27 de outubro de 2006

NA SALA ESCURA: Um "road movie" disfuncional

Todos os anos há filmes-surpresa: aquelas obras de poucos meios que, à partida, ninguém dava nada por elas, mas que o efeito "boca a boca" entre os espectadores que têm a sorte de a ver acabam por gerar bilheteiras generosas e críticas irrepreensíveis. Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos (prefiro muito mais o título original Little Miss Sunshine) lidera as preferências nesta categoria (se é que os "filmes-surpresa" se podem considerar uma categoria...) e tem todas as razões para isso: começou como um projecto marginal de uma dupla de realizadores em estreia, com um naipe de actores interessante mas nenhum deles da primeira divisão (só talvez Steve Carrell, que se tem afirmado como uma das mais recentes estrelas da comédia ligeira norte-americana), deu nas vistas no Festival de Sundance e acabou por gerar 50 milhões de dólares nas bilheteiras. Por cá, a estreia foi discreta, embora a Lusomundo se tenha esforçado por vender o filme como mais uma comédia desbragada e algo acéfala, como é norma na maioria dos produtos do género que ganham mais destaque nas salas dos "multiplexes" - o título português é um esforço nesse sentido. E já se fala de Óscares... o de Argumento Original e Melhor Actor Secundário para Alan Arkin (o avô "muito à frente" desta família desintegrada) ou Steve Carrell são talvez os pontos mais fortes. Vai uma aposta?

Pecado do Dia: Avareza

Filme independente que se preze, a palavra contenção não é ponto fraco, mas ponto de honra. A dupla Jonathan Dayton e Valerie Faris tirou partido disso mesmo para criar uma das histórias mais surpreendentemente cómicas que os estúdios de Hollywood nos ofereceram nos últimos anos. Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos começa como retrato até algo dramático de uma família disfuncional, com uma mãe desesperada, um pai perdedor, um filho que fez voto de silêncio e uma doce menina que sonha participar num concurso de beleza para crianças até aos seis anos (!!). É justamente esta personagem que arrasta toda a família numa longa viagem de carrinha para chegar a tempo ao espaço do próximo desfile de "misses". Rapidamente, o filme transforma-se num "road movie" em alta velocidade, com excelentes números cómicos (as constantes avarias da camioneta e o episódio do hospital são de antologia... bem como o momento final passado no palco do já referido desfile). Simples e bem intencionado, Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos funciona pelo ritmo, os diálogos inteligentes e uma excelente caracterização de cada uma das personagens desta família bizarra. Mas não assim tão distante da nossa. * * * *

23 de outubro de 2006

NA SALA ESCURA: A imaginação ao poder (das imagens)!

Custou mas foi! Estava difícil arranjar um tempinho para ir ver ao cinema a última experiência visual de M. Night Shyamalan. As críticas eram mistas, o "feedback" pouco receptivo, as bilheteiras desencorajadoras, mas o património artístico do realizador contemporâneo que melhor conseguiu reinventar o género "thriller" (sem com isso corromper a tradição do "film noir" e as intrigas hitchcockianas) foram mais fortes... Com A Senhora da Água, Shyamalan levou ainda mais longe as suas ambições enquanto contador de histórias negras e é pelo desafio meio infantil (o pecado que Spielberg demorou a desprender-se) deste objecto estranho que consegue voltar a marcar pontos. Para quem estava à espera do habitual "twist", das premissas realistas, dos jogos claustrofóbicos omnipresentes em O Sexto Sentido ou Sinais deve ter ficado desiludido, porque é na componente alegórica (já relativamente expressa no soberbo A Vila) que tudo se volta a jogar, num desafio que só entra quem tiver apetência pelas histórias fantástica de embalar. Shyamalan teve de romper com a Disney para levar este filme até ao fim - aquele que mais o motivou desde o início de uma intocável carreira - e conseguiu com a Warner Brothers um novo fôlego, apesar de tudo fiel ao seu espírito de "mago do cinema moderno". A Senhora da Água é um notável desafio, desequilibrado a espaços, mas capaz de recuperar uma aura onírica no grande ecrã que, desde que Peter Jackson lançou a sua visão da trilogia de Tolkien, parecia estar circunscrita a sucedâneos digitalmente estimulantes, mas narrativamente pobres. Lúdica, esta obra nunca poderia ser consensual, mas é salutar o efeito-surpresa que ainda consegue lançar neste início de século. Para quando um novo jogo imagético? Aguarda-se nervosamente...

Pecado do Dia: Inveja

Tudo se passa num condomínio fechado (a forma como este espaço é filmado convoca piscadelas de olhos à Janela Indiscreta de Hitchcock, referência máxima para quem abraça o "thriller" com tamanha convicção) e o ponto de partida é, mais uma vez, o do realismo desencantado. Subitamente, o inesperado acontece, deixando confuso o responsável por este espaço habitado por pessoas diferentes, numa espécie de Torre de Babel contemporânea. O onírico atravessa-se no real e dá-nos a conhecer um universo paralelo que só entra quem acredita, quem se deixa dominar pela imaginação, quem possui uma veia criativa. A narfa, estranha criatura personificada pela aparente beleza ingénua de Bryce Dallas Howard, é o elo de ligação entre mundos e que vai mudar a vida de quem precisa de uma orientação superior (a conotação religiosa também não é inocente). A partir daqui tudo pode acontecer e... acontece mesmo. Pouco recomendável para pessoas pouco dadas a fantasias, A Senhora da Água é uma imensa ilusão, complexa e infantil, como um conto de embalar. Tem criaturas fantásticas, emoção, heróis e vilões e um final surpreendente. Paul Giamatti tem mais um grande desempenho e o próprio Shyamalan transfigura-se mais do que o costume no grande ecrã. Como todas as fábulas místicas, a obra é excessiva, mas neste registo movediço tudo é possível. É só acreditar. * * *

13 de outubro de 2006

Boa notícia em dia de azar

É sexta-feira 13, mas sou pouco dado a superstições. Por isso é de louvar a notícia que confirmei esta manhã ao abrir um diário de referência. A Fundação Calouste Gulbenkian vai exibir 50 grandes filmes no ciclo "Como o Cinema Era Belo" já a partir de 4 de Novembro. Escolhida por Bénard "Sr. Cinemateca" da Costa, a programação é heterogénea, numa mescla equilibrada de grandes clássicos e obras contemporâneas de autor, com escolhas irrepreensíveis capazes de nos fazerem acreditar no cinema enquanto arte da imagem como contadora de histórias. Com três sessões (14.30, 18.30 e 21.30) apenas aos sábados e domingos, o ciclo "Como o Cinema Era Belo" pode constituir um excelente programa de fim-de-semana. Mais detalhes sobre esta boa notícia - e toda a programação que não esquece Welles, Ford, Dryer, Minelli, Curtiz, Cronenberg, Spielberg ou Shyamalan? Basta ir a http://www.gulbenkian.org/filmes.asp.

Pecado do Dia: Soberba

A obra-prima escolhida para dar o pontapé de saída deste ciclo inesperado mas de aplaudir tinha de vir de um mestre intocável e o escolhido foi o do "western", John Ford, pois claro. O Vale Era Verde, de 1941, escapa à definição de fita de cowboys do mesmo realizador de O Homem Que Matou Liberty Valance ou Forte Apache, porque se centra na vida da classe mineira numa América ainda a crescer em dificuldades. O retrato familiar é tocante e as referências à autoridade paterna, à rebeldia juvenil e ao esforço do trabalho são filmados com o dom realista que o cineasta também explorou, por exemplo, em As Vinhas da Ira. Vencedor do Óscar de Melhor Filme no seu ano de produção, é um projecto conservador mas mesmo assim sintomático de um cinema pedagógico e emocionalmente exemplar. * * * *

10 de outubro de 2006

Os génios morrem à fome

Uma das razões para o fascínio do cinema é a sua capacidade em surpreender sempre. Ou seja, quanto mais embrenhados estamos no reconhecimento de cinematografias, estilos,"nuances" de movimentos e tendências cronológicas, logo vem uma obra baralhar tudo por estar esquecida, um facto que nunca tínhamos ouvido falar ou até mesmo a noção de que quanto mais se conhece mais vontade se tem em ir mais longe e perceber o quão pouco se conhece. Apesar de ter ainda muitas falhas no meu património de referências cinematográficas, esta sensação ocorreu-me há poucos dias, quando dei por mim a relembrar uma outra faceta de Orson Welles, o colossal "Citizen Kane", que entrou na indústria de cinema como potencial génio, com apenas 24 anos de idade e não se conseguiu desviar do estigma de que "o génio morre à fome", terminando cedo a sua carreira nos clássicos e perdendo-se nas últimas (e penosas...) décadas da sua vida, marcadas por projectos impossíveis e inacabados, além de prestações sofríveis como actor -- ficou famosa a sua "voz off" num anúncio televisivo de comida para cão, como símbolo da sua decadência artística... Por isso, causou-me surpresa a obra misteriosa, de 1971, chamada Malpertuis. Neste conto surreal sobre homens e deuses, Welles tem um breve mas intenso desempenho como o patriarca de uma estranha família que, horas antes da sua morte, se reúne para conhecer o destino da sua herança. Mas nesta obra de Harry Kümel o efeito de perturbação é mais forte e a aura envolvente desta história oscila entre o sobrenatural e a reflexão cínica sobre as relações familiares... E assim se descobrem pequenas pérolas que, apesar de algumas fragilidades, valem enquanto objecto-símbolo de uma carreira e reflectem muito bem a queda do mito de Welles, aqui gordo e envelhecido, a sucumbir ao seu engenho.

Pecado do Dia: Soberba

Candidato à Palma d'Ouro de Cannes em 1971, Malpertuis apresenta-nos um universo onírico, que se reflecte na própria montagem expressiva, para nos contar a epopeia de Jan (Mathieu Carrière) no contacto com a sua estranha família, dividida com a morte do seu patriarca e o compromisso de aceitar as condições para ficar com uma avultada herança. Aqui respira-se uma atmosfera propositadamente densa, de contrastes, com momentos de profundo ruído visual para depois apostar em planos mais intimistas. Nada é ao acaso, apesar de alguns cortes abruptos no seguimento do filme. Mas, em Malpertuis, tudo se entranha pelo teste imagético às noções de divino/humano e que culmina num dos finais mais bizarros da história do cinema recente. Iconoclasta e perturbante, esta co-produção alemã e francesa conta ainda com Welles, esse "monstro" que se quer imortal, aqui numa alusão profunda à sua fase mais decadente. * * * *

7 de outubro de 2006

NA SALA ESCURA: Um documentário sem nuvens

É um género que tem dado cartas e a projecção que o DocLisboa (a começar dentro de duas semanas...) tem todos os anos na programação cultural da capital prova que não é só um feito internacional. O documentário reinventa-se, atravessa as fronteiras do seu género e dos moldes como é apresentado na televisão (não esquecer que, hoje em dia, existem canais temáticos que passam ininterruptamente este produto audiovisual) e chega com cada vez mais ambição ao cinema. Exemplos mais mediáticos? A Marcha dos Pinguins, Fahrenheit 9/11 ou Os Friedman. Pelos exemplos referidos, facilmente se percebe que também as suas estruturas narrativas fogem ao convencional e levam a questão da impossibilidade de ter objectividade mesmo num produto de princípios jornalísticos muito ao extremo. Caso-limite desta constatação? O relato autobiográfico Tarnation, de Johnathan Caouette, que se assume como documentário por partir de pistas reais - fotografias, filmagens antigas, etc. - mas aproveita uma intencionalidade de conflito de identidade do realizador-protagonista para abrir espaço à confissão negra. Longe deste registo, a "aula de ecologia" em forma de filme de Al Gore, Uma Verdade Incoveniente, que ainda se encontra em exibição nas salas nacionais, é uma interessante proposta sobre como apresentar um tema complexo como o aquecimento global sem cair na monotonia da exposição da tese. O resultado final surpreende porque a obra oferece ao espectador uma forma performativa de aprender, num exercício de oratória com recurso à tecnologia surpreendente. O tema em questão é só por si alvo de preocupação, mas o modo como este filme de Davis Guggenheim se encontra construído promete um futuro bem mais risonho para o documentário nas salas de cinema do que para o nosso planeta.

Pecado do Dia: Ira

Quem vê Uma Verdade Inconveniente não sai da sala muito bem disposto. O planeta está a reagir
à intervenção humana e ao descuido quanto à emissão de gases poluentes. Al Gore - que ganha uma segunda vida depois da derrota eleitoral com George W. Bush - explica tudo e expõe as suas ideias recorrendo à tecnologia audiovisual e o resultado final é o de um documentário com uma componente performativa muito forte, capaz de, mesmo assim, deixar no ar a ambiguidade sobre o percurso político de Al Gore e os interlúdios emocionais que são usados em Uma Verdade Inconveniente para aliviar a retórica sobre a problemática da poluição ambiental e as suas repercussões no futuro. O êxito de mais esta experiência audiovisual (rendeu uns surpreendentes 23 milhões de dólares) é de salutar porque apesar da ira de Al Gore contra a o desinteresse da população em geral e da administração norte-americana em particular para a questão do ambiente ser sincera, existe ali um fundamento de esquerda que gera alguma inquietação pela forma de aparente falsa submissão como se vai integrando na acção... Mas quando é o ambiente que está em jogo, o discurso ganha o seu peso independentemente dos pressupostos ideológicos. Al Gore vence esta partida pelo tom escorreito e David Guggenheim pela filmagem televisiva a querer entrar no cinema. Os géneros audiovisuais misturam-se e evitam que o discurso do documentário se torne "nublado" . * * *

2 de outubro de 2006

Sociedade "da abundância" em registo vazio

No outro dia vi em DVD, e pela primeira vez, uma das obras que mais deu nas vistas no ano cinematográfico passado, com direito a nomeações no Festival de Cannes e tudo. Porém, Os Edukadores sofre de um grande problema, à parte da sua vontade excessiva de querer ser alternativo. É convencido... E não há nada pior do que um filme que quer parecer mais intelectualmente interessante do que na verdade é. O cineasta Heins Wangartner cria um triângulo amoroso interessante, formado por três jovens desenquadrados com os valores sociais dos meios cosmopolitas de hoje (até aí tudo bem...). O pior é quando simplifica essa convicção, através de um rapto atabalhoado de um suposto burguês que tramou a vida à jovem protagonista. Daí perde-se o ímpeto revolucionário e a chama crítica de muitas das fragilidades que as democracias consumistas de hoje estimulam. E Os Edukadores consegue ser mais cansativo do que uma tarde de novelas da SIC. Na verdade, esta obra alemã possui pontos fortes - a crueza da forma de filmar é incisiva - mas desperdiça uma vontade de ter um olhar introspectivo. É, acima de tudo, um olhar vazio.

Pecado do Dia: Soberba

Em Os Edukadores, a crítica à sociedade da "abundância" resulta num discurso politizado, cheio de pequenas nuances revolucionárias, mas... vazio. Esta metáfora política, que surge numa co-produção germano-austríaca estilizada, apresenta-nos Jule, Peter e Jan, três jovens que se envolvem romanticamente, e que partilham o gosto por passarem mensagens de ordem contra o progresso através de pequenos actos de rebeldia. É precisamente o triângulo amoroso que se forma, e que vai ganhando espessura com o desenrolar da história, que corrompe as motivações do filme e tornam este candidato à Palma D'Ouro do ano passado do Festival de Cannes, um projecto que quer chegar longe mas que... não chega a lugar nennhum. E é por isso que termina como começa, sem as personagens terem crescido, apesar de andarem em deambulações ocas, corrompendo o exterior porque... sim. O DVD lançado agora pela Atalanta possui alguns extras interessantes, mas não chegam para dar mais vitalidade a um relato também não muito estimulante sobre a juventude culta mas sem referência das sociedades ocidentais. * *