29 de janeiro de 2007

CINEFILIA: Os desafios do guerreiro de Hollywood

... Já se estreou há algumas semanas (mesmo antes do Natal) e eu fui vê-lo logo na sessão de apresentação para imprensa. Ainda assim, a última realização de Mel Gibson não é um filme fácil de digerir e nem se percebe bem porquê: a reconstituição da civilização maia tem todos os meios a seu favor, mas a visão sangrenta que Mel Gibson insiste em desenvolver (numa dimensão diferente de A PAIXÃO DE CRISTO mas igualmente excessiva) já cansa e acaba por perurbar em grande parte aquilo que se adivinhava como um óptimo épico de aventuras (e onde a aura sacra envolve por completo a missão do protagonista de regressar à família). APOCALYPTO é, antes de mais, um bom pretexto para recordar a carreira de um dos nomes fortes da indústria de Hollywood (que foi dos primeiros a cobrar 20 milhões de dólares por filme), nunca excelente actor, mas um herói de acção com algumas escolhas ousadas na carreira. Na verdade, Mel Gibson é a típica estrela em ascensão, que experimentou a realização na altura certa e tem o mérito de elevar as suas convicções, mesmo contra-corrente. Para a história fica mesmo A PAIXÃO DE CRISTO, uma visão puramente seguidista das suas orientações teológicas (como se sabe, é um católico ortodoxo, que chegou a visitar a "nossa" Irmã Lúcia) que, contra o previsto, se tornou num dos projectos independentes mais rentáveis de todos os tempos. Com APOCALYPTO, Mel Gibson decidiu voltar a arriscar, mas os resultados são diferentes: se, por um lado, o filme foi corrompido pelo seu desaforo contra os judeus depois de ter sido apanhado embriagado ao volante, por outro a obra é violentamente gratuita e não quer esboçar um relato denso sobre uma das mais interessantes civilizações medievais. Fica-se pela caricatura, pela apropriação simbólica de uma mensagem emotiva sobre o poder sociológico das relações humanas e um pretensioso grito de revolta contra a coerção. Mesmo assim, sente-se o músculo da sua câmara e Mel Gibson volta a mostrar que é melhor a dirigir do que a interpretar (o filme não saiu assim tão mal nas bilheteiras, tendo rendido 50 milhões de dólares só nos Estados Unidos). Algo que a sua carreira recheada de "blockbusters" o desmente. Mas não são assim tantos os filmes do seu currículo que ficaram na memória. Para a posteridade, aqui ficam sete pontos altos. Os "pontos baixos" foram mais...



APOCALYPTO * * *
Pecado do Dia: Preguiça
Uma aldeia invade outra, durante o apogeu sul-americano da civilização maia, para exercer poderosos rituais de violência. Nada que demova Jaguar Paw (Rudy Youngblood) de tentar reencontrar a família. Mel Gibson demonstra pulso forte na direcção, mas a aposta no épico de aventuras retira inventividade a uma boa reconstituição épica. E já enjoa o excesso de hemoglobina que Mel Gibson gosta de filmar...

A PAIXÃO DE CRISTO * *
Pecado do Dia: Ira
A reconstituição das últimas horas da vida de Cristo (Jim Caviezel) é um exercício extremo, a resvalar para o registo "gore", onde Gibson aproveita para explorar ao máximo a sua visão teológica. Vale enquanto projecto de uma vida (que venceu, quando todos pensavam o contrário), mas cinematograficamente é vazio, desprovido de qualquer fundamentação ideológica. Prefere-se o banho de sangue e a tortura acéfala.

SINAIS * * * *
Pecado do Dia:
Avareza
O último grande desempenho de Gibson (e, talvez, o seu melhor de sempre...) é construído às ordens de M. Night Shyamalan em mais um conto sobrenatural, desta vez envolvendo extraterrestres, que vêm abalar a consciência de um padre descrente. A relação problemática da personagem de Gibson com a fé é outro ponto forte deste melodrama de ficção-científica, pouco denso em matéria narrativa mas exemplar enquanto experiência cinematográfica intensa. Shyamalan constrói um exercício de "suspense" do outro mundo (literalmente), com a habitual contenção.

A FUGA DAS GALINHAS * * * * *
Pecado do Dia: Gula
Nesta fábula deliciosa da dupla "stop motion" britânica Peter Lord e Nick Park, Gibson tem outro desempenho memorável mas meramente vocal. A sua personagem Rocky, um galinácio de circo que engana um grupo de galinhas que sonham voar, é antológica pela combinação certa de humor inteligente com dinamismo animado. A história tem uma analogia acertada com os campos de concentração nazis e as cenas passadas no interior da nova máquina de empadas são memoráveis. Era bom que os filmes de animação fossem sempre tão ricos como este. Até as piadas são para todos os gostos.

BRAVEHEART - O DESAFIO DO GUERREIRO
* * * * *
Pecado do Dia:
Soberba
Cinco estatuetas douradas (incluindo os Óscares de Melhor Filme e de Melhor Realizador) foram a recompensa certa para esta super-produção também protagonizada pelo próprio Gilbson. A revisitação da independência escocesa, liderada por William Wallace, é recriada com particular engenho e um ímpeto aventureiro nas doses certas. Gibson transcende-se e cria um dos últimos grandes épicos guerreiros do cinema.

HAMLET * * *
Pecado do Dia:
Luxúria
Nesta adaptação do clássico de William Shakespeare (nem sequer a melhor...), Mel Gibson aproveitou para relembrar a experiência dos palcos para dar vida ao protagonista conturbado. A relação com Ofélia (Helena Bonham-Carter) justifica o pecado seleccionado, mas há muito mais para ter em conta nesta realização branda de Franco Zefirelli. Gibson é irrepreensível como Hamlet e, em seu torno, deambulam uma série de bons actores - Glenn Close, Alan Bates, Ian Holm ou Paul Scofield. Só é pena que a química das boas interpretações não eleve ainda mais esta versão de 1990.


MAD MAX * * * *
Pecado do Dia:
Inveja
Excelente estreia de George Miller na direcção de um filme-espectáculo, é um dos últimos gritos de rebeldia da década de 70 no cinema. Esta visão futurista e niilista de uma Austrália desertificada é pouco dada a diálogos, mas Gibson veste bem a pele deste anti-herói que tem a sua missão inscrita no alcatrão da estrada. O filme original, já com quase 30 anos desde a estreia, é quase tão importante quanto BLADE RUNNER. Vale pela violência e o tom lacónico da acção.

21 de janeiro de 2007

CINEFILIA: Woody continua a dar cartas

... É daquelas tradições que já se nos colou à pele e da qual não abdicamos a cada novo ano: ir ao cinema ver "o último Woody", seja ele mais uma comédia tão frenética quanto igual a outras mais ou menos neuróticas numa carreira de já 46 longas-metragens, ou uma experiência mais intimista (e rara, nos últimos tempos...). Woody Allen é daqueles realizadores-fétiche, entre o público europeu, que o toma como certo a cada novo ano. O que se passa é que Woody acabou de completar sete décadas de vida e não dura sempre. Os seus filmes, sim. E, felizmente, o cineasta continua com o ímpeto de antigamente, sempre disposto a surpreender os fãs e adiando por mais uns tempos a reforma. É um dos últimos clássicos, o último dos que não se importa de estar ausente dos grandes cinemas norte-americanos e até preferiu trocar a sua Nova Iorque por uma mais fria Londres para os seus últimos trabalhos. É lá que se passa a acção de SCOOP, o seu último filme já em exibição entre nós. Desta vez, nas casas de campo dos arredores da cidade e bem no centro, nos bairros periféricos onde, ao certo, não importa. Neste novo esforço cómico, em que o realizador surge já um pouco cansado fisicamente mas mordaz como sempre, há um reencontro com Scarlett Johansson e a entrada de rompante de Hugh Jackman. A trama é rebuscada e, apesar de nem sempre funcionar por inteiro, constitui mais uma "lufada de ar fresco" no território da comédia ligeira. É aqui que, primordialmente, gosto de ver Woody movimentar-se. Com o seu gaguejar de fala, os óculos a penderem do nariz, os gestos como escape quando o diálogo não engata à primeira... Woody não é, nem nunca foi um grande actor. Mas a sua presença é sempre revigorante, pela capacidade em transformar a mais banal piada numa reflexão puramente satírica. Não convém desdenhar do passado no registo "stand up" e parece que é ao burlesco que Woody gosta de regressar. Foi também aí que se estreou no cinema - lembram-se de BANANAS, essa análise desconexa do regime de Fidel? - para depois se lançar por outros voos, mais artisticamente aliciantes, embora seja na arte de fazer rir que a sua essência pareça habitar. Por isso, em SCOOP, a sua composição de mágico de segunda ("Splendini" de seu nome) assenta-lhe como uma luva e conduz a intriga deste policial-espírita para uma dimensão quase antológica. Woody sempre reconheceu não gostar de se ver no ecrã e as suas participações têm sempre de ser cómicas devido à falta de jeito para representar... Nós não nos importamos e até fazemos mais: recordamos sete momentos (não obrigatoriamente os melhores da sua carreira) de humor numa vida que nunca temeu de todo o riso. E ficamos a aguardar o próximo filme, já em 2008, com Colin Farrell e Ewan McGregor à frente do elenco. Woody: não deixes nunca de dar cartas...

SCOOP * * *
Pecado do Dia: Inveja
Woody precisava de contracenar com a sua mais jovem musa, Scarlett Johansson, depois de a dirigir no seu mais sólido título dos últimos oito anos: MATCH POINT. Desta vez, recrutou-a para uma comédia sobrenatural, ao jeito das slapstick commedies de Howard Hawks ou Billy Wilder. Embora longe de ser brilhante, é mais um exercício competente de piadas certeiras e a repetição do seu gosto dramático para o policial. É bom ver Scarlett a fazer de Woody e este a retribuir-lhe na mesma moeda. Inofensivo e ligeiro, é brilhante nas cenas em que Woody se volta a encontrar com a morte...
MELINDA E MELINDA * * * *
Pecado do Dia: Avareza
Injustamente subvalorizado na altura em que se estreou entre nós (há dois anos), este exercício sobre a comédia e a tragédia (e as suas repercussões afectivas) é mais profundo do que aparenta. Não conta com Woody, mas com Will Ferrell a imitar-lhe (bem) os trejeitos. Trata-se de uma mesma história contada segundo pontos de vista diferentes e vence pela entrega a um humor mais melodramático e casual. Radha Mitchell desembaraça-se muito bem da duplicidade da sua personagem.

VIGARISTAS DE BAIRRO * * * *
Pecado do Dia: Gula
É um dos melhores exemplos do seu regresso aos primeiros tempos: o da comédia inconsequente, com direito a números de humor físico. Woody faz aqui par com Tracy Ullman (excelente!) na pele de dois "novos-ricos" que fazem fortuna com os biscoitos dela (daí o pecado seleccionado), depois do falhanço dele nos assaltos. As piadas sucedem-se em catadupa e funcionam muito bem, aqui com direito a termos Woody no mais piroso e embrutecido dos seus personagens. Quase com formato de "sitcom", o filme transcende-se pela ousadia humorística.
HOLLYWOOD ENDING * * *
Pecado do Dia: Preguiça
Em 2002, Woody decidiu criticar de vez, por um lado o cinema americano "mainstream", por outro a vénia desmesurada que os europeus lhe fazem (é um facto que Woody é uma estrela por cá, ao passo que na América são poucos os que decidem ver os seus filmes...). Para tal, veste a pele de um realizador que fica cego no início da rodagem do seu filme, mas que decide ir em frente com o projecto, enganando tudo e todos. Embora exageradamente desconexo, HOLLYWOOD ENDING é mais um bom motivo para recordarmos o dom de Woody para a crítica. A seu lado: uma histriónica Téa Leoni.

SLEEPER - O HERÓI DO ANO 2000 * * * *
Pecado do Dia: Soberba
Na sua terceira longa-metragem, em 1973, decidiu experimentar a ficção-científica. Projecto ambicioso esse, se fosse seguido à risca. Porém, Woody estava na sua fase mais hilariante e politicamente incorrecta, pelo que prefere brincar e bem com os modelos urbanos e sociais de um hipotético amanhã. Este primeiro encontro com Diane Keaton não poderia ser mais saboroso... Recorde-se os seus números de "mimo" ao fazer-se passar por robô e os legumes gigantes. "Non-sense" do futuro com sabor a passado saudosista!

O ABC DO AMOR * * *
Pecado do Dia: Luxúria
Irreverente ao máximo nos primeiros tempos, Woody é ainda hoje o mais irresistível espermatozóide da história do cinema. Este personagem entra só numa das partes de uma história-mosaico que pretende ser um despretensioso manual sobre a sexualidade. Porém, quando se fala de Woody nos primeiros tempos de carreira, nunca se pode levar demasiado a sério. Neste exercício desbragado e, a espaços, pouco convincente trabalho cómico, é mesmo o episódio da simulação da ejaculação masculina que mais convence. Esse e aquele em que temos Gene Wilder num quarto de hotel com uma ovelha!

BALAS SOBRE A BROADWAY * * * * *
Pecado do Dia: Ira
Deixamos o melhor para o fim, nesta selecção quase aleatória (na verdade, TODOS os filmes de Woody merecem ser vistos!) cujo único denominador comum é a versatilidade humorística do mais nova-iorquino dos realizadores. Dirigido em 1994, BALAS SOBRE A BROADWAY tem John Cusack a fazer de Woody Allen, como um argumentista falhado que tem a oportunidade de realizar a peça de teatro dos seus sonhos se se aliar a um poderoso gangster que está disposto a patrocinar o espectáculo. Mas nem tudo são facilidades, e o jovem argumentista tem que aturar uma irresistível (e irritante) Jennifer Tily. Nesta combinação de sátira teatral com filme de gangsters, Woody cria uma brilhante reconversão dos códigos da comédia clássica e até mais violenta com as suas personagens do que é habitual. Tudo em nome da coerência de uma comédia sobre o valor da arte, com desempenhos memoráveis de Chazz Palminteri, Jim Broadbent e uma engenhosa Dianne Wiest (com o seu célebre "Don't Speak"), vencedora do Óscar de Melhor Actriz Secundária.

14 de janeiro de 2007

CINEFILIA: Bogart, a face pública do detective privado

... Um chapéu cinzento, uma gabardina comprida, um cigarro na ponta dos dedos, uma cicatriz junto à boca e um olhar de quem já viu de tudo, mas que tudo não é suficiente para o paralisar perante mais um caso complexo. A imagem de duro-romântico ficou cristalizada nas memórias de Hollywood e o mérito de ter criado uma personagem-ícone do cinema (tal como John Wayne personificou o "cowboy", por exemplo) fazem de Humphrey Bogart um dos mais influentes rostos da sétima arte, imediatamente reconhecível, tal como Marilyn ou Dean. Mais talentoso do que estes duas lendas juntas, Bogart afirmou a figura do detective solitário, de poucas falas e mão sensível no gatilho. Contudo, ironia das ironias, o seu papel mais sonante foi o de um herói romântico, dono de um bar corrupto, e que cede a tudo para deixar a sua antiga amante partir com o actual marido e salvar a sua pele num período de tempos conturbados. CASABLANCA é hoje um título incontornável e relançou uma carreira de alguém que começou por tentar medicina, alistar-se no exército e acabar por escolher o teatro por não ter outra opção... Os seus primeiros trabalhos em Hollywood não foram brilhantes e demorou tempo a impor-se numa indústria que hesitava em apostar em novas estrelas (ainda para mais de fraca estatura e olhar dorido...). Depois de dar nas vistas como actor secundário em filmes de "gangsters" cujas estrelas eram James Cagney e Edward G. Robinson, Bogart seduziu Ingrid Bergman e milhões de espectadores em CASABLANCA redescobrindo-se depois às ordens de Howard Hawks e contracenando com uma loura insinuante, uma tal de Lauren Bacall (ainda hoje viva), com quem haveria de casar e partilhar a vida até ao fim dos seus dias, já após diversos casamentos fracassados. O fim, como acontece quando se vive de mais e depressa, chegou prematuro, há precisamente 50 anos. Humphrey Bogart morreu a 14 de Janeiro de 1957, vítima de um cancro no esófago e de "um milhão de whiskies", como descreveram os críticos na altura. No ecrã, todavia, mantém-se intacto, vivo como Sam Spade de RELÍQUIA MACABRA, que é talvez a personagem mais próxima da caricatura que os cinéfilos de hoje retêm na memória. Nem a estatueta dourada lhe faltou, dado que venceu o galardão para Melhor Actor por A RAINHA AFRICANA, de John Huston. Terá faltado algo? Não. Bogart morreu precocemente mas já tinha o mundo a seus pés. Agora que se contam 50 anos sobre a sua morte, recordem-se os seus filmes, não a sua perda. Até porque ficou célebre a frase que disse numa entrevista sobre funerais: "Detesto funerais. Não são para o morto que está a ser enterrado. São para os que ficam por cá vivos, para se sentirem entretidos."

CASABLANCA * * * * *
Pecado: Luxúria
Não que existam cenas ousadas, neste clássico de Michael Curtiz, mas a relação intemporal entre Rick (Bogart) e Ilsa (Bergman), em Paris, deixa transparecer uma infidelidade que os acompanhará sempre, até numa Marraquexe atribulada por alturas da II Guerra Mundial. Vencedor do Óscar de Melhor Filme, CASABLANCA é o mais perfeito dos dramas românticos, condimentado por uma soberba fotografia e aquele tema, para sempre imortalizado ao piano, "As Time Goes By"...

MATAR OU NÃO MATAR * * * * *
Pecado:
Gula
É talvez a maior delícia de representação de Bogart, numa combinação de film noir com drama despedaçado. A ambiguidade da história, que envolve a acusação de Dixon Steele (Bogart) do assassinato de uma mulher, tem o condão artístico de Nicholas Ray, já com o estilo mais amadurecido, depois de Fúria de Viver. Produzido pelo próprio Bogart, o filme convence pelo estilo sinuoso e outro desempenho fulgurante, o de Gloria Grahame, a femme fatale de serviço.


HERÓIS ESQUECIDOS * * * *
Pecado: Avareza
Aqui ainda num desempenho secundário (foi neste tipo de filmes de "gangsters" que começou por tentar a sétima arte), Bogart é o parceiro traidor de Eddie Bartlett, uma composição antológica de James Cagney. O filme é brusco, de poucos meios e pouco condescendente com grandes pausas para diálogos. A direcção de Raoul Walsh é segura e retorna à época da Lei Seca, com os consequentes negócios obscuros.

FLORESTA PETRIFICADA * * * *
Pecado: Inveja
Depois do êxito desta história nos palcos, Leslie Howard sentiu inveja dos efeitos mediáticos do cinema e decidiu adaptar este conto moral sobre um homem que se apaixona (Howard) por uma empregada de uma tasca (Bette Davis), quando aparece um assassino (Bogart) disposto a fazer reféns todas as pessoas que se encontram no bar. Misto de existencialismo com melodrama, este retrato de Archie L. Mayo foi um enorme sucesso e o primeiro papel de destaque de Bogart (num registo propositadamente exagerado).


ANJOS DE CARA NEGRA * * * * *
Pecado:
Ira
Retrato dorido de Michael Curtiz sobre os destinos antagónicos de dois amigos de infância: um é padre (Pat O'Brien), o outro contrabandista (James Cagney) de álcool quando a América proibiu o seu consumo público. Este é outro dos primeiros desempenhos de Bogart, mas a forma como a sua presença se demarca na onda dos corruptos vilões ajuda a tornar este um dos mais intensos e complexos retratos da vida louca da América nos anos 30.

SABRINA * * * *
Pecado:
Preguiça
Não é de todo a mais elaborada das interpretações de Bogart mas sabe bem vê-lo numa comédia romântica sobre uma filha de um empregado dividida entre o coração dos dois filhos do patrão. Pensado para fazer brilhar Audrey Hepburn, este filme de Billy Wilder não consegue ofuscar a versatilidade de Bogart, mais charmoso do que nunca. Esqueça-se é o "remake" feito nos anos 90, com Harrison Ford no papel que foi de Bogart...
RELÍQUIA MACABRA * * * * *
Pecado: Soberba
Costuma figurar na lista dos melhores filmes de todos os tempos e é fácil perceber porquê: tem Bogart na sua pele mais icónica, o durão detective Sam Spade, uma intrincada acção que se desenrola toda na busca de uma preciosa estatueta, tem uma "femme fatale", Mary Astor, e muitas reviravoltas como qualquer bom filme negro que se preze. A direcção irrepreensível deste clássico de "suspense" pertence a John Huston (com quem Bogart trabalhou também em A RAINHA AFRICANA).

6 de janeiro de 2007

NA SALA ESCURA : Um filme estilhaçado

... Uma das forças motrizes do cinema é a capacidade de contar várias histórias em simultâneo, permitindo que o olhar do espectador se desprenda de uma temporalidade e de um espaço determinado. Essa oscilação temática permite, quase sempre, enriquecer a experiência cinéfila e o filme-mosaico é, cada vez mais, entendido como experiência de prestígio. Embora nem sempre funcione, quem consegue mostrar diversas personagens e histórias apresentadas enquanto fragmentos que, mais tarde, certamente encontrarão um fio condutor, conhece todo o potencial cinematográfico enquanto meio de mensagens diversas. Ainda recentemente faleceu um dos mais sólidos cineastas deste modelo narrativo - e pouco usado, no cinema comercial de hoje, ávido de experiências simplistas e automatizadas -, capaz de construir teias narrativas com elencos numerosos: sim, Robert Altman. Mas, depois do reconhecimento feito nessa altura, o tema do filme-mosaico volta a estar na ordem do dia, motivado pela estreia do último filme do mexicano Alejandro González Iñarritú, BABEL. Coqueluche na próxima temporada de prémios (é já um dos favoritos aos Óscares, depois de COLISÃO, outro esforço menos intenso neste género, ter levado inesperadamente o galardão de Melhor Filme para casa no ano passado), este conto sofrido e fragmentado em quatro pequenas histórias que, desde o início, aparentam estar interligadas, é só a mais recente obra apresentada como "puzzle" a ser descodificada pelo espectador, que Iñarritú vem agora propor. Quem conhece de perto a sua obra anterior, percebe que este jovem mexicano gosta de filtrar a experiência complexa e inter-relacional do folhetim com a tradição nobre do cinema sentimental sempre em mente: tanto AMOR CÃO como 21 GRAMAS são exemplares na forma como partiram de um acontecimento extremo - um acidente de automóvel - para questionarem a força humana e a sua resistência perante o absurdo das circunstâncias. Agora, com BABEL, Iñarritú decide encerrar uma espécie de trilogia das emoções exacerbadas e aperfeiçoa ainda mais o gosto pelas narrativas fragmentadas. Contudo, desta vez, decidiu universalizar o espaço-tempo da sua história, construindo uma hipótese de tese emocional sobre os dilemas e as fronteiras comunicacionais de todo o mundo. O resultado - que tem o seu cerne num novo acontecimento extremo, um tiroteio em direcção a um autocarro - volta a ser profundamente tocante e revelador do dom de Iñarritú para dissertar sobre a dificuldade em nos relacionarmos com o outro. Este é o tempo do cinema-emoção em estado puro, abrilhantado por desempenhos tocantes e uma realização soberba. Um motivo mais do que suficiente para repartirmos o olhar por outras experiências sólidas no genéro do filme que se constrói a partir de fragmentos dispersos... e que se encontra sempre, dando todo o sentido devido ao conceito de sinergia.



BABEL * * * * *
Pecado: Ira
Radiografia possível para os tempos globalizados de hoje, onde o acidente pode ter consequências tétricas, esta obra grandiosa de Alejandro González Iñarritú é ambiciosa: partindo do modelo de narrativas desintegradas (que o realizador experimentara já em 21 GRAMAS ou AMOR CÃO), destrói fronteiras e apresenta um punhado de personagens de diferentes raízes a lutarem contra as armadilhas do destino. Crú e muito emocional, é um belo espectro de experiências violentas mas, acima de tudo, muito humanas. Os Óscares já se vêem ao longe...

COLISÃO * *
Pecado:
Preguiça
Vencedor-surpresa dos Óscares em 2005, este mosaico urbano de Paul Haggis (com créditos firmados na escrita), COLISÃO parece copiar os modelos do labirinto narrativo de Altman e Thomas Anderson, reflectindo superficialmente sobre as dificuldades de imigração nos Estados Unidos. Ao pretender retratar o "melting pot", perde-se na lamechice desnecessária e não consegue a força pretendida em algumas das histórias, como a do pai cuja filha é salva de um tiro por um suposto milagre. Resta um elenco esforçado, de onde se destaca Matt Dillon ou Sandra Bullock.


YI YI * * * *
Pecado: Avareza

Exemplar modelo de contenção de meios, este espectro familiar do dia-a-dia em Taiwan foi uma das surpresas subtis de 2000. Realizado pelo chinês Edward Yang, conta-nos com particular subtileza e ritmo dengoso, o mundo oriental pelo olhar de uma criança. Pelo caminho, há assuntos sérios como uma tentativa de suicídio ou as longas conversas com a avó do protagonista, que nos são mostrados com particular sensibilidade por uma câmara que evita os grandes planos e prefere dar um tom documental às emoções que vão surgindo no ecrã.


GOSFORD PARK * * *
Pecado:
Inveja
Não é a obra mais memorável de Altman, mas foi das últimas que o cineasta dos mosaicos narrativos conseguiu impor como exemplo do seu estilo fragmentado. Em jeito de farsa dos modelos literários de Agatha Christie, GOSFORD PARK reúne um naipe interessante de personagens numa mansão e apresenta-nos um crime. Quem terá cometido o delito? O desenlace não é o mais importante, mas a exposição dos "telhados de vidro" de empregados e patrões numa outra sátira ao classicismo britânico. Elegante e frio, o filme convence enquanto jogo de invejas mútuas.


MAGNÓLIA * * * * *
Pecado: Soberba
Quando Robert Altman estava a dirigir, já com graves problemas de saúde, aquele que viria a ser o seu derradeiro filme, BASTIDORES DA RÁDIO, pediu a Paul Thomas Anderson para vigiar toda a obra, caso por motivos de doença grave não a pudesse terminar. Percebe-se porquê: Anderson foi exemplar na construção deste mosaico de personagens à deriva, em que temos Tom Cruise como guru sexual, um jovem prodígio bloqueado ou uma Julianne Moore à beira do desespero com a doença do marido. É a experiência mais intensa dos últimos anos no campo do drama estilhaçado e tem ainda aquela memorável banda sonora de Aimee Mann e a célebre chuva de sapos...


AMARCORD * * * *
Pecado: Luxúria
O cinema europeu também é prolífico em matéria de mosaicos narrativos, que o diga Federico Fellini com esta sátira sobre o rumo de uma comunidade rural durante o regime de Mussolini. Disperso e muito divertido, o filme tem também uma forte componente sensual, na descoberta da sexualidade pelos personagens mais infantis. O espírito é quase sempre de festa e o quotidiano da vila retratada em AMARCORD muda à medida das estações do ano. Brilhante e burlesco.


PLAYTIME * * * * *
Pecado:
Gula
Jacques Tati é exímino na construção de acções dispersas onde o único elemento aglutinador é a sua "persona" Sr. Hullot. Em PLAYTIME, o encanto e questionamento da vida moderna é apresentado segundo um sem número de situações equivocadas que transmitem muito bem o pulsar dos tempos modernos. Recorde-se a utilização brilhante de Tati nos efeitos sonoros e a célebre sequência no restaurante. As delícias desta crónica, apesar de tudo desencantada, inscrevem na perfeição o modo autoral como Tati é também uma referência na construção de maravilhosos mosaicos.