4 de março de 2007

O sangue novo dos clássicos

AVAREZA. Entrou de mansinho nos escaparates das lojas de DVD e apresentou, desde logo, capas homegeneizadas para sublinhar uma marca, que se pretende de prestígio e um sentido poético do cinema. A editora Midas quer ser discreta e tem um propósito que os cinéfilos mais atentos já compreenderam: ser a alternativa em matéria de lançamentos, procurando colocar no mercado aquilo que as «majors», desejosas de números, deixam escapar. E, assim, em poucos meses, a Midas mostrou-nos as visões documentais de Martin Scorsese do neorealismo italiano e do cinema clássico de Hollywood; apresentou obras ainda inéditas do mercado de realizadores como John Cassavetes, André Téchiné, Abbas Kiarostami ou Claude Chabrol; e promete, nos próximos tempos, continuar a desvendar imagens com lugar garantido na história do cinema, mas que teimam em não chegar a edições de relevo nas lojas portuguesas. Só por isso, a Midas merece o meu voto de confiança. E é bom vê-la a constituir um excelente contraponto à Atalanta Filmes, editora sólida que aposta nas múltiplas cinematografias deste nosso planeta, mas pouco dada a recuos temporais. Este fim-de-semana, tive a oportunidade de ver A GRANDE ESPERANÇA, de John Ford. Uma obra que havia perdido nas poucas exibições que teve na Cinemateca, mas que agora já a posso conservar num lugar privilegiado da minha videoteca. É essa a vantagem do DVD: imortalizar as obras, tornar a sua mensagem autónoma de visionamentos condicionados e permitir que, a cada nova exibição, um filme ganhe corpo e demonstre, no seu aparente realismo e fluidez visual, as subtilezas abstractas de realizadores maiores. Que nunca se deixam empoeirar pelo tempo... Se continuar com a maturidade referencial do seu catálogo, a Midas vale... ouro!

A GRANDE ESPERANÇA * * * * *
Dirigido em 1939, «Young Mr. Lincoln», no título original, é uma biografia daquele que viria a ser o primeiro Presidente dos Estados Unidos. Mas não é excessiva, heróica, antes um olhar de antevisão para o homem que viria a moldar os destinos de uma América à procura de um rumo. Só John Ford poderia metaforizar o percurso deste político, recorrendo à sua poderosa veia humanista e tradicional, e construindo um ser humano nas suas multiplicidades. Lincoln é aqui um homem dilacerado pela tragédia afectiva, que decide contornar a apatia, por uma vontade em confrontar o mundo com o que é certo e errado. Henry Fonda é, por isso, o Lincoln perfeito (apesar do nariz postiço, que Nicole Kidman também teve de usar para ser Virginia Wolf em AS HORAS), astuto e lacónico, mentor de uma comunidade à procura de coordenadas. Se o filme começa como melodrama social, rapidamente se transforma num poderoso caso de tribunal, após um misterioso assassinato (e filmado de um belíssimo ponto de vista...) numa festa de aldeia. É aqui que se esgrimem os melhores argumentos e que Ford nos mostra como é engenhoso a contar uma história. Dolorosa, mas profundamente simbólica... Embora não seja dos títulos mais celebrados da sua enorme carreira, A GRANDE ESPERANÇA é, talvez, dos mais tocantes por nos mostrar de como são feitos os heróis: acima de tudo, de densidade humana. Uma obra-prima absoluta!

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