30 de março de 2007

O MAIOR PECADO DE... Roberto Benigni

GULA. «Se viu esta versão de PINÓQUIO de Benigni num parque público, o melhor era ter fugido com as suas crianças e chamado a polícia.» Steve Rhodes, «Internet Reviews»
Aproveitando o facto de ter visto há pouco O CAIMÃO, de Nanni Moretti, decidi introduzir pequenas novidades gráficas e temáticas no SIN CINEMA... Sinal de que o site se vai autonomizando a partir da sua fórmula de origem, o que permite também assentar ideias e melhorar conceitos. E, por isso, tendo em conta que este espaço aglutina cinema com pecado, tinha de se elevar o sentido de pecado à sua dimensão mais negra e corrosiva. Nem sempre se pode fazer elogios e... não há carreira mais movediça do que a da representação ou direcção cinematográfica! Por isso, criei este novo espaço, o dos «ódios de estimação» onde vou procurar escolher o ponto mais fraco de carreiras prestigiadas, mostrando até que ponto tal e determinada figura se esbarrou naquele projecto que, certamente, não se orgulha de ter no currículo. E, já que estamos em maré de cinema italiano, a primeira vítima é ROBERTO BENIGNI na fantasia excessiva, quanto desproporcionada e ridícula que é... PINÓQUIO. Nesta adaptação estapafúrdia do romance imortal de Carlo Collodi, que o próprio Benigni admitiu ser «um projecto de vida», Benigni não só se estampou na realização, como ao aceitar interpretar o menino de madeira que quer ser humano (!!!!). Tiro ao lado, excesso de gula motivado pela glória de A VIDA É BELA e que resultou numa fábula desconexa e um furo grande nas bilheteiras. Realizado em 2002, PINÓQUIO teve duas consequências imediatas: o enjoo do «overact» de Benigni galardoado com o Razzie de Melhor Actor nesse ano e a necessidade de voltar, no seu projecto seguinte, ao lugar seguro do melodrama, que fez em O TIGRE E A NEVE. Benigni pode ter sido cómico no relato trágico de A VIDA É BELA. Mas não precisava de cair na figura de palhaço disforme como o fez nesta adaptação de efeitos especiais desmesurados e nenhuma dose de simplicidade. A baleia... pariu um ratinho cinematográfico!

Críticas de fugir...
- SAN FRANCISCO CHRONICLE: O que dizer de um actor de 50 anos careca a fazer de um menino inocente?
- NEW YORK TIMES: O filme é tão mau que entra rapidamente no panteão da vergonha onde estão BATTLEFIELD EARTH ou SHOWGIRLS.
- HOLLYWOOD REPORTER: Enquanto Benigni (que protagoniza e co-dirige) parece estar a divertir-se, deve ser o único a senti-lo ao longo de todo o filme.

28 de março de 2007

NA SALA ESCURA: Berlusconi à sombra de um melodrama

IRA. «Sou o Jesus Cristo da política. Sou uma vítima paciente, confio em toda a gente e sacrifico-me por qualquer um.» Sílvio Berlusconi é, à semelhança de George W. Bush, um coleccionador de citações tão bacocas quanto desproporcionadas perante os tempos mediáticos de hoje em que a mais inocente gafe se dissemina pelos múltiplos canais transmissores de mensagens... Mas a figura de Berlusconi, magnata dos media que dirigiu os destinos da Itália até ser substituído por Prodi e moldou as leis a favor dos seus negócios menos claros além de apostar pela via política do populismo anedótico, gerou ódios. Entre a esquerda mais enervada com a passagem voraz do político pelos destinos de Itália, conta-se a presença activa de Nanni Moretti. E o cineasta decidiu transpor o seu desdém e revolta contra Berlusconi através de um filme... Um filme que entra dentro de um filme. Um anti-herói que quer manter-se à tona de uma indústria à custa de outro anti-herói. Um melodrama mascarado de sátira política, consumido por ela. Uma provocação que nunca o chega a ser, apesar de, ao vermos o próprio Moretti a vestir a pele de Berlusconi no final do filme, sentirmos que esta é a maior provocação de todas... O CAIMÃO é sobre tudo isso: os paradoxos de uma política canalizada pelos ecrãs de televisão, embora os ímpetos mais críticos sejam desfigurados pela acção (aparentemente secundária, mas que rapidamente se torna o foco principal desta história premiada em Cannes...) do produtor «série Z», um Ed Wood à italiana, Bruno (excelente Sílvio Orlando) que se tem de confrontar com um divórcio. E o processo de falência por ser um produtor fracassado que condensa as suas esperanças na jovem realizadora Teresa (Jasmine Trinca), que lhe apresenta um argumento prometedor. Trapalhão e pouco atento, Bruno vai descobrir que a maior fragilidade do projecto que lhe pode restituir a glória cinematográfica é o facto da história se centrar em Berlusconi... o político que toda a gente odeia, mas que no fundo votou nele. Nanni Moretti constrói, desta vez, uma obra de múltiplas linguagens, um jogo de espelhos em matéria de registos narrativos, mas compromete a sua polémica aversão crítica a Berlusconi com o melodrama genuinamente cómico que elabora com o dom já exposto em QUERIDO DIÁRIO e O QUARTO DO FILHO. O que até nem é má opção, dado que evita exercícios de propagandismo exacerbado, à semelhança do que fez Michael Moore em FAHRENHEIT 9/11... Apenas compromete a abordagem de desconstrução do «mito» Berlusconi e o embrulha numa intriga familiar. Ainda assim, este filme revela-se uma original proposta dramática, com brilhantes momentos e uma descrição sensível dos antagonismos contemporâneos da política, do cinema e do próprio insustentável peso da consciência!

O CAIMÃO * * * *
A polémica sentiu-se em todo o lado, mas parece ter-se esfumado quando se vê o resultado final. A última obra de Moretti é até levemente complacente com a postura caricatural de Berlusconi - excepto no brilhante final exposto a negro... com o próprio Moretti como protagonista. Fora isso, o filme oscila entre o documentário fragmentado de uma rodagem comprometida com o melodrama genuinamente realista de um homem que tem de lidar com o divórcio e lutar para manter vivo o afecto dos filhos. Esta pouco vista visão masculina da separação é uma das mais-valias deste pseudo-exercício de farsa política (a maior de todas!) que, embora falhe a análise incisiva sobre o fenómeno Berlusconi comprova o talento de Moretti para alargar as fronteiras narrativas e emocionais do seu cinema. Uma deliciosa e incómoda surpresa, que demorou tempo de mais a chegar às nossas salas.

25 de março de 2007

DVD: Era uma vez um país

SOBERBA. «Sempre que estou a rodar um filme, quero matar-me. Porque nunca vejo a luz ao fundo do túnel.»Palavra de Kusturica! Os seus filmes são sempre um caleidoscópio de sensações, com uma forma de fazer cinema que não se impõe com suavidade, invade a percepção do espectador sem pedir licença e mostra ao que vem sem pinga de contenção. Foi assim com «A Vida é um Milagre», «Gato Preto, Gato Branco» (até hoje o maior sucesso em salas nacionais do realizador nascido em Sarajevo, com mais de cem mil espectadores) ou UNDERGROUND. E é precisamente este o filme, que revi recentemente em DVD (depois de uma recente campanha publicitária resgatar a música de Goran Bregovic e as minhas memórias cinéfilas do cinema de Kusturica), mais celebrado da sua carreira por representar uma catarse do seu estilo e aglutinar todas as suas influências artísticas, que vão de Shakespeare a Fellini, sem esquecer o burlesco dos Irmãos Marx. A história é grandiosa porque se propõe a contar em cerca de duas horas e meia os rumos conflituosos da Jugoslávia desde a II Grande Guerra até à década de 90. Pelo caminho ficam alusões aos receios da guerra fria, ao comunismo, aos conflitos internos de uma Jugoslávia desmembrada, às vidas duplas de quem sobrevive com negócios duvidosos. Para tal, Kusturica escolhe o percurso de Marko (Miki Manojlovic) e do seu amigo Blacky (Lazr Ristovski), que trabalham no mercado negro, e que decidem resistir à invasão nazi. Alojam-se numa cave onde, durante uma série de anos, passam a viver em comunidade com uma série de personagens bizarras e onde Kusturica aproveita para explorar ao máximo as contrariedades de uma sociedade em constante desintegração. Há ainda um enorme segredo a dividir os dois amigos relacionado com a clausura e a passagem súbita pelo melodrama (na parte final do filme) que tornam a obra num símbolo da relação amor-ódio que Kusturica nunca escondeu nutrir pelo seu país. Neste caos permanente que, mesmo assim, parece encontrar a sua ordem, surge a festa, a noção de celebração bem presente também em «Gato Preto, Gato Branco» e um olhar para a consciência de pessoas a testarem a lucidez por se estar a viver num clima de guerra – neste ponto, o cineasta sempre admitiu que a zona dos Balcãs é recheada de pessoas com talento a nível intelectual mas que nunca se entendem assim que se juntam. É por isso que, em UNDERGROUND, se monta um verdadeiro circo à medida das grandes obras de Fellini, dada a colisão entre excentricidade e naturalismo. Depois de UNDERGROUND, que se estreou nos cinemas em 1995, Kusturica ponderou deixar o cinema – a experiência foi limite e, desde este filme, que o seu estilo se aligeirou e parece aprofundar ainda mais a alucinação cómica e as temáticas shakespearianas. A mistura de luz e sombra deste retrato da Jugoslávia não se voltou a repetir. Mais uma razão para relembrar UNDERGROUND com carinho.

UNDERGROUND * * * * *
O dom manipulador e o “à vontade” com que Kusturica domina a câmara, os actores, os cenários e tudo mais pressentem-se logo nos primeiros minutos, com a sublime sequência do bombardeamento no Jardim Zoológico. Animais à solta e expectativas também para tudo o que se segue, que é não só uma lição de cinema desprendida de espartilhos técnicos e dramáticos mas também um teste à versatilidade digna de génio por gerir um sem número de pequenas situações que, no seu todo, nos dão a percepção clara de como os absurdos da vida até fazem sentido. E ajudam a resgatar um país da decomposição e do esquecimento. A edição em DVD com extras possui uma apresentação cuidada no que concerne à qualidade audiovisual e o material adicional circunscreve-se a artigos e dossiers de imprensa, filmografia do realizador (compatíveis apenas com DVD Rom). Ainda não é a edição que esta obra, a segunda Palma D’Ouro de Kusturica depois de «O Pai Foi em Viagem de Negócios», de 1985, merece, porque, de facto, a obra é uma lição de história distorcida sobre o rumo de um país – e, em particular, de uma cidade, Belgrado – ao longo de cinco décadas.

24 de março de 2007

BOCAS: Tardes de descanso... e de repetição

GULA. Qual é coisa qual é ela que dá para rir, já foi vista vezes sem conta e que não exige muito dos neurónios de quem assiste? Os filmes da tarde dos canais privados no fim-de-semana. As fórmulas seguras são as mesmas há mais de uma década. Desde o São Bernardo que baba toda a gente até ao «pestinha» que estraga festas de aniversário alheias, tudo serve para conquistar a família à custa de comédias com mais barbas que o dono do restaurante da Costa de Caparica que insiste em torcer pelo Benfica. Um exemplo? O início da tarde deste sábado, com AGARREM ESSE BEBÉ, comédia modesta, inverosímil e, por isso, irresistível apesar de sabermos de cor o que vai acontecer a seguir... por esta altura, os gémeos Worton que deram vida ao menino traquinas de cabelo loiro que desarma um bando de desastrados criminosos (liderados pelo excelente Joe Mantegna, aqui em caricatura simplista) já devem ter as borbulhas da adolescência, dado que o filme data de 1994. Já agora, fazem-se apostas para os filmes da tarde do próximo sábado na SIC... «Sozinho em Casa»? «Notting Hill»? Desde que sirva como receita gulosa (e pouco exigente) para os olhos tudo bem... E no domingo, o disco toca o mesmo, mas as preferências vão para os «blockbusters» de acção. Sempre é um «plano B» inofensivo para a invasão telenovelesca do resto da semana...

20 de março de 2007

NA SALA ESCURA: A radiografia cinematográfica do pecado

LUXÚRIA. «O Richard parece que se deu bem, o que é que ele faz? Mente.» É assim que Sarah (Kate Winslet) se justifica perante Brad (Patrick Wilson), quando este a visita em casa num dia chuvoso, já com uma tensão sexual latente. O diálogo, meramente secundário no contexto dramático de PECADOS ÍNTIMOS, é, contudo, revelador das subtilezas relacionais que esta obra-prima de Todd Field (sim, esse mesmo, o que tinha refeito o melodrama familiar em IN THE BEDROOM - VIDAS PRIVADAS) chama a si em cada cena... Já vi este filme há pouco mais de um mês, mas deixei que as implicações visuais assentassem para poder falar dele. Na verdade, esta sátira ao universo de aparências das comunidades suburbanas ocidentais (os europeus também têm muito deste jogo de falsos moralismos...) é profundamente tocante, com um sem número de implicações sociológicas, criadas a partir do núcleo central de personagens, muito bem desenvolvidas. E o que há para mostrar nesta história sobre uma mulher (soberba Kate Winslet, cada vez mais a confirmar que é uma das actrizes mais audazes da sua geração... com uma justa nomeação para o Óscar de Melhor Actriz, a sua quinta!) perdida numa vida de rotinas estupidificantes que encontra um novo fôlego na relação extraconjugal com um jovem (Wilson) que é dominado socialmente pela mulher? Muito, mas também muito se esconde pelo falso trato social do dia-a-dia. E Todd Field confirma que sabe despir as suas personagens (física e psicologicamente) com o dom dos grandes contadores de histórias, porque há algo de muito humano nesta narração triste. Senão, atente-se no retrato do pedófilo (outra composição memorável, do quase desconhecido Jackie Earle Haley), a quem a mãe quer arranjar companheira, que termina o filme a confirmar ser a pessoa mais genuína (por mais grotesco que isto pareça, ou perversamente paradoxal) de uma comunidade onde os vizinhos cochicham, os pais de família têm fantasias com seres andróginos, as mulheres são mais bem sucedidas no trabalho que os homens (ao ponto de os aniquilar em matéria de ambições), os homens são violentos mas escondem-se numa máscara fundamentalista de pacifismo e as mulheres deixam-se enganar por uma paixão carnal que as faça esquecer a mediania dos seus dias. Como se vê, há muito para espreitar por detrás da capa da normalidade... e Todd Field merece o aplauso pela radiografia caleidoscópica das sociedades desenvolvidas, mas emocionalmente descompensadas de hoje. Nunca uma caricatura soube tão bem contar os vícios privados e espoletar interrogações sobre o rumo das relações humanas.

PECADOS ÍNTIMOS * * * * *
A relação desajeitada entre o casal de vizinhos que comete adultério é só o ponto de partida para um novelo ficcional profundo, que promete comprometer consciências... Todd Field reincide no dom de re-invenção do melodrama, desta vez expondo as contradições do modelo social suburbano. O filme lembra mesmo BELEZA AMERICANA mas é mais ingénuo ou mais intrinsecamente apoiado nas suas personagens. Todas elas emocionalmente instáveis. Com excelentes planos e o recurso certeiro a um narrador insípido, o filme é uma obra-prima sobre a envolvência das relações e os jogos de máscaras que toda a gente usa. O problema é quando essa máscara se confunde com a própria identidade em questão. Todd Field sabe-o e nós, esmagados por tanta ficção mascarada de realismo amargurado, vamos atrás!

BOCAS: Rosto de menino, capa de jornal

PREGUIÇA. Um diário dito de referência (termos que parecem cada vez mais antagónicos ou, pelo menos, em vias de extinção nos dias de hoje...) colocou, há poucos dias, uma chamada de capa (!) com o seguinte título «Revelação: Scarlett Johansson diz que tem cara de rapaz». Não, não foi no «24 Horas», foi mesmo num diário que costuma colocar na sua primeira página manchetes de economia ou Sócrates às voltas com o seu Governo... Percebe-se o critério jornalístico: Scarlett além de nova coqueluche cinematográfica tem rosto de diva clássica, ora preocemente madura, ora infatilmente adulta. Mas ninguém questiona a feminilidade da protagonista de LOST IN TRANSLATION ou do recente SCOOP. O que se passa é que a moça nem sempre se deve gostar de olhar ao espelho, como 99% das mulheres que entram de rompante na idade adulta e têm crises diárias de auto-estima. Afinal, faz parte do seu encanto... percebe-se mesmo esta chamada de capa: é notícia! Não o seria se fosse Hillary Swank a dizê-lo, a duplamente oscarizada actriz que até ganhou a sua primeira estatueta dourada a fazer de mulher que queria ser homem em OS RAPAZES NÃO CHORAM...

19 de março de 2007

DVD: A vida é um acto de violência

IRA. «Quanto mais nos aproximamos da esperança, menos ela nos parece bela.»A última frase que o protagonista Frankie confessa ao espectador entre dentes, na descrição da história da sua vida, não é aquela que os ouvidos mais gostavam de escutar, mas a que melhor ilustra as peripécias motivadas pela violência e pelo álcool. Nesta primeira obra do surpreendente Richard Jobson, que também escreveu o romance original (de travo semi-autobiográfico), o que conta é o realismo atmosférico, as voltas que o protagonista faz para regressar “à casa partida” – isto é, a uma existência ingénua e impoluta –, tendo uma Escócia cristalizada no tempo como cenário difuso. É bom descobrir o novo cinema europeu, nem que seja numa prateleira discreta de uma loja de DVD. Em 16 ANOS DE ÁLCOOL, há um olhar para o umbigo e um sentido existencialista que se concretiza grandemente pelas motivações e ideias cinematográficas do seu jovem realizador. Jobson filmou a história totalmente em Edimburgo e procura retratar três períodos distintos da vida de Frankie (Kevin McKidd): ele tanto é uma criança que começa a embebedar-se na pré-adolescência por não suportar a infidelidade do pai; como também o jovem adulto que gosta de responder à realidade com a violência física e a inconstância emocional; e, por fim, o ser cansado do vício, à procura da redenção, mas nem sempre capaz de evitar os malabarismos do destino. Será que o temperamento de Frankie justifica uma obra totalmente criada em seu torno? O mais possível, dado que a intenção de 16 ANOS DE ÁLCOOL é a de pegar nos dilemas da personagem principal para reflectir sobre as várias máscaras e jogos mentais que cada pessoa usa e usará ao longo da sua vida. E é nessa constatação (e, simultaneamente, na manipulação de estilos de filmagem, que conseguem reflectir estados de espírito como a interrogação ou a ira extrema), que o jovem cineasta Richard Jobson cria um ponto de vista com quase duas horas de duração e descreve as muitas mais lições de vida – e morte… – que tem para dar.

16 ANOS DE ÁLCOOL * * * *
Com planos de conjunto inventivos e muito arrojo na construção de enquadramentos emocionais, este filme é uma delícia visual. Pela forma verosímil e despojada de artifícios como a obra está construída, rapidamente se tornou fenómeno de culto. De projecto marginal, passou a coqueluche dos mais variados festivais europeus: venceu os principais prémios de interpretação dos British Independent Awards e passou pelos Festival de Locarno ou de Dinard, num sinal de reconhecimento importante. O filme não deixa de ser um reflexo da forma como poucos meios não são sinónimo de mediocridade e também sinal de que existem ideias cinéfilas no Reino Unido para lá da Inglaterra. A espaços, 16 ANOS DE ÁLCOOL quase se poderia definir como um novo Trainspotting, pelo olhar amargo de homens sem coordenadas. Apesar deste filme, que chega ao DVD numa edição sem extras além do trailer, ser mais pessoal e menos anárquico do que a obra alucinante que revelou Ewan McGregor.

13 de março de 2007

NA SALA ESCURA: Sonata do homem bom

INVEJA. Quem já teve a oportunidade de ver o filme a que dedico esta breve recensão, rapidamente o identificou com o título em cima. Quem ainda não o fez, sublinhe-se que está a perder um belíssimo monumento ao cinema poético, feito de convicções e de um olhar para as contradições de uma Alemanha dilacerada pela guerra, mas onde se vislumbra uma réstia de esperança. Profundamente emocional, AS VIDAS DOS OUTROS é um modelo consciencioso do novo cinema alemão (curiosamente, um dos temas da programação do próximo IndieLisboa, já em Abril...), que parte das cicatrizes da história recente do país para lhes extrair mensagens sociológicas que valem por partirem de dentro, num sinal de maturidade digno de registo. E de causar inveja... por exemplo, ao trôpego cinema português que ainda hoje não foi capaz de traduzir por imagens realmente sensíveis capítulos da sua mais recente História, como o Estado Novo ou a guerra colonial. Por isso mesmo, esta obra, justamente galardoada com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (e destronando o crepúsculo metafórico de O LABIRINTO DO FAUNO, de Guillermo Del Toro), é digna de aplauso: por olhar por entre as ranhuras de uma Alemanha partida em duas, obcecada pela vigilância e pouco condescendente com ímpetos revolucionários. Contudo, incapaz de lidar com as contingências sociológicas mais íntimas, até porque a repressão ainda não consegue chegar ao lugar fundo da consciência (ou, pelo menos, não deve). Florian Henckel von Donnersmarck dá uma aula de poesia visual de tonalidades clássicas e, embora a frieza estética que caracteriza o filme e até um certo pensamento alemão, não obnubila a envolvência, que se pressente por completo. E quem aceita este desafio, sai no final com a alma redobrada e com a certeza de que ainda existem homens bons. Nem que seja numa sala escura.

AS VIDAS DOS OUTROS * * * *
De premissas densas, que nos são dadas a ver com a ligeireza gélida de uma Alemanha ainda espartilhada pelo socialismo reaccionário, o filme desde logo nos mostra que é a repressão a todo o custo que conta, seja para controlar vidas como tendências artísticas. O
capitão Gerd Wiesler (soberbo Ulrich Mühe) é um oficial altamente credenciado da Stasi cuja missão é espiar um celebrado escritor e a sua esposa actriz. Aquilo que começa como um serviço exemplar, rapidamente se revela um teste aos valores humanos. De uma luminosidade cinza, a obra encanta pela visão sensível por detrás de uma filmagem clássica e pouco condescendente. Os diálogos são certeiros mas o mérito deste filme é, como sempre no bom cinema, aquilo que as imagens convocam, ou seja, as sugestões mentais criadas a partir do olhar.

12 de março de 2007

Humoristas no gesto... e na palavra

SOBERBA. «Nunca esqueço uma cara, mas no seu caso abro uma excepção.» Recentemente, motivado por um «pack» de DVD à venda na Fnac por uma pechincha - que incluia o célebre clássico OS GRANDES ALDRABÕES - refresquei a memória quanto ao talento de Groucho Marx não só para o humor físico como para os trocadilhos verbais. Ele era, de facto, o mestre da duplicidade, da piada fácil, dos jogos de palavras... Considero até que era por aí a sua maior virtude e que levou os Irmãos Marx à longevidade face, por exemplo a Charles Chaplin: a capacidade de usar a técnica do som, recentemente criada na altura em que se estrearam no cinema, a favor do seu humor, coisa que «Charlot» nunca conseguiu muito bem dar a volta (o seu perfil «mimo» era a mais-valia). Por isso mesmo, recordo algumas pérolas discursivas de Groucho Marx, de fazer rir sem precisar de um gesto. Para contradizer a ideia de que a «stand-up comedy» é fenómeno recente.

1) «O casamento é uma maravilhosa instituição. Mas quem é que quer viver numa instituição?»
2) «Inteligência militar é uma contradição entre termos.»
3) «Eu bebo para tornar as outras pessoas interessantes.»
4) «Só há uma maneira de saber se um homem é honesto, é perguntando-lhe. Se ele disser que sim é porque é um aldrabão.»

9 de março de 2007

NA SALA ESCURA: No outro lado do espelho

IRA. Há reminiscências do universo de «Alice no País das Maravilhas»... uma paleta de criaturas grotescas que lembram as figuras fantásticas que Peter Jackson materializou a partir do imaginário de J.R. Tolkien na trilogia de O SENHOR DOS ANÉIS. Depois, o cuidado plástico é tipicamente próximo do vanguardismo comercial europeu, casos de Jean-Pierre Jeunet em DELICATESSEN... Quando vemos a última bizarria alegórica de Guillermo Del Toro vêm-nos à cabeça um sem número de referências animadas e cinéfilas, mas esta surpresa dos últimos Óscares (venceu três categorias técnicas e ainda ultrapassou Almodóvar nas nomeações de Espanha para o Melhor Filme Estrangeiro) tem autonomia imagética e traz uma hipótese de contos de fadas para adultos, com uma maturidade às vezes inesperada. O próprio realizador avisou, por alturas da estreia mundial desta co-produção entre a Espanha e o México - país-revelação na última edição dos prémios da Academia de Hollywood... - que esta fábula passada na Guerra Franquista «era para maiores de 18». E, de facto, pouco condescente com mentes menos impressionáveis. Na verdade, se O LABIRINTO DO FAUNO é um sólido «vai-e-vem» entre uma realidade em tempo de guerra e um escape infantil para uma realidade mágica paralela, por outro mostra bem de perto os extremismos de guerra (por vezes, excessivamente maniqueístas, como é o caso da caricatura surpreendetemente coesa do vilão Sergi Lopéz), com abusadas cenas de tortura e de hemoglobina. Não se leva assim tão a peito porque se nota que a visão de Del Toro é assim mesmo: bizarramente gótica, de cores e sentimentos intensos, ao jeito das melhores histórias de um terror apaziguante pelas emoções de inocência da protagonista como do espectador. Sublinhe-se que o mundo paralelo deste filme tem as doses perfeitas de inventividade e mistério, sendo o ponto menos forte do filme a realidade bélica em torno da doce Ofélia... Mesmo assim, o real é só um pretexto para entrarmos pelas portas desenhadas a giz de um universo que não é mais do que uma metáfora existencialista e colorida para o nosso mundo real, bem mais cinzento e violento... O poder da imaginação é a chave deste filme, numa ambivalência sensorial à semelhança do que encontrámos em CRÓNICAS DE NÁRNIA, A NOIVA CADÁVER ou até mesmo em A VIDA É BELA. Porém, em O LABIRINTO DO FAUNO, a sensação é a de se estar a pisar um terreno movediço de ideias hiperbólicas pela primeira vez. A vida no outro lado do espelho é a que apetece viver...



O LABIRINTO DO FAUNO * * *
Este conto de fadas mais adulto do que infantil ganhou forma muito por culpa da onda de fascínio pelo fantástico que o cinema comercial tem vindo a produzir sem questionar. Porém, Guillermo Del Toro sabe bem para onde conduzir a doce Ofélia e onde nos levar a nós espectadores: por um jogo de enigmas que traduzem os dilemas de um país dilacerado por uma guerra injusta. As pontes de ligação entre real e ficção estão bem desenhadas, os contornos expressionistas da divagação da protagonista também... O que falha é só a caricaturização do conflito bélico, o excesso de violência e um momento ou outro mais previsível. No final, o que sobressai desta história são, contudo, belíssimas sequências plásticas e a descrição de um mundo onde apetece espreitar.

4 de março de 2007

O sangue novo dos clássicos

AVAREZA. Entrou de mansinho nos escaparates das lojas de DVD e apresentou, desde logo, capas homegeneizadas para sublinhar uma marca, que se pretende de prestígio e um sentido poético do cinema. A editora Midas quer ser discreta e tem um propósito que os cinéfilos mais atentos já compreenderam: ser a alternativa em matéria de lançamentos, procurando colocar no mercado aquilo que as «majors», desejosas de números, deixam escapar. E, assim, em poucos meses, a Midas mostrou-nos as visões documentais de Martin Scorsese do neorealismo italiano e do cinema clássico de Hollywood; apresentou obras ainda inéditas do mercado de realizadores como John Cassavetes, André Téchiné, Abbas Kiarostami ou Claude Chabrol; e promete, nos próximos tempos, continuar a desvendar imagens com lugar garantido na história do cinema, mas que teimam em não chegar a edições de relevo nas lojas portuguesas. Só por isso, a Midas merece o meu voto de confiança. E é bom vê-la a constituir um excelente contraponto à Atalanta Filmes, editora sólida que aposta nas múltiplas cinematografias deste nosso planeta, mas pouco dada a recuos temporais. Este fim-de-semana, tive a oportunidade de ver A GRANDE ESPERANÇA, de John Ford. Uma obra que havia perdido nas poucas exibições que teve na Cinemateca, mas que agora já a posso conservar num lugar privilegiado da minha videoteca. É essa a vantagem do DVD: imortalizar as obras, tornar a sua mensagem autónoma de visionamentos condicionados e permitir que, a cada nova exibição, um filme ganhe corpo e demonstre, no seu aparente realismo e fluidez visual, as subtilezas abstractas de realizadores maiores. Que nunca se deixam empoeirar pelo tempo... Se continuar com a maturidade referencial do seu catálogo, a Midas vale... ouro!

A GRANDE ESPERANÇA * * * * *
Dirigido em 1939, «Young Mr. Lincoln», no título original, é uma biografia daquele que viria a ser o primeiro Presidente dos Estados Unidos. Mas não é excessiva, heróica, antes um olhar de antevisão para o homem que viria a moldar os destinos de uma América à procura de um rumo. Só John Ford poderia metaforizar o percurso deste político, recorrendo à sua poderosa veia humanista e tradicional, e construindo um ser humano nas suas multiplicidades. Lincoln é aqui um homem dilacerado pela tragédia afectiva, que decide contornar a apatia, por uma vontade em confrontar o mundo com o que é certo e errado. Henry Fonda é, por isso, o Lincoln perfeito (apesar do nariz postiço, que Nicole Kidman também teve de usar para ser Virginia Wolf em AS HORAS), astuto e lacónico, mentor de uma comunidade à procura de coordenadas. Se o filme começa como melodrama social, rapidamente se transforma num poderoso caso de tribunal, após um misterioso assassinato (e filmado de um belíssimo ponto de vista...) numa festa de aldeia. É aqui que se esgrimem os melhores argumentos e que Ford nos mostra como é engenhoso a contar uma história. Dolorosa, mas profundamente simbólica... Embora não seja dos títulos mais celebrados da sua enorme carreira, A GRANDE ESPERANÇA é, talvez, dos mais tocantes por nos mostrar de como são feitos os heróis: acima de tudo, de densidade humana. Uma obra-prima absoluta!

1 de março de 2007

DVD a preço de saldo, basta comprar a revista

INVEJA. Já se sabia que o custo de produção de um DVD ronda 1 euro - descontando todo e qualquer acréscimo de direitos de autor. Mesmo assim, custa ver como o suporte começa a ser usado por imprensa ávida de atrasar a quebra desmesurada do papel oferecendo filmes de qualidade, sem preço adicional. Foi desta forma que o «Expresso» combateu durante 10 semanas o aparecimento do «Sol» e é assim que a «Visão» começou esta quinta-feira a querer travar a «Sábado» e a forçar os leitores a multiplicarem-se graças a filmes de qualidade que, no total, ficam por 2,75 euros (o preço da revista). Obviamente, que este é um investimento que não pode trazer benefícios comerciais aos órgãos de comunicação que nele apostam... Porque implica suportar custos razoáveis nos já referidos direitos de autor. Mas esta é também uma estratégia eficaz para, pelo menos durante o período em que vigora a promoção, aumentar as tiragens e, assim, elevar o preço junto dos anunciantes... No fundo, um jogo de interesses, quando os mais interessados são mesmo os consumidores ainda algo surpreendidos com as ofertas. Confesso que, embora já tenha o SEVEN - primeiro filme que sai hoje com a «Visão» -, vou estar atento às edições de OS OUTROS, HOTEL RUANDA e FRIDA, curiosamente três obras sólidas ainda a faltar na minha videoteca. E avisam-se os mais distraídos: a revista «Volta ao Mundo» de Março, traz também consigo filmes em DVD sem custo adicional (que, creio, serem as sobras dos DVD há meses saídos com o «DN» e «JN», jornais do mesmo grupo). Uma oportunidade de ouro para adquirir filmes como A ÚLTIMA HORA, ALTA FIDELIDADE, A CASA DA FELICIDADE ou NOTTING HILL por apenas 3,50 euros (o preço de capa da revista). Quando é que chegará o dia que nos vão pagar para termos DVD? Mal posso esperar...