses de cosmogonia. As cenas de acção são brilhantes - tanto a inicial com um avião a alta velocidade como a do barco -, contrastam com os voos deslizantes do herói com Lois, em momentos de envolvimento romântico. No final, Bryan Singer cumpre a função de actualizar o herói para o novo século, que regressa com o mesmo fôlego de um Homem-Aranha ou um Batman. Não, não é um avião nem um pássaro, é um ícone do entretenimento moderno a mostrar que ainda está vivo... * * * *
16 de agosto de 2006
A identidade, essa noção desconhecida
Pecado do Dia: Avareza
Ainda ao lado de Mia Farrow, Woody Allen construiu uma pequena obra, com uma contenção de meios impressionantes, mas reveladora do seu estilo desconstrutor da identidade. Aqui esta noção é levada ao extremo e assume contornos de fábula, dado que Zelig (Allen) é uma personagem que literalmente se metamorfoseia em função do universo exterior, anulando-se completamente. O seu caso - "cientificamente" espantoso - é apresentado como aberração à semelhança de "Homem-Elefante". É então que entra em cena Mia Farrow na pele da psicanalista que se oferece para entender o bizarro episódio contado em forma de lenda e apresentado segundo os moldes do documentário televisivo dos tempos a preto-e-branco, com imagens granulosas e tudo. Os efeitos especiais são enternecedores por serem tão comedidos, as mutações do protagonista têm, muitas vezes, efeitos perversos de crítica política (a transformação de Zelig em judeu é bom retrato disso mesmo). Mas é a identidade que está em jogo, essa noção complexa e que seria, mais tarde, explorada por Woody das mais diversas maneiras. Em Zelig, o extremo faz sentido e o cineasta que melhor retrata Nova Iorque parece fazer jus à noção de "persona", termo grego de onde vem o conceito de "pessoa" mas cujo sentido original é "máscara". * * * * *
14 de agosto de 2006
Idiossincrasias da Palma D'Ouro
Pecado do Dia: Ira
O cineasta Ken Loach constrói o seu Brisa de Mudança como um complexo mosaico sobre o absurdo da guerra, testando as convicções humanas de quem mata pela indepêndencia de um pedaço de terra. Ao centrar-se na Irlanda dos anos 20, que luta contra a invasão britânica, cria um retrato denso em que a violência era cometida com a inexorabilidade da Inquisição medieval. Pode parecer, a espaços, grotesco e maniqueísta, mas há um realismo incómodo e manipulador que, apesar de desconfortável, se encaixa na mensagem pacifista que se pretende passar. O actor Cillian Murphy lidera um elenco intocável de homens movidos por convicções que as levam até às últimas consequências. Apesar de demasiado cru e nem sempre muito objectivo, Brisa de Mudança é tocante, tem uma belíssima fotografia e faz-nos perceber que o cinema também é um jogo expressivo que tanto pode ser um entretenimento aprazível como produtor de um nó na garganta do espectador. A guerra dos anos 20 por um pedaço de terra é cruel. Mas, mais de oitenta anos depois, as interrogações mantêm-se. * * *
11 de agosto de 2006
Na Pré-História já existiam épicos
Pecado do Dia: Inveja
A ideia de Annaud, que se iniciou no cinema com menos de 20 anos e que sempre demonstrou vontade em experimentar novas tonalidades visuais e dramáticas, é de génio, tão ambiciosa quanto inverosímil para o início da década de 80, segundo os produtores que demoraram a avançar com o projecto. Por isso, só se pode sentir inveja de Annaud que constrói, nesta odisseia Pré-Histórica algo bizarra mas muito emocionante, uma espécie de "cinema-verité", se é que se pode assumir como realista a visão dos homens de há 80 mil anos com base essencialmente em relatos científicos. A Guerra do Fogo funciona e faz-nos acreditar no cinema como manual de História, capaz de partir de uma aventura entre três amigos de uma tribo que vão à procura da chama, uma ferramenta tão útil quanto as armas de caça ou as peles dos animais para criar vestuário. A fluidez com que Annaud gere a ficção com o documento científico é de louvar, ainda para mais em quase hora e meia sem diálogos. Mas para quê, se tudo se pode expressar com um gesto, um som ou um jogo de planos? O DVD recentemente lançado, que resulta de uma parceria entre a FNAC e a Costa do Castelo, possui ainda extras a reter como o "trailer" e um documentário sobre o fenómeno de um pequeno filme europeu estranho, que acabou por ser um êxito mundial em 1981 e conquistou até o Óscar para Melhor Maquilhagem. O resto é História. * * * *
9 de agosto de 2006
NA SALA ESCURA: Dreamworks vs. Pixar? KO para a primeira
Pecado do Dia: Preguiça
Animais da floresta, depois da hibernação outonal, acordam estupefactos ao descobrirem que uma imensa cerca verde lhes cortou o habitual arvoredo sem limites. Na verdade, a civilização chegou ao espaço onde habitam uma tartaruga, um texugo ou um esquilo (personagem nervosinha que é talvez a mais interessante, apesar de tonta e secundária) e estes têm de aprender quais são as vantagens do mundo cosmopolita. Apesar de trazer consigo uma mensagem ambiental interessante, Pular a Cerca é preguiçoso na construção da acção e bate em todos os lugares comuns. Filme menor, que entretém mas que não tem aura de clássico. * *
5 de agosto de 2006
NA SALA ESCURA: O tempo é quando um homem quiser...
Pecado do Dia: Preguiça
O reencontro há muito que estava prometido: depois de fazerem faísca dentro de um autocarro desregulado em Speed - Perigo a Alta Velocidade, e depois dele se ter baldado a nova aventura alucinante na sequela desnecessária do êxito que os ajudou a revelar aos dois, Keanu Reeves e Sandra Bullock voltam a fazer par romântico no grande ecrã. Mas, desta vez, em vez de bombistas e perseguições, temos uma história de amor leve e soalheira, que possui um motivo de interesse suplementar: o facto de brincar com as coordenadas temporais, dado que ela se encontra em 2006 e ele em 2004. O que confunde tudo é o momento em que ambos encontram uma caixa do correio que funciona como portal, permitindo-lhes a correspondência entre duas realidades temporais diferentes. Às tantas, ele definiu-lhe o passado, porque no presente ela contactou com ele, apesar de já o ter conhecido antes devido ao facto de agora o estar a conhecer. O problema é o futuro... ela pode mudar-lhe a vida e virem a conhecer-se no futuro dele, apesar dele a já ter visto. Para isso, ele precisa de esperar dois anos (a disparidade temporal que os separa...) e ela apenas um dia. Confusos? Em A Casa da Lagoa tudo parece mais simples e bem alinhavado, mas sai-se com a sensação de que algo escapa. O realizador Alejandro Agresti prefere alimentar uma história serena de amor por correspondência e consegue-o com engenho, apesar de serem as brincadeiras com o desfasamento temporal que melhor resultam. Depois, há uma Sandra Bullock a levar o filme às costas porque Keanu Reeves dá-se melhor nas cenas de acção do que num envolvimento amoroso (continua tão medíocre actor como antes). Bullock acerta no tom do filme e dá-lhe veracidade. De resto, A Casa da Lagoa parece que quis ser um grande filme romântico que não teve coragem (nem tempo...) para o ser. * *
2 de agosto de 2006
NA SALA ESCURA: O divórcio como reencontro com o cinema
Pecado do Dia: Inveja
É este o sentimento que se tem quando se vê a forma como Noah Baumbach conjuga as repercussões afectivas de um divórcio com o despertar da adolescência. E traça o retrato de dois jovens sem hesitar em revelar os seus momentos de intimidade e os seus rituais de descoberta. O realizador, que se vê ter-se inspirado muito pelo estilo perfeccionista e cénico de Wes Anderson, afirmou que A Lula e a Baleia tem um grande alicerce auto-biográfico. E isso pressente-se... Mas é impressionante como mostra a subjectividade que cada um dos pais (excelentes Jeff Daniels e Laura Linney) tem - nenhum deles é modelo de paternidade, mas haverá pais ideais? A riqueza dramática (aparentemente niilista) de A Lula e a Baleia causam inveja porque a simplicidade parece nunca antes ter sido descoberta. E pode servir de lição para a maioria dos telefilmes "casos da vida" e para uma ou outra experiência emocional que rapidamente cede a moralismos. Ninguém é perfeito, só nos resta procurar um bocadinho de lucidez. E de conforto. * * * *
1 de agosto de 2006
Manual anti-neura em forma de disco
Pecado do Dia: Soberba
O realizador Stephen Frears, que esteve no ano passado a dar uma lição de cinema na Gulbenkian (e onde, justamente, foi exibido este filme), gosta de experimentar todos os géneros cinematográficos, parecendo, em cada um deles, um mestre de subtilezas e ciente de uma noção profunda de estilo. No âmbito da comédia ligeira, Frears nunca tinha dado grandes pistas, mas, com Alta Fidelidade, prova conhecer todos os segredos do género e cria uma profunda e respeitadora adaptação da obra de Nick Hornby. Tudo está no sítio certo e, a espaços, John Cusack fala para a câmara à semelhança de Ally McBeal, porque esta comédia é mais televisiva do que outra coisa. Ainda assim, o entusiasmo digno de "sitcom" de culto que provoca é delicioso e Alta Fidelidade é o filme pós-adolescente mais ligeiro e mais "cool" de se adorar de todos os tempos. Está tudo lá: os vícios, os defeitos, os hobbies, os encontrões com o coração, as mulheres, o desejo de fazer listagens de tudo e mais alguma coisa e... a música. Que reflecte um bom gosto sem mácula. Depois... depois há Jack Black em início de carreira num dos desempenhos secundários mais divertidos de todos os tempos. Basta ver a sua entrada em cena na loja de discos onde trabalha. Dá para esquecer? * * * *