24 de novembro de 2006
NA SALA ESCURA: A última tentação de Scorsese
Pecado do Dia: Ira
Apesar da acção de Entre Inimigos ser em Boston, o dedo mágico de Scorsese para contar uma intrincada história de falsos polícias e criminosos mantém a mesma convicção e verve narrativa dos bons tempos de Tudo Bons Rapazes. Esta nova incursão pelo universo do crime, despojada dos artifícios e excesso de meios explorados nas duas anteriores obras do cineasta, revelam que o âmago de "contador de histórias" negro se mantém inalterado e o jogo de golpes e contragolpes segue a sua missão com grande eficácia. As personagens de DiCaprio (esforçado, no mínimo) e Damon (excelente composição mais perversa do que o costume) caminham pela dicotomia não só de posição face à lei mas enquanto elos identitários. Nesta cadeia de personalidades ambíguas, há ainda um Nicholson como vilão perfeito e uma mulher (Vera Farmiga) envolvida nos dois pólos que configuram o peso central de Entre Inimigos. Tudo bate certo até o final inesperado. Embora reincidindo em temáticas já por diversas vezes exploradas na sua carreira (e de partir de uma base dramática que, para todos os efeitos, não é sua), Scorsese voltou aos velhos tempos e mais profundo e complexo do que nunca. * * * *
22 de novembro de 2006
Morreu o cineasta dos mosaicos narrativos
Pecado do Dia: Soberba
Tim Robbins é o rosto perfeito para incarnar a personagem dúplice que protagoniza este passeio obscuro pela "feira de vaidades" de Hollywood. Trata-se de Griffin Mill, um produtor de cinema que começa a ser chantageado por um argumentista cuja história foi negligenciada. É assim que Altman constrói um interessante novelo, com paragens obrigatórias em diferentes pontos de uma indústria a olhar para o seu umbigo. O Jogador é, por isso, um jogo de egos, de frases memoráveis ("A única coisa que quero é ver-me livre dos realizadores e actores para ver se chego a algum lugar neste filmes") e um sinal de vitalidade narrativa. O "cameo" final de Bruce Willis e Julia Roberts é tão estranho quanto essencial para dar forma a este caleidoscópio de vícios onde há lugar para todos e mais alguns. * * * *
16 de novembro de 2006
Uma família às avessas com... a religião
Pecado do Dia: Ira
Há um lado negro na história de Querida Família que surpreende: a vida de Rafi (Guillermo Toledo) não vai ser a mesma depois de ir jantar com a família da namorada, de origens israelitas ao contrário deste professor universitário que se orgulha de ser palestiniano. Com este ponto de partida, que dá azo às mais desvairadas peripécias, tudo o que tem para correr mal, acontece mesmo e a família da sua namorada foge a sete pés das convenções: a mãe vive amargurada, o avô é cego e tem traumas de guerra, a irmã é ninfomaníaca e o pai... leva com sopa congelada na cabeça e pode estar à beira da morte. Na verdade, a premissa da ruptura religiosa é só um efeito secundário nesta sátira extrema aos laços afectivos e, apesar de nem sempre o filme conseguir escapar das armadilhas da caricatura, consegue assumir-se como entretenimento ligeiro e constante. Escapando da natureza de seriado televisivo e encenação humorística graças à filmagem ágil. E é como se costuma dizer: "De Espanha, nem bons ventos, nem bons casamentos!" * * *
13 de novembro de 2006
Os vértices clássicos do melodrama
Pecado do Dia: Luxúria
Especialista em criar atmosferas perturbantes (afinal ficou famoso por Entrevista Com o Vampiro e Jogo de Lágrimas), Neil Jordan preferiu a chuva imensa e uma belíssima fotografia esteticamente datada (nomeada para um Óscar, em 2000) para construir um dos mais profundos melodramas dos últimos anos. O Fim da Aventura explora em doses generosas os dilemas do trio protagonista, que transcendem rapidamente a condição aparentemente redutora dos seus papéis - graças a Ralph Fiennes, uma calorosa e brilhante Julianne Moore e Stephen Rea, a acção condensa muito bem os efeitos emocionais de uma história de amor que acaba dilacerada por uma promessa e as suas repercussões ideológicas. Vive-se o medo da guerra, mas os conflitos que se sentem são interiores e afectivos. No meio de uma perfeita estrutura dramática, Neil Jordan aprofunda também de forma artística a relação carnal do par Fiennes/Moore, em cenas de nudez e sexo filmadas com sensibilidade e sensualidade extremas. Neste labirinto de enganos e luxúria, pressente-se o estilo de Graham Greene e até algumas apropriações anexadas nesta adaptação ao grande ecrã (como parte do final) parecem fluir na perfeição e não traem o património litérário. E o romantismo à antiga ressuscita no cinema... * * * * *
6 de novembro de 2006
NA SALA ESCURA: Um fresco histórico de perder a cabeça
Pecado do Dia: Soberba
Como contar a história de Maria Antonieta sem cair na tentação de mostrar o desenlace mais mediático da sua história? Sofia Coppola não precisa dele... Em vez da guilhotina, a realizadora mostra o destino da jovem rainha de uma forma simbólica numa belíssima cena passada numa das varandas do Palácio de Versalhes. Este é só um detalhe narrativo de uma cineasta que continua a dar cartas num "cinema comercial alternativo" (se é que tal categoria existe). E já se começam a denotar marcas no seu estilo, corroboradas poe este opulento Marie Antoinette: o recurso a banda sonora "rock" nostálgica (para criar um assumido efeito de desenquadramento com o ritmo de vida na segunda metade do século XVIII), uma forma despojada de enquadrar a acção, a aposta nos silêncios e diálogos lacónicos e o olhar para as distâncias e particularismos entre seres humanos – como se comprova na relação mais protocolar do que afectiva entre Antoinette (Dunst) e Luís XVI (Jason Schwartzmann, num registo bem conseguido de sexualidade subtilmente ambígua). Na verdade, o filme é um fresco excessivo sobre a ostentação da realeza e parece ter "pouco sumo" quanto às implicações históricas das figuras em causa. Isso pouco importa aqui... Pode soar a desperdício (as críticas negativas aproveitam muito este argumento), mas é bom observar a ousadia de retratar a figura de uma rainha mais humana, frágil e desenquadrada do que com os facilitismos heróicos. Muita opulência, para pouco, dirão alguns. O suficiente para transmitir as emoções invisíveis mas genuínas que Coppola tão bem caracteriza. Destaque ainda para as presenças de Judy Davis e Marianne Faithful que, no meio de tanto luxo, pouco mais são do que figurantes... O que resulta numoutro sinal de ousadia artística ou, para os detractores, mais uma deixa para o desperdício artístico desta obra. * * *
3 de novembro de 2006
"Hip hop"... hurra!
Pecado do Dia: Ira
Djay (soberbo Terrence Howard, justamente nomeado para a estatueta dourada de Melhor Actor graças a uma complexa composição que oscila entre a marginalidade e a busca da redenção pelas rimas) é um homem desenquadrado, misógino, que usa o corpo das mulheres que vivem consigo para ganhar dinheiro. O seu modo de vida promíscuo e rude é, desde logo, descrito no início de Hustle & Flow, num aparente monólogo... A mensagem que passa (e passará ao longo de todo o filme) é performativa: "A vida de um chulo não é fácil!" O realizador Craig Brewer tira partido da amargura do protagonista, para construir uma espécie de "taxi driver" do "hip hop" (perdoe-se a heresia...) que quase vê a luz quando encontra um colega de infância, agora produtor, e a quem convence ajudá-lo a construir um disco. Os meios são escassos e a imaginação também, mas é a verborreia de Djay e a sua noção de ritmo que vão predominar. Mas o "sonho americano" não chega da forma esperada e a vida dura será mesmo assim até ao fim... Hustle & Flow é um murro no estômago e nas convicções do drama social. Musicalmente é estereotipado, mas vive mais pela aspereza dos diálogos, até ao clímax final, embricado na história sem exageros. Um olhar interessante para as novas tonalidades do "hip hop", que demora a desprender-se da retina... * * *