31 de dezembro de 2006

CINEFILIA: A Europa à procura de um lugar na animação

... E, subitamente, o SIN CINEMA tenta re-inventar-se de novo, quando ainda há bem pouco tempo sofreu um "lifting" para melhorar a leitura dos poucos (mas fiéis) "pecadores das imagens". A mudança, desta vez, que coincide com a entrada em grande em 2007, prende-se com uma renovação de conceito: criar ciclos semanais, apostando no facto da semana ter tantos dias quanto o número de pecados. Assim, tentarei passar a sugerir um tema que se estenderá por sete pecados visuais e uma análise mais profunda do tema escolhido. Nesta primeira abordagem "SIN CINEMA - 7ª arte como 8º pecado capital", o destaque vai inteirinho para a animação de raíz europeia, a propósito da estreia de ARTUR E OS MINIMEUS, de Luc Besson. O filme estreou-se como promessa infantil de Natal e impressionou à partida pelos valores de produção envolvidos - nada mais nada menos do que 65 milhões de euros!! As receitas, até ao momento, têm estado aquém das expecativas, até porque o "target" da obra (com vozes de Madonna, Freddie Highmore, Robert DeNiro ou Snoop Dogg) parece demasiado abaixo das produções da PIXAR, que se esforçam por criar histórias e estéticas visuais que possam ser consumidas tanto pelo avô como pelo neto. Com um brilhante tratamento digital na animação (embora combine também uma acção em imagem real), ARTUR E OS MINIMEUS carece, ainda assim, de algo mais do que a componente de fábula fantástica. A dinâmica das personagens é pobre e o sentido de humor poderia ser também mais apurado... Um chavão que, na verdade, se constata nas mais recentes tentativas do cinema europeu em fazer sombra ao apogeu norte-americano na matéria. O que se passa nas duas indústrias é, essencialmente, um défice de boas histórias e o caso europeu revela-se ainda mais vulnerável quando tenta compensar fracas premissas dramáticas com projectos oníricos de pouca densidade... Exemplos? SONHO DE UMA NOITE DE SÃO JOÃO, obra que se estreou no ano passado e que, acima de tudo, tem o mérito de representar a entrada de uma produtora luso-galaica, a Dygra Filmes, no território lucrativo das longas-metragens de animação digital (está, entretanto, a ser preparada uma nova obra em torno do herói Viriato). Aos poucos, a animação alarga-se a cada vez mais espectadores, mas nem sempre o excesso de oferta é proporcional à qualidade dos resultados finais. Nisso, os Estados Unidos continuam a liderar a técnica e o engenho narrativo. Nós, europeus, lá vamos tentando fazer frente e à procura da nossa "Amélie Poulain" animada...


ARTUR E OS MINIMEUS * *
Pecado:
Soberba
Luc Besson deixou no ar a hipótese de se retirar do cinema, mas voltou atrás para realizar a trilogia que escreveu primeiro em livros. O primeiro filme ainda se encontra em exibição nas salas e foi apresentado como a grande promessa deste Natal. Acima de tudo, trata-se de um enorme fogo-de-artifício visual, com belíssimas imagens digitais, uma história enternecedora de seres mágicos que habitam um jardim. Fora isso, sente-se que há muito dinheiro para uma fábula demasiado infantil. Realce-se, contudo, o regresso de Mia Farrow.

SONHO DE UMA NOITE DE SÃO JOÃO * *
Pecado: Preguiça
Produção luso-galaica já disponível em DVD, esta obra onírica cumpre todos os requisitos do filme europeu de animação pouco convincente: animação a precisar de ser afinada, má gestão dramática, infantilização das personagens e um universo mágico muito acentuado. Trata-se das aventuras de uma jovem por um mundo de fantasia, de forma a poder recuperar a crença do pai cientista no seu trabalho. Vale, sobretudo, pelo esforço.

BELLEVILLE RENDEZ-VOUS * * * *
Pecado:
Gula
O cinema de animação europeu não tem nada a perder com a noção de autor. Que o diga Sylvain Chomet, criador de um dos mais estimulantes filmes animados dos últimos anos, capaz de restituir um classicismo francês não só na história como no traço. As peripécias de Madame Souza para recuperar o seu neto, raptado na América, são deliciosas e revelam um imaginário visual (e musical) único. Nomeado para o Óscar de Melhor Filme de Animação.

A SUSPEITA * * * *
Pecado:
Avareza
No campo da animação com bonecos de espuma e movimento "stop motion", nós por cá (ou melhor o hercúleo trabalho de José Miguel Ribeiro) demos nas vistas com esta curta-metragem de pouco mais de 20 minutos sobre um crime "à la Hitchcock" que decorre numa viagem de comboio. Perfeccionismo artístico e boa criação de personagens, num filme vencedor do Cartoon D'Or, recentemente lançado em DVD.

PINÓQUIO 3000 *
Pecado:
Luxúria
Em filme infantil, não há certamente um explícito pecado de luxúria. Esta escolha vai para o olhar lânguido da fada desta versão futurista do conto de Carlo Collodi, que é mulata, tem formas voluptuosas e fala com sotaque crioulo... (!?) Quem se lembrou desta e de outras deturpações não tem qualquer sentido crítico e o filme falha em todas as frentes. A versão de Benigni é... (custa dizer) melhor!

O SALTA-POCINHAS * *
Pecado: Inveja
2005 foi um ano com muitas estreias de animação europeia e esta... foi só mais uma! Produção belga que se limita a retirar fórmulas de outras fábulas já existentes vai, inclusivamente, repescar a figura medieval de O Salta-Pocinhas (por cá bem melhor imortalizada em livro por Aquilino Ribeiro), a raposa espertalhona que promete salvar o reino de uma conspiração. Resta, apesar de tudo, um bom sentido de ironia para compensar uma animação digital ainda muito presa a arquétipos.

VALIANT - OS BRAVOS DO POMBAL * * *
Pecado: Ira
Por ser um filme passado na II Grande Guerra, esta obra britânica tem talvez as cenas mais agressivas dos exemplos mostrados. Mas não deixa de ser uma longa-metragem infantil bem intencionada, que recorda a importância dos pombos-correio nos cenários de batalha. De todos os sete filmes, é talvez o mais aproximado dos padrões americanos, quer pela animação mais descomplexada, quer pelo moralismo e as peripécias bem imbricadas na história. Contudo, fracassou nas bilheteiras.

28 de dezembro de 2006

Os 10 pecados cinéfilos de 2006

As listas começam a surgir, à medida que esmorecem as estreias de Natal e se aguardam as primeiras grandes estreias do ano – elas começam a chegar como é o caso de BABEL e O TERCEIRO PASSO... Como traçar um retrato do ano cinematográfico? Bem diversificado, com poucos filmes que realmente merecem ser recordados mais tarde, um excesso de animação e... cinema português débil (o único êxito considerável é mais uma adaptação de uma peça de teatro e de uma "sitcom" televisiva. O segredo, contudo, está em saber escolher. E não é assim tão difícil assinalar os 10 pecados cinéfilos de 2006. Eis a minha lista:

10 - VOLTAR
Pedro Almodóvar regressou à sua homenagem feminina e ao território dos romances de cordel com uma pitada de fantástico. Não é a sua obra mais sólida, é antes um bom regresso à sensualidade humorística.

9 - A CIÊNCIA DOS SONHOS
Embora massacrada por parte da crítica nacional, este delírio de Michel Gondry consegue desprender-se dos argumentos de Charlie Kaufman e ter asas para seguir sozinho. Onírico, ingénuo e iconoclasta é, essencialmente, um belíssimo conto de amor.

8 - JUVENTUDE EM MARCHA
Pedro Costa criou este ocaso para a sua trilogia dedicada aos personagens reais do Bairro das Fontainhas. Denso, este docudrama distorce as convenções do realismo e apresenta retratos doridos de pessoas à espera de um rumo.

7 - A LULA E A BALEIA
Além do bom exemplo de UMA FAMÍLIA À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS, o cinema "indy" norte-americano deu nas vistas neste melodrama sobre as consequências de um divórcio junto de dois jovens. Sente-se o dedo de Wes Anderson (aqui mero produtor), na atenção aos pormenores cénicos e narrativos.

6 - O MUNDO
Um parque de diversões oriental, em que todos os monumentos do mundo possuem réplicas, dá o mote a este drama crepuscular sobre vidas desmembradas numa China cosmopolita. A vida suburbana contrasta com uma visão de aparente globalização onde a tragédia acaba por se revelar.

5 - BOA NOITE, BOA SORTE
George Clooney supera-se neste belíssimo retorno à "Caça às Bruxas", desta vez centrando a óptica no jornalismo. O tratamento da imagem a preto-e-branco é de pura antologia, bem como o desempenho de David Stratheirn.

4 - ENTRE INIMIGOS
Spike Lee aliviou o seu estilo com um filme de golpe, mas Martin Scorsese, que fez o mesmo, saiu-se melhor: embora seja um "remake", este jogo dúplice de agentes infiltrados ganha pelos toques de mestre de Scorsese e pelas interpretações grandiosas de Nicholson, DiCaprio e Damon.

3 - O NOVO MUNDO
Outra das surpresas do ano, vem pelas mãos do perfeccionista e atípico Terrence Malick: uma visão crepuscular de Pocahontas, com belíssimos ambientes e uma gestão dramática de perder o fôlego. É também o filme-redenção de Colin Farrell, depois do desaire de ALEXANDER.

2 - MATCH POINT
Woody Allen ainda consegue inovar: desta vez, com um drama surpreendente, um teste às convicções humanas, rodado em Londres e ao som de ópera. Talvez por isso, esta tocante história seja o seu melhor filme nos últimos anos. Não é só uma questão de sorte... é também de génio!

1 - UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA
O cineasta das mutações orgânicas preferiu a transformação de atitude em nome de um passado que se quer obscuro. Poderá o mesmo homem ter duas faces? Viggo Mortensen é a pessoa certa para o responder, numa poderosa tese sobre a desconstrução de um monstro por detrás de uma pessoa normal. Cronenberg cria o seu mais sólido objecto de cinema, com uma direcção soberba e ainda uma participação minúscula e irresistível de William Hurt. O pecado de 2006 é claro: a IRA.

25 de dezembro de 2006

Um Natal como peixe na água

Quando, neste período, se liga um canal de televisão (o electrodoméstico mais universal neste tipo de encontros familiares), o cenário nem sempre é o mais aliciante: filmes que repetem todos os anos desde que me lembro (tipo MÚSICA NO CORAÇÃO ou E.T. - O EXTRATERRESTRE), versões manipuladas de novelas já existentes (quem se lembrou de "Morangos com Açúcar - Férias de Natal"?), galas intermináveis com música ligeira portuguesa (quase sempre tão ligeira que nunca é levada à sério, nem pela plateia que está presente nos estúdios) ou uma muita rara emissão de circo de prestígio no segundo canal. Embrenhado que estou pelos prazeres da animação, este Natal, o pequeno ecrã pertence à SIC. Não só porque escolheu transmitir À PROCURA DE NEMO no dia de hoje, como o vai fazer num horário consensual: o início de tarde. Uma excelente medida de bom gosto, já recompensada pela exibição de outros filmes de animação. Neste caso, a aposta é imbatível: trata-se da melhor animação dos estúdios Disney dos últimos anos, que parece sintetizar na perfeição a tradição das fábulas clássicas da animação, com o prodígio visual das técnicas digitais de ponta, mérito da PIXAR. Sedenta de audiências, a SIC tem o trono garantido, porque não só À PROCURA DE NEMO deve juntar a família em volta da televisão, como transmite as emoções que todos temos nestes dias à flor da pele: estar mais próximos daqueles que nos ajudam a perceber o que somos.

Pecado do Dia:
Inveja

À PROCURA DE NEMO
SIC, 14.15 * * * * *
A Pixar promete ser para o século XXI o que a Disney foi para o século XX: ser o estúdio que dita as coordenadas em matéria de animação, conquistando milhões nas bilheteiras e dando excelentes lições de como contar uma boa história. Com uma diferença: depois de alguns percalços, a Disney continua a deter a Pixar, sinal de que quer continuar a reinar neste novo século, onde tanta animação parece querer despontar (muitas vezes, mais preocupada com os cifrões do que com a novidade). À PROCURA DE NEMO é por tudo isso o melhor exemplo de como a tradição só tem a ganhar com os novos tempos. É tão perfeita a alegoria das profundezas do mar, em matéria de organização sociológica, como o traço, o movimento dos peixes, a criação de ironias (os tubarões que querem ser vegetarianos...) e a procura consistente das dimensões moralistas da fábula. Nunca como nesta longa-metragem o património da animação se combinou tão bem com as tendências visuais de ponta... E tudo a partir de uma história simples, até nem muito criativa: limita-se a um peixe-palhaço que se separa do seu pai e vai parar ao aquário de um dentista. Resta a Merlin, o pai, seguir viagem e não desistir enquanto não consegue trazer de volta o peixe que dá nome a esta obra que foi um dos maiores êxitos de animação e Óscar de Melhor Filme do género.

19 de dezembro de 2006

NA SALA ESCURA: Da plasticina para os píxeis

... Em período de festividades natalícias, também eu me rendi à animação. Não há nada a fazer: é tempo de convívio familiar e de desenhos animados. Até mesmo os adeptos fervorosos de "stop motion" Nick Park e Steve Box aceitaram produzir uma obra de financiamento norte-americano em que as doces figuras de plasticina já surgem convertidas aos prodígios do píxel. POR ÁGUA ABAIXO é o divertimento certo para este Natal, com poucos concorrentes à altura, mas já deixa saudades o lado artesanal a que associámos esta dupla. A realização coube desta vez a David Bowers (argumentista de O GANG DOS TUBARÕES), mas é o dedo da produtora britânica que sobressai na construção da história, nos diálogos saborosos e no humor cáustico. Segundo consta, a razão pela opção do digital deve-se às inúmeras cenas envoltas em água (elemento difícil de lidar com os materiais dos bonecos deliciosos da Aardman Productions) e nem tudo correu bem com esta longa-metragem: o orçamento roçou os 150 milhões de dólares e a Dreamworks fez demasiadas pressões sobre a realização. Resultado: nos próximos trabalhos, a Aardman promete voltar a caminhar sozinha. Ainda assim, POR ÁGUA ABAIXO não perdeu com estes solavancos e é um dos mais divertidos filmes de animação desde SHREK. Na verdade, neste Natal, nunca o esgoto pareceu tão apetecível...


Pecado do Dia: Soberba
POR ÁGUA ABAIXO
Nas Salas (Dreamworks) * * *
Os meios são muitos... nota-se na multiplicidade de peripécias em que se envolvem os ratos Roddy (voz de Hugh Jackman) e Rita (voz de Kate Winslet) nesta aventura pelo cano abaixo. O que parece foi que a tradicional história de Rato do Campo, Rato da Cidade foi invertida para os tempos modernos de consumismo e, mesmo nas grandes urbes, existem duas categorias de roedores: os que vivem na pompa de uma habitação e os que convivem no lodo do esgoto. Esta alegoria civilizacional funciona como uma luva para criar as mais diversas personagens e brincar com os preconceitos sociais. Se Roddy é um betinho por ter vivido sempre como animal doméstico, percebe que o mundo no esgoto pode funcionar em comunidade. Nesta fábula distorcida, devido ao ritmo incansável e ácido do humor, a moral está lá, dissimulada, e até mesmo o vilão é patético... O mais importante é a diversão e há momentos de antologia neste novo prodígio digital - as lesmas canoras, o sapo mimo, a habitação oscilante onde Rita convive com a família e algumas armas utilizadas para combater o mal (alguém pensou num pacote de natas para deter um inimigo numas claras em castelo?). Se não for levada demasiado a sério a fragilidade narrativa, POR ÁGUA ABAIXO mantém-se bem à tona enquanto objecto lúdico para todas as idades. O que é que se pode querer mais neste período de festas?

15 de dezembro de 2006

NA SALA ESCURA: Sagas fantásticas rimam sempre com Natal

... O que fazer quando não se pode estender mais a obra de Tolkien (apesar de estar já em pré-produção uma adaptação de HOBBIT) e as aventuras de Harry Potter não conseguem estrear-se com a brevidade que os grandes estúdios desejariam? Procurar potencial literário em outras sagas impregnadas de fantasia e aura medieval. No ano passado, a época natalícia foi dominada por AS CRÓNICAS DE NÁRNIA, mas o resultado foi pouco entusiasmante, motivado por bons meios mas pouca capacidade para amuderecer o ritmo onírico da narrativa e encenar condignamente as batalhas de acção. Este ano, o fantástico volta a marcar presença nas salas e ERAGON é já o candidato principal a campeão de bilheteiras no território do filme fantástico. Parte também de um êxito-surpresa literário (a obra milionária homónima do jovem Christopher Paolini) e tem todos os ingredientes para ser um êxito: histórias com dragões, efeitos especiais de ponta, um enredo pouco complexo, Jeremy Irons e John Malkovich para dar um toque de prestígio à história... e o ímpeto juvenil (mais heróico que HARRY POTTER). Cinema novo... é que nem por isso!

Pecado do Dia: Ira
ERAGON
Nas salas (Castello Lopes) * * *
Eragon (interpretado pelo estreante Edward Sleepers) vive num tempo de temor, dado o domínio territorial do vilão Galbatorix (John Malkovich, num desempenho caricatural tão secundário que roça a figuração), que aniquilou todos os Cavaleiros que lhe pudessem fazer frente. O que não contava era com um ovo de dragão que vai parar às mãos do protagonista e que promete instaurar uma nova ordem de resistência. Com esta obra, o estreante Stefen Fangmeier tem a possibilidade de se estrear no cinema pela porta do grande espectáculo. O resultado, embora pouco inventivo, é competente. Na verdade, ERAGON cumpre todos os requisitos do espectáculo, é verosímil na criação dos dragões, não se dispersa em narrativas secundárias, deixa em aberto a produção de novos capítulos e ainda apresenta um bom desempenho de Jeremy Irons, na pele do obrigatório mentor do protagonista. Magia juvenil, boas cenas de acção e ainda um minúsculo desempenho da cantora Joss Stone dão forma a mais um conto fantástico. Que só fraqueja se se considerar a trilogia de O SENHOR DOS ANÉIS como base de referência.

11 de dezembro de 2006

NA SALA ESCURA: Docudrama despedaçado

... O "timing" da estreia de JUVENTUDE EM MARCHA pode não ser o mais adequado – já se sente o Natal em todos os cantos – ou daí talvez seja o oposto: este novo "murro no estômago" de Pedro Costa alerta para os contrastes urbanos, ou melhor ilustra-os simplesmente, pelo que é até neste período de muito consumismo e suposto sentimento de partilha e união familiar que o embate com este belo e grotesco documento dividido entre a ficção e o documentário de autor (afinal, as personagens são de carne e osso, bem como os espaços onde habitam) pode ser mais forte. Um retrato denso, conduzido por Ventura, o pai de todos e de ninguém. Ou melhor, um anti-Pai Natal, que com a simples presença acaba por dar lições de humanidade a seres à procura de um rumo.

Pecado do Dia: Avareza
JUVENTUDE EM MARCHA
Nas salas (Atalanta Filmes) * * * *
O Bairro das Fontainhas, na Amadora, volta a ser o cenário desfragmentado que Pedro Costa recorreu para criar o seu ocaso de uma trilogia iniciada com OSSOS e estendida com NO QUARTO DE VANDA. Neste seu derradeiro capítulo, o desnorte mantém-se motivado pela possibilidade das personagens passarem para outras habitações, que possibilitam novas condições mas não amparam o desnorte. JUVENTUDE EM MARCHA é, por isso, uma nova poesia triste e melancólica, traduzida pelo olhar pesado de Ventura e por um revisitar tocante sobre algumas personagens (seres humanos, reais) já conhecidas. E o cineasta, que não passou despercebido no último Festival de Cannes, volta a interrogar as inquietações de pessoas à deriva sem procurar dar resposta ou ceder a moralismos. Resta uma combinação negra de drama e observação documental de poucos meios, que possibilitam ao cinema transgredir as suas noções elementares em nome de um olhar. Acima de tudo, um olhar. Despedaçado, carregado de manchas turvas, mas um simples olhar. Que se estende por quase três horas de duração. Este talvez seja o único ponto fraco de JUVENTUDE EM MARCHA, porque torna a obra mais difícil de digerir. No entanto, o toque dramático das vidas em foco, a atenção aos pormenores, a beleza-fealdade cénica tornam este um dos mais sólidos e intensos filmes nacionais. E com uma temática tão forte, nunca poderia ser fácil de digerir. E de assimilar.

8 de dezembro de 2006

Mudar de máscara como Welles

... "É preciso mudar alguma coisa para que fique tudo na mesma." A máxima ficou famosa no clássico O LEOPARDO de Visconti e é aqui apropriada para introduzir um ligeiro "refresh" no SIN CINEMA - o primeiro desde a sua fundação. O conceito, embora não estanque, mantém-se inalterado e o que se pretende, essencialmente, é que estes breves apontamentos sobre obras de todos os tempos (e disponíveis seja em cinema, DVD ou televisão) tenham uma leitura mais atraente. No fundo, seguir sugestões que, a pouco e pouco, começam a chegar dos primeiros leitores assíduos deste modesto "blogue". Ideias há muitas, tempo para as concretizar é que nem por isso... Assim, sem grandes compromissos, além de continuar a encarar a Sétima Arte como 8.º Pecado Capital (como é que eu me lembrei disto?!), tentarei identificá-las melhor. E quem sabe produzir alguns ciclos... Para já, deixo uma recomendação para este feriado de Dezembro: o quase desconhecido RELATÓRIO CONFIDENCIAL, ou a outra realização de Orson Welles em que se percebe que O MUNDO A SEUS PÉS não foi fruto do acaso, dado os pontos de contacto entre os dois filmes.

Pecado do Dia: Soberba
RELATÓRIO CONFIDENCIAL
DVD Prisvídeo * * * *
Com o título original de MR. ARKADIN, este outro retrato megalómano de Orson Welles sobre um aristocrata que não se consegue desprender do vício do poder transmite bem a ideia de que Welles conseguiu, de facto, criar um estilo, elevando sempre o seu cinema para um nível técnico de profundidade e, respirando, já nesta etapa algo densa da sua carreira, as influências que Espanha teve no seu percurso (atente-se nas belíssimas sequências criadas durante as procissões religiosas). Porém, em RELATÓRIO CONFIDENCIAL, o magnata do título é assumidamente um vilão que consome a energia de quem o circunda e acaba por se render ao poder de forma mais perversa do que o célebre Citizen Kane. O que se pretende é o jogo de manipulação psicológica (bem construído sob a premissa de um pedido de Arkadin para que se investigue a sua vida, enquanto vai eliminando as "peças" pelo caminho), com a elipse narrativa habitual e uma composição exageradamente esculpida por Welles (aqui, já com dificuldades para levar os seus projectos de cariz imagético-literário a bom porto). No final, percebe-se que "o monstro tem pés de barro" e, em vez de "Rosebud" Mr. Arkadin possui um vínculo familiar que o pode fazer cair por terra. Mais um ponto alto numa carreira em que o cinema era força, fusão de cena com subtexto. E RELATÓRIO CONFIDENCIAL é um manancial de duplos sentidos, uma história que coloca a moral em cheque em nome de mais uma poderosa "persona". Ou máscara, se se preferir.

4 de dezembro de 2006

Quanto pesam os sonhos?

Há filmes que nos custam admitir que gostamos, que entendemos onde o realizador quis chegar, que percebemos as suas motivações e o seu estilo. Mas que sofre de um arraso global da crítica especializada e que nos leva a sentir vergonha pela empatia gerada connoso. Digo vergonha, porque na maioria das vezes há uma sintonia versátil entre aquilo que admiro e as estrelas que vejo afixadas na coluna de um jornal. Não sou detractor das classificações da imprensa, admiro os discursos cinéfilos de quem antes de eu nascer já se deliciava com os "westerns" de John Ford ou os planos aproximados e afectivos de Bergman (eu próprio tenho tentado contribuir para esse tipo de reflexão e crítica cinematográfica), mas é preciso relativizar o seu peso, até porque quem já viu muito surpreende-se com pouco. Não é obrigatoriamente um defeito, dado que apura o faro, obriga a domesticar o olhar para as "nuances" que verdadeiramente importam, mas leva a que se perca a espontaneidade de um visionamento. E é tão boa a visão ingénua de uma obra, esquecendo-nos que há uma câmara por detrás de cada cena e que tudo o que nos parece novo e imediato é o reflexo de um laborioso trabalho de argumento e realização (um filme envolve sempre, pelo menos, o empenho de duas centenas de pessoas...!). A Ciência dos Sonhos, de Michael Gondry, tem a capacidade de nos rejuvenescer por ser certeiro no modo como oscila entre a realidade e o mundo onírico de Stéphane (Gael García Bernal). A principal crítica negativa que o filme tem sofrido deve-se ao modo como Gondry, mestre da arte do "videoclip", adapta dinâmicas técnicas e visuais para o seu filme deste género estilizado, mas Gondry em vez de reduzir o seu cinema a um simulacro de um teledisco, parece que o abre para outros rumos impregnados de fantasia. E quem não gosta de sonhar numa sala escura?

Pecado do Dia: Soberba
Para quem viu e se deliciou com as deambulações pelas várias dimensões da
consciência de Jim Carrey em O Despertar da Mente, o desafio dramático proposto por Michel Gondry é mais fácil de aceitar. Desta vez, já não há um argumento alucinante de Charlie Kauffman mas antes um projecto de raiz pensado e alinhavado pelo próprio Gondry, que se revela um excelente inventor de cinema. A história de um jovem francês que, insatisfeito com o seu ofício de ilustrar calendários, começa a deixar-se dominar pela ilusão e vai construindo uma paixão genuína pela sua vizinha (Charlotte Gainsbourg), é um conto surrealista que nos propõe um desafio semelhante a A Senhora da Água de Shyamalan. A forma como ambos os filmes rompem com o cinema convencional exige uma predisposição do espectador para se deixar ir pela ilusão e, neste caso, acompanhar as consequências algo esquizofrénicas de um amor que cresce ao sabor da imaginação. Os interlúdios de fantasia, propostos por Gondry, são de uma beleza estética avassaladora e, embora excessivos, trazem contornos algo infantis a um amor do qual se espera o melhor dos finais. Pela capacidade de nos fazer sonhar, Gondry constrói um interessante novelo narrativo feito de afectos e consegue tirar partido do talento de Gael García Bernal para elevar o filme. Espera-se apenas que, no futuro, Gondry não se circunscreva a este género e consiga transpor a sua veia criativa para outros planos. A Ciência dos Sonhos é, por isso, um filme de autor para este novo século, que se constrói a partir de muitas linguagens (sejam elas visuais ou, até mesmo, verbais). * * * *