20 de março de 2007

NA SALA ESCURA: A radiografia cinematográfica do pecado

LUXÚRIA. «O Richard parece que se deu bem, o que é que ele faz? Mente.» É assim que Sarah (Kate Winslet) se justifica perante Brad (Patrick Wilson), quando este a visita em casa num dia chuvoso, já com uma tensão sexual latente. O diálogo, meramente secundário no contexto dramático de PECADOS ÍNTIMOS, é, contudo, revelador das subtilezas relacionais que esta obra-prima de Todd Field (sim, esse mesmo, o que tinha refeito o melodrama familiar em IN THE BEDROOM - VIDAS PRIVADAS) chama a si em cada cena... Já vi este filme há pouco mais de um mês, mas deixei que as implicações visuais assentassem para poder falar dele. Na verdade, esta sátira ao universo de aparências das comunidades suburbanas ocidentais (os europeus também têm muito deste jogo de falsos moralismos...) é profundamente tocante, com um sem número de implicações sociológicas, criadas a partir do núcleo central de personagens, muito bem desenvolvidas. E o que há para mostrar nesta história sobre uma mulher (soberba Kate Winslet, cada vez mais a confirmar que é uma das actrizes mais audazes da sua geração... com uma justa nomeação para o Óscar de Melhor Actriz, a sua quinta!) perdida numa vida de rotinas estupidificantes que encontra um novo fôlego na relação extraconjugal com um jovem (Wilson) que é dominado socialmente pela mulher? Muito, mas também muito se esconde pelo falso trato social do dia-a-dia. E Todd Field confirma que sabe despir as suas personagens (física e psicologicamente) com o dom dos grandes contadores de histórias, porque há algo de muito humano nesta narração triste. Senão, atente-se no retrato do pedófilo (outra composição memorável, do quase desconhecido Jackie Earle Haley), a quem a mãe quer arranjar companheira, que termina o filme a confirmar ser a pessoa mais genuína (por mais grotesco que isto pareça, ou perversamente paradoxal) de uma comunidade onde os vizinhos cochicham, os pais de família têm fantasias com seres andróginos, as mulheres são mais bem sucedidas no trabalho que os homens (ao ponto de os aniquilar em matéria de ambições), os homens são violentos mas escondem-se numa máscara fundamentalista de pacifismo e as mulheres deixam-se enganar por uma paixão carnal que as faça esquecer a mediania dos seus dias. Como se vê, há muito para espreitar por detrás da capa da normalidade... e Todd Field merece o aplauso pela radiografia caleidoscópica das sociedades desenvolvidas, mas emocionalmente descompensadas de hoje. Nunca uma caricatura soube tão bem contar os vícios privados e espoletar interrogações sobre o rumo das relações humanas.

PECADOS ÍNTIMOS * * * * *
A relação desajeitada entre o casal de vizinhos que comete adultério é só o ponto de partida para um novelo ficcional profundo, que promete comprometer consciências... Todd Field reincide no dom de re-invenção do melodrama, desta vez expondo as contradições do modelo social suburbano. O filme lembra mesmo BELEZA AMERICANA mas é mais ingénuo ou mais intrinsecamente apoiado nas suas personagens. Todas elas emocionalmente instáveis. Com excelentes planos e o recurso certeiro a um narrador insípido, o filme é uma obra-prima sobre a envolvência das relações e os jogos de máscaras que toda a gente usa. O problema é quando essa máscara se confunde com a própria identidade em questão. Todd Field sabe-o e nós, esmagados por tanta ficção mascarada de realismo amargurado, vamos atrás!

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