4 de dezembro de 2006

Quanto pesam os sonhos?

Há filmes que nos custam admitir que gostamos, que entendemos onde o realizador quis chegar, que percebemos as suas motivações e o seu estilo. Mas que sofre de um arraso global da crítica especializada e que nos leva a sentir vergonha pela empatia gerada connoso. Digo vergonha, porque na maioria das vezes há uma sintonia versátil entre aquilo que admiro e as estrelas que vejo afixadas na coluna de um jornal. Não sou detractor das classificações da imprensa, admiro os discursos cinéfilos de quem antes de eu nascer já se deliciava com os "westerns" de John Ford ou os planos aproximados e afectivos de Bergman (eu próprio tenho tentado contribuir para esse tipo de reflexão e crítica cinematográfica), mas é preciso relativizar o seu peso, até porque quem já viu muito surpreende-se com pouco. Não é obrigatoriamente um defeito, dado que apura o faro, obriga a domesticar o olhar para as "nuances" que verdadeiramente importam, mas leva a que se perca a espontaneidade de um visionamento. E é tão boa a visão ingénua de uma obra, esquecendo-nos que há uma câmara por detrás de cada cena e que tudo o que nos parece novo e imediato é o reflexo de um laborioso trabalho de argumento e realização (um filme envolve sempre, pelo menos, o empenho de duas centenas de pessoas...!). A Ciência dos Sonhos, de Michael Gondry, tem a capacidade de nos rejuvenescer por ser certeiro no modo como oscila entre a realidade e o mundo onírico de Stéphane (Gael García Bernal). A principal crítica negativa que o filme tem sofrido deve-se ao modo como Gondry, mestre da arte do "videoclip", adapta dinâmicas técnicas e visuais para o seu filme deste género estilizado, mas Gondry em vez de reduzir o seu cinema a um simulacro de um teledisco, parece que o abre para outros rumos impregnados de fantasia. E quem não gosta de sonhar numa sala escura?

Pecado do Dia: Soberba
Para quem viu e se deliciou com as deambulações pelas várias dimensões da
consciência de Jim Carrey em O Despertar da Mente, o desafio dramático proposto por Michel Gondry é mais fácil de aceitar. Desta vez, já não há um argumento alucinante de Charlie Kauffman mas antes um projecto de raiz pensado e alinhavado pelo próprio Gondry, que se revela um excelente inventor de cinema. A história de um jovem francês que, insatisfeito com o seu ofício de ilustrar calendários, começa a deixar-se dominar pela ilusão e vai construindo uma paixão genuína pela sua vizinha (Charlotte Gainsbourg), é um conto surrealista que nos propõe um desafio semelhante a A Senhora da Água de Shyamalan. A forma como ambos os filmes rompem com o cinema convencional exige uma predisposição do espectador para se deixar ir pela ilusão e, neste caso, acompanhar as consequências algo esquizofrénicas de um amor que cresce ao sabor da imaginação. Os interlúdios de fantasia, propostos por Gondry, são de uma beleza estética avassaladora e, embora excessivos, trazem contornos algo infantis a um amor do qual se espera o melhor dos finais. Pela capacidade de nos fazer sonhar, Gondry constrói um interessante novelo narrativo feito de afectos e consegue tirar partido do talento de Gael García Bernal para elevar o filme. Espera-se apenas que, no futuro, Gondry não se circunscreva a este género e consiga transpor a sua veia criativa para outros planos. A Ciência dos Sonhos é, por isso, um filme de autor para este novo século, que se constrói a partir de muitas linguagens (sejam elas visuais ou, até mesmo, verbais). * * * *

1 comentário:

Anónimo disse...

Também gosto desse olhar nayf de que falas. Tento abstrair-me às vezes para o conseguir, mas, vai não vai, lá estou eu a dar importância ao enquadramento do plano e à desconstrução de significantes e significados.

Às vezes gostava de limpar a memória, seria tão bom...