31 de agosto de 2006

Pausa para Marrocos

Finalmente, a pausa está a chegar. Aquela há muito aguardada, que esteve até para não vir, mas que se impõe como necessário momento de, à semelhança de um interruptor, estar desligado nem que seja por nove dias. Desta vez, as férias serão em território novo, num ponto de confluência entre África e Europa, com mercados apinhados de gente, paisagens de tonalidades quentes, regateios e passeios demorados. Marrocos é, por isso, o espaço de descompressão e de descoberta, numa sinestesia que se espera devolva a energia que, de momento, parece escassear. Por esta razão, o SIN CINEMA conhece a sua primeira pausa ao fim de dois primeiros meses de actividade intensa, com o teste de fórmulas cinéfilas com algumas (ainda poucas) visitas regulares. Aos amigos que me têm apoiado com mensagens, críticas e elogios, o meu obrigado. Prometo regressar em força, até porque o cinema continua a ser aquele lado bom do dia-a-dia que permite uma submersão por duas horas. Aquela que eu vou agora à procura por nove dias, ao vivo e a cores. Bons filmes e bons pecados!

Pecado do Dia: Preguiça

É o que se pede neste curto período de férias, apesar de, em território novo, pouco dar para descansar com a vontade de ir à procura do mundo que se desconhece. Marrocos é uma terra fértil, até como cenário para bons filmes. Que dizer do remake que Alfred Hitchcock dirigiu em 1956 de um filme seu (ainda no período britânico da sua carreira), O Homem Que Sabia Demais? Inicia-se com James Stewart e Doris Day a passearem-se por Marraquexe, num mercado agitado por comércio de rua, onde se dá um misterioso crime. Neste caso, Marrocos é apenas uma encenação prolífica para uma deliciosa conspiração que só o génio de Hitchcock conseguia concretizar, mas dá uma clara noção da multiplicidade de estilos, cores e dispersões culturais que atravessam Marrocos. Atente-se na cena da viagem de autocarro e na sequência passada num restaurante marroquino em que o casal protagonista adensa as suas suspeitas de que o desaparecimento do filho é apenas a ponta de um longo novelo. O Homem Que Sabia Demais é um dos clássicos mais exuberantes de Hitchcock, criado com meios de encher o olho, uma belíssima fotografia (que assenta como uma luva no exotismo de Marraquexe, onde decorre toda a primeira parte) e um final célebre que envolve um crime e uma orquestra - numa brilhante simbiose de som e imagem. Depois, há ainda o tema Que Sera, Sera, cantado por Doris Day e que acabaria por vencer o Óscar de Melhor Canção em 1956. Este clássico, que passa em Setembro no ciclo "Hitchcock na Esplanada" da Cinemateca, não é talvez a referência mais óbvia quando se pensa em Marrocos no cinema. Na verdade, we always have Casablanca... * * * *

28 de agosto de 2006

Cinema português "falha" na TV

Com excepção dos clássicos dos anos 40 e 50, o cinema português tem muita dificuldade não só em passar nas salas de cinema como em integrar-se nas grelhas das televisões generalistas. Há alguns anos, a SIC revelou vontade em inverter esta tendência, seja na produção de uma série de telefilmes com qualidade e arrojo acima da média para um mercado estagnado, ou no apoio a obras com potencial mediático, como o recente O Crime do Padre Amaro (que, apesar de todas as fragilidades levou às salas cerca de 400 mil pessoas a verem uma produção nacional). Na verdade, e com excepção geralmente da 2: (obrigações de um suposto serviço público?), longa-metragem em português passa sempre a horas tardias, bem perto das televendas. E isso... é quando passa, dado que a TVI, por exemplo, ignora por completo este nicho. Recentemente, a RTP1 ousou passar em horário nobre filmes de temáticas mais amplas - casos de Capitães de Abril, Fátima ou O Delfim -, mas a programação de hoje do primeiro canal é sintomática desta tendência de que não interessa a ninguém, à excepção das pessoas com insónias e olheiras carregadas, verem um filme português. Neste caso, A Falha, de José Mário Grilo, passa às 01.00. Tudo bem que o filme é uma obra menor da carreira do cineasta e professor académico, bastante desequilibrada até, mas não deixa de ser, por exemplo, uma interessante reunião de actores de prestígio, que personificam o novo cinema português. Mas quem é que quer saber disso? A maior parte deles até se apresentam durante longos meses em personagens caricaturais na rotina elementar das telenovelas!

Pecado do Dia: Ira

O que terá passado pela vontade de Mário Grilo - um dos mais interessantes teóricos do cinema vivos - em colocar uma série de personagens fechadas numa caverna forçada é um mistério (talvez houvesse uma tentativa de actualizar a metáfora de Platão, mas que foi completamente desdenhada). O que é certo é que, em A Falha, as personagens andam à deriva. Trata-se de um grupo de oito velhos amigos de escola que se reúnem muitos anos mais tarde e percebem que esse período lhes moldou a personalidade e existem uma série de assuntos por resolver. Na segunda metade do filme, há uma ruptura súbita, porque os protagonistas ficam enclausurados num acidente numa pedreira e o descalabro emocional avança sem avisar. É um jogo de ira, de violação psicológica desconexa, que desequilibra uma obra que nunca se consegue impor em matéria dramática. Resta um bom espectro de personagens e actores - Alexandra Lencastre, Rita Blanco, Rogério Samora, Adriano Luz ou Teresa Roby (no seu último papel em cinema) Mas não é assim que o cinema português se consegue aproximar do público... **

24 de agosto de 2006

NA SALA ESCURA: A maldição do filme do meio

É quase uma regra em filmes de grande dimensão: ao criar-se uma trilogia a partir de obras com elevado património narrativo, o segundo filme é (quase) sempre o que fica a perder. Algo perdido por estabelecer uma ponte entre o capítulo inicial e aquele que irá pôr termo à saga, o filme do meio costuma ter acção em grande escala, distorcer as motivações iniciais dos protagonistas para "baralhar e dar de novo" e, acima de tudo, contar uma peripécia secundária, quase sempre inconclusiva, deixando, no final, um apontamento em aberto para o derradeiro capítulo. Por esta razão, os filmes do meio são uma forma simples dos grandes estúdios ganharem dinheiro. São raros os casos em que esta regra de mais "marketing" do que cinema não funciona, como em O Senhor dos Anéis, mas também nem todas as trilogias se baseiam num universo literário e onírico tão poderoso e complexo como o desenhado pela mestria de Tolkien. É mais habitual que tudo se passe como em Matrix (que chega ao extremo do terceiro ser mesmo o mais fraco dos capítulos), American Pie, Austin Powers ou Parque Jurássico. E o mesmo se parece aplicar com Piratas das Caraíbas, o filme de aventuras que resgatou as grandes fitas de piratas para o topo das bilheteiras e salvou a Disney de mais um fracasso, mas que, depois de uma inventiva obra de estreia, se estendeu ao comprido na sequela que se estreou há pouco nas salas nacionais. O Cofre do Homem Morto é muito divertido mas corrompe qualquer esforço de uma história coesa, desfazendo até as boas premissas do início (aqui, a relação entre Will e Elizabeth passa para segundo plano, além de que o próprio Jack Sparrow anda excessivamente à deriva). Deixa muitas pontas soltas para serem resolvidas no capítulo que se estreará no Verão do próximo ano. Resta saber se esse derradeiro episódio consegue restituir a aura de aventura clássica que o primeiro Piratas das Caraíbas tão bem soube estabelecer.


Pecado do Dia: Preguiça

Se há um aspecto que o primeiro capítulo de Piratas das Caraíbas conseguiu impor foi uma das mais deliciosas composições dramáticas de um herói pouco convencional, à semelhança de Indiana Jones. O pirata Jack Sparrow colou-se à pele de Johnny Depp que, com este filme de aventuras, conseguiu provar finalmente ao grande público que é um excelente actor de comédia, capaz de arriscar nas interpretações, neste caso criando uma hipótese de "mimo" para o século XXI. O que se passa é que neste segundo capítulo, Piratas das Caraíbas: O Cofre do Homem Morto, o realizador Gore Verbinski dá prevalência à diversão pura e dura, aos efeitos especiais de ponta, aos diálogos desconexos, às coreografias de luta excessivas, às reviravoltas narrativas desprovidas de sentido e aos seus vilões (apesar das muitas fraquezas da história, o vilão Davy Jones é talvez o ponto mais interessante desta sequela). Para trás fica Jack Sparrow, o casal Will e Elizabeth, uma intriga sustentada e uma ideia de entretenimento com fundamento. Na verdade, O Cofre do Homem Morto deixa tudo em suspenso, explora mal a introdução da figura do pai de Will e é, por vezes, tão tonto (como acontece na extensa sequência passada na ilha deserta) que chega a embaraçar o espectador. Apesar de tudo, a noção de espectáculo não está ausente e há uma vontade em quebrar alguns constrangimentos do primeiro filme - a ambiguidade da relação entre Elizabeth e Jack Sparrow é ambiciosa perto do final do filme, o monstro marinho é uma boa ideia mas desperdiçada... O que parece é que este O Cofre do Homem Morto foi inteiramente feito para encher os cofres necessitados da Disney. O que esperar de 2007? * *

21 de agosto de 2006

NA SALA ESCURA: O herói que poderia ser pássaro ou avião

Qual o sentido de se actualizar um super-herói associado a uma data específica, os míticos anos 70 e 80, e a um actor que nunca se desprendeu do seu fato - Christopher Reeve? Hoje o herói de "collants" que voa e tem uma força de aço pode atingir o pico da celebridade num período em que as referências são mais descartáveis do que nunca e as imagens ficam cada vez menos presas na retina? Parece que... sim e a razão para isso é colocar na realização um cineasta que seja verdadeiro fã da saga. Bryan Singer, que iniciou a carreira com um filme independente de culto - há alguém que não recorde o "twist" de Os Suspeitos do Costume? - e depois aceitou o repto de fundir BD com cinema em grande escala nos dois primeiros capítulos de X-Men, consegue neste novo Super-Homem - O Regresso, que já chegou às salas há duas semanas e com uma discrição estranha para quem queria ser o "blockbuster" da temporada, uma proeza: actualizar sem corromper o património. Ou seja, apesar desta nova versão (há muito "encalhada" nos estúdios de Hollywood) representar mais um sinal de que é preciso ir às velhas fórmulas para encontrar potenciais êxitos, o filme é surpreendentemente equilibrado entre o "fogo-de-artifício" necessário para um grande espectáculo associado a um super-herói e as nuances emocionais de uma personagem que não se consegue desprender do seu fato (escurecido e, apesar de tudo, com mais classe) e entregar-se ao amor por Lois Lane. As premissas estão cá todas, assim como o vilão Lex Luthor, planos megalómanos, tecnologias medidas com peso e medida e... um gosto assumido pela memória da BD. O segredo deste Super-Homem - O Regresso, que já chegou aos 200 milhões de dólares nas bilheteiras norte-americanas (mas que ainda não deu muito lucro porque esse foi o seu preço de produção), é Bryan Singer, cineasta capaz de dar doses generosas de entretenimento e que não tem medo de arriscar. Até ao ponto de, perto do final deste filme, vermos o herói a ter de entrar num serviço de urgências. Alguém já tinha imaginado Super-Homem a receber massagens de reanimação?

Pecado do dia: Soberba

Apesar de durar quase duas horas e meia (qualidade que parece fundamental para um filme se assumir como épico), Super-Homem - O Regresso é vertiginoso, tem poucos momentos mortos, uma estrutura familiar complexa e um vilão exageradamente cruel que, apesar de pouco profundo, permite a Kevin Spacey exercer o seu cinismo habitual (e irresistível) em doses de número circense próximos do de Jack Nicholson no primeiro Batman de Tim Burton. Desta vez, o tempo passou e quando Clark Kent (Brandon Routh, a fazer esquecer sem convencimento a memória de Christopher Reeve) regressa ao "Daily Planet" percebe que Lois Lane (Kate Busworth) refez a sua vida, é casada e tem um filho. O pior é que Lex Luthor dá novos sinais de vida e pretende criar um espaço só seu. A seu lado está uma bem trabalhada Kitty (Parker Posey, com visual à Wanda Stuart, revela para os mais distraídos que é uma excelente actriz de comédia) e uma megalomania que nos lembra que esta é uma história de super-heróis com as habituais doses de cosmogonia. As cenas de acção são brilhantes - tanto a inicial com um avião a alta velocidade como a do barco -, contrastam com os voos deslizantes do herói com Lois, em momentos de envolvimento romântico. No final, Bryan Singer cumpre a função de actualizar o herói para o novo século, que regressa com o mesmo fôlego de um Homem-Aranha ou um Batman. Não, não é um avião nem um pássaro, é um ícone do entretenimento moderno a mostrar que ainda está vivo... * * * *

16 de agosto de 2006

A identidade, essa noção desconhecida

Os filmes de Woody Allen são como aqueles CDs velhinhos, com o "booklet" dobrado nas pontas, que teimam em não sair da aparelhagem. As comédias fazem sorrir a cada novo visionamento, os diálogos decoram-se como citações de um livro de cabeceira, as piscadelas de olho ao surrealismo encaram-se como apelos à criatividade. A carreira de Woody Allen - mesmo a fase mais ligeira dos seus primeiros e derradeiros filmes, com excepção do negro Match Point - é um vício cultural e o coleccionismo em torno dos DVDs das suas obras traz sempre um pequeno rombo no orçamento mensal e uma passagem atenta às prateleiras dos videoclubes. Ainda há grandes lacunas nas edições nacionais de fitas mestras - onde páram as versões portuguesas de clássicos como A Rosa Púrpura do Cairo, Os Dias da Rádio ou O Herói do Ano 2000? Um dos casos mais flagrantes é Zelig, uma das obras mais interessantes e antigas de Woody (o ano de produção é 1983), que só nas edições importadas da Fnac ou da Amazon se pode encontrar. É uma ficção disfarçada de documentário, sobre um homem que apresenta um curioso distúrbio físico-emocional: transfigura-se em função da pessoa com quem está. O resultado é genial e, apesar de ainda não o ter em formato digital, gosto de rever em VHS e até passou há pouco tempo no Canal Hollywood. De resto, há imagens que ficam impregnadas na mémória. Mesmo as que duram quase hora e meia.

Pecado do Dia: Avareza

Ainda ao lado de Mia Farrow, Woody Allen construiu uma pequena obra, com uma contenção de
meios impressionantes, mas reveladora do seu estilo desconstrutor da identidade. Aqui esta noção é levada ao extremo e assume contornos de fábula, dado que Zelig (Allen) é uma personagem que literalmente se metamorfoseia em função do universo exterior, anulando-se completamente. O seu caso - "cientificamente" espantoso - é apresentado como aberração à semelhança de "Homem-Elefante". É então que entra em cena Mia Farrow na pele da psicanalista que se oferece para entender o bizarro episódio contado em forma de lenda e apresentado segundo os moldes do documentário televisivo dos tempos a preto-e-branco, com imagens granulosas e tudo. Os efeitos especiais são enternecedores por serem tão comedidos, as mutações do protagonista têm, muitas vezes, efeitos perversos de crítica política (a transformação de Zelig em judeu é bom retrato disso mesmo). Mas é a identidade que está em jogo, essa noção complexa e que seria, mais tarde, explorada por Woody das mais diversas maneiras. Em Zelig, o extremo faz sentido e o cineasta que melhor retrata Nova Iorque parece fazer jus à noção de "persona", termo grego de onde vem o conceito de "pessoa" mas cujo sentido original é "máscara". * * * * *

14 de agosto de 2006

Idiossincrasias da Palma D'Ouro

Diz-se que é o maior festival de cinema do mundo, não só porque se estende por vários dias, mas também porque os cineastas mais requisitados de todo o mundo aceleram os processos de pós-produção das suas últimas obras para marcarem presença na programação do evento que deu prestígio à vila francesa de Cannes. Quem se sai bem na competição, pode esperar boa exibição nas salas e, quem sabe, chegar ao grupo de finalistas das estatuetas douradas de Hollywood. Uma Palma D'Ouro não tem o reconhecimento mediático de um Óscar, mas é um galardão aparentemente menos redutor, mais sensível a outras nuances artísticas e aberto às cinematografias que nem sempre possuem o idioma inglês como forma de expressão primordial. Costumo estar mais ansioso pela estreia nas salas nacionais do último filme que foi premiado em Cannes do que o que venceu o Óscar de Melhor Filme (nas estatuetas douradas, prefiro quase sempre os filmes que receberam os prémios para Melhor Argumento Original e Adaptado). Mas se há coisa que a Palma D'Ouro não é, é isenta e, influenciada pelo espírito do seu júri variável, costuma realizar algumas escolhas dúbias e temperamentais - exemplos? Quando Quentin Tarantino presidiu ao Festival de Cannes, o Grande Prémio foi para Fahrenheit 9/11, o panfleto político mascarado de documentário de Michael Moore que, apesar de interessante, não era de todo um objecto de cinema sólido - talvez o seu carácter híbrido seja a sua marca mais interessante. Este ano, com Wong Kar-Wai na direcção do júri, a escolha recaiu sobre Uma Brisa de Mudança, de Ken Loach, que já se estreou há um par de semanas nas salas nacionais. Belo e de tonalidades clássicas, este drama sobre as convulsões políticas do IRA é um claro e rico objecto de cinema, mas a sua mensagem política parece sobrepor-se às suas ambições artísticas. O meio é a mensagem, já dizia McLuhan. A Palma D'Ouro de Cannes parece apostada num cinema de causas, deixando por vezes o bom cinema atrás das costas. Mas, no fundo, a ambiguidade dos filmes também passa por aqui.

Pecado do Dia: Ira

O cineasta Ken Loach constrói o seu Brisa de Mudança como um complexo mosaico sobre o absurdo da guerra, testando as convicções humanas de quem mata pela indepêndencia de um pedaço de terra. Ao centrar-se na Irlanda dos anos 20, que luta contra a invasão britânica, cria um retrato denso em que a violência era cometida com a inexorabilidade da Inquisição medieval. Pode parecer, a espaços, grotesco e maniqueísta, mas há um realismo incómodo e manipulador que, apesar de desconfortável, se encaixa na mensagem pacifista que se pretende passar. O actor Cillian Murphy lidera um elenco intocável de homens movidos por convicções que as levam até às últimas consequências. Apesar de demasiado cru e nem sempre muito objectivo, Brisa de Mudança é tocante, tem uma belíssima fotografia e faz-nos perceber que o cinema também é um jogo expressivo que tanto pode ser um entretenimento aprazível como produtor de um nó na garganta do espectador. A guerra dos anos 20 por um pedaço de terra é cruel. Mas, mais de oitenta anos depois, as interrogações mantêm-se. * * *

11 de agosto de 2006

Na Pré-História já existiam épicos

Comprovei recentemente que há ainda uma série de obras preciosas inexistentes em DVD em edição portuguesa (Ed Wood, de Tim Burton onde estás?). Um fenómeno que tende a ser colmatado por editoras que se preocupam em fugir às estreias obrigatórias e a repescar clássicos esquecidos pela fita falível do VHS. A Atalanta Filmes e a Costa do Castelo têm pregado boas surpresas, revelando estarem atentas ao cinema que se fez e se vai fazendo de vários estilos e nacionalidades. Descobri recentemente na FNAC, uma edição especial do clássico A Guerra do Fogo, de Jean Jacques Annaud, obra europeia de 1981 (!?) que é ainda um excelente exemplo de como o cinema se consegue metamorfosear e quebrar barreiras espacio-temporais, neste caso específico atravessando a linha cronológica das eras e fazer o espectador recuar 80 mil anos. O resultado, asseguro, continua a ser surpreendente. Como a descoberta de que com duas pedras (ou um pau, um tronco e um monte de caruma) se consegue criar fogo.

Pecado do Dia: Inveja

A ideia de Annaud, que se iniciou no cinema com menos de 20 anos e que sempre
demonstrou vontade em experimentar novas tonalidades visuais e dramáticas, é de génio, tão ambiciosa quanto inverosímil para o início da década de 80, segundo os produtores que demoraram a avançar com o projecto. Por isso, só se pode sentir inveja de Annaud que constrói, nesta odisseia Pré-Histórica algo bizarra mas muito emocionante, uma espécie de "cinema-verité", se é que se pode assumir como realista a visão dos homens de há 80 mil anos com base essencialmente em relatos científicos. A Guerra do Fogo funciona e faz-nos acreditar no cinema como manual de História, capaz de partir de uma aventura entre três amigos de uma tribo que vão à procura da chama, uma ferramenta tão útil quanto as armas de caça ou as peles dos animais para criar vestuário. A fluidez com que Annaud gere a ficção com o documento científico é de louvar, ainda para mais em quase hora e meia sem diálogos. Mas para quê, se tudo se pode expressar com um gesto, um som ou um jogo de planos? O DVD recentemente lançado, que resulta de uma parceria entre a FNAC e a Costa do Castelo, possui ainda extras a reter como o "trailer" e um documentário sobre o fenómeno de um pequeno filme europeu estranho, que acabou por ser um êxito mundial em 1981 e conquistou até o Óscar para Melhor Maquilhagem. O resto é História. * * * *

9 de agosto de 2006

NA SALA ESCURA: Dreamworks vs. Pixar? KO para a primeira

A animação digital já dá tanto dinheiro que, a cada Verão, estreiam-se mais e mais filmes de técnica apurada, mas que nem sempre cumprem todos os requisitos em matéria narrativa. Pular a Cerca, da chancela da Dreamworks e que conta nas vozes da versão original de nomes fortes como o de Bruce Willis, é bom exemplo disso. O problema é que a Dreamworks quando não faz um filme bom, cai mesmo na animação infantil, primorosa no traço mas com muito pouca piada - caso de Madagáscar, pois é... Já a Pixar parece também não ter acertado totalmente no alvo com o recente Carros. Ainda assim, o seu talento é tanto que até produtos menores estão a milhas dos da Dreamworks. Com excepção da saga de Shrek (para o ano estreará a parte III, porque se tem de fazer render o peixe...), o estúdio recentemente adquirido pela Universal e que tem em Spielberg um dos seus fundadores, fica sempre alguns furos abaixo e tem tendência para infantilizar a animação. A piada é divertir os mais pequenos e deixar algumas piadas mais elaboradas para os adultos. Mas desde quando é que fazer rir é fácil?

Pecado do Dia: Preguiça

Animais da floresta, depois da hibernação outonal, acordam estupefactos ao descobrirem que uma imensa cerca verde lhes cortou o habitual arvoredo sem limites. Na verdade, a civilização chegou ao espaço onde habitam uma tartaruga, um texugo ou um esquilo (personagem nervosinha que é talvez a mais interessante, apesar de tonta e secundária) e estes têm de aprender quais são as vantagens do mundo cosmopolita. Apesar de trazer consigo uma mensagem ambiental interessante, Pular a Cerca é preguiçoso na construção da acção e bate em todos os lugares comuns. Filme menor, que entretém mas que não tem aura de clássico. * *

5 de agosto de 2006

NA SALA ESCURA: O tempo é quando um homem quiser...

Um dos grandes fascínios do cinema é a capacidade de envolver o espectador numa sequência de imagens que distorce por completo a linearidade do tempo real. Temos anos de vida explicados em meia dúzia de minutos, meses de acção que se sucedem em meia hora, temos "flashbacks" decisivos até à infância de um protagonista e os habituais cortes com a mensagem "alguns anos depois..." À partida, enquanto espectadores, aceitamos estas rupturas, precisamos delas para acompanharmos uma história que, em tempo real, nos é apresentada geralmente em menos de duas horas. Mas a versatilidade da sétima arte gosta de ir mais longe e brincar com as próprias coordenadas temporais. Na verdade, algumas das maiores revelações cinéfilas dos últimos anos partiram do acordo temporal entre espectador-obra, para o questionarem, deturparem e, ainda assim, conseguir-se extrair um sentido relevante. Exemplos mais imediatos? Que dizer de Bill Murray a viver sempre o mesmo dia em O Feitiço do Tempo - talvez das comédias mais geniais de sempre? Ou do realizador Christopher Nolan que colocou o espectador a viver da mesma amnésia que o protagonista do seu filme, Guy Pearce, em Memento, por inverter a acção de trás para a frente. Depois, há ainda o clássico dos clássicos em matéria de brincar com os ponteiros do relógio: a trilogia de Regresso ao Futuro, com direito a Martin McFly (Michael J. Fox) de conhecer como será o seu futuro ou tentar alterar o seu passado. Nas salas nacionais, estreou-se discretamente um melodrama romântico com toquezinhos de magia cronológica. A Casa da Lagoa despertou-me curiosidade por isso e, apesar da premissa engenhosa (que, às tantas, nem sempre parece muito verosímil), prefere usar a distorção temporal como subtexto para as histórias de amor do costume. Que costumam resolver as complexidades de uma relação afectiva em poucos minutos. O tempo do cinema é mesmo assim...

Pecado
do Dia: Preguiça

O reencontro há muito que estava prometido: depois de fazerem faísca dentro de um
autocarro desregulado em Speed - Perigo a Alta Velocidade, e depois dele se ter baldado a nova aventura alucinante na sequela desnecessária do êxito que os ajudou a revelar aos dois, Keanu Reeves e Sandra Bullock voltam a fazer par romântico no grande ecrã. Mas, desta vez, em vez de bombistas e perseguições, temos uma história de amor leve e soalheira, que possui um motivo de interesse suplementar: o facto de brincar com as coordenadas temporais, dado que ela se encontra em 2006 e ele em 2004. O que confunde tudo é o momento em que ambos encontram uma caixa do correio que funciona como portal, permitindo-lhes a correspondência entre duas realidades temporais diferentes. Às tantas, ele definiu-lhe o passado, porque no presente ela contactou com ele, apesar de já o ter conhecido antes devido ao facto de agora o estar a conhecer. O problema é o futuro... ela pode mudar-lhe a vida e virem a conhecer-se no futuro dele, apesar dele a já ter visto. Para isso, ele precisa de esperar dois anos (a disparidade temporal que os separa...) e ela apenas um dia. Confusos? Em A Casa da Lagoa tudo parece mais simples e bem alinhavado, mas sai-se com a sensação de que algo escapa. O realizador Alejandro Agresti prefere alimentar uma história serena de amor por correspondência e consegue-o com engenho, apesar de serem as brincadeiras com o desfasamento temporal que melhor resultam. Depois, há uma Sandra Bullock a levar o filme às costas porque Keanu Reeves dá-se melhor nas cenas de acção do que num envolvimento amoroso (continua tão medíocre actor como antes). Bullock acerta no tom do filme e dá-lhe veracidade. De resto, A Casa da Lagoa parece que quis ser um grande filme romântico que não teve coragem (nem tempo...) para o ser. * *

2 de agosto de 2006

NA SALA ESCURA: O divórcio como reencontro com o cinema

É bom ver que ainda se encontram filmes de selo independente em exibição nas salas nacionais, escapando à ditadura de saírem de cena ao fim de uma ou duas semanas após a estreia. Estreado há cerca de dois meses, A Lula e a Baleia é um desses filmes resistentes (ainda é relativamente fácil encontrá-lo nas salas, como a do Saldanha Residence) e tem todas as razões para isso: uma história soberba, um argumento profundamente realista, um naipe de actores escolhidos a dedo e uma atmosfera "indy" que o beneficia em matéria de prestígio. É certo que demorou a estrear (foi dos filmes que esteve na corrida para o Óscar e que mais tarde chegou comparativamente à estreia nos Estados Unidos), mas a sua qualidade (não esqueçamos que foi produzido por Wes "Tenembaum" Anderson) compensou essa demora. Há algum tempo que não me deixava envolver por um drama familiar tão bem construído à volta de um tema relativamente banal, neste caso um divórcio - uma das últimas vezes em que aconteceu foi, talvez, com O Quarto do Filho de Nanni Moretti. E o quase estreante Noah Baumbach, argumentista de The Life Acquatic, consegue transpor todas as subtilezas da escrita para imagens, conseguindo aproveitar as interrrogações das personagens à custa de diálogos que se transcendem e de um recurso mais ou menos realista de acções comuns. Aquelas que nunca costumam aparecer nos filmes... Mas este filme é um bom alerta de que o princípio "E viveram felizes para sempre..." já é uma ideia descontextualizada nos tempos omniscientes de hoje.

Pecado do Dia: Inveja

É este o sentimento que se tem quando se vê a forma como Noah Baumbach conjuga as repercussões afectivas de um divórcio com o despertar da adolescência. E traça o retrato de dois jovens sem hesitar em revelar os seus momentos de intimidade e os seus rituais de descoberta. O realizador, que se vê ter-se inspirado muito pelo estilo perfeccionista e cénico de Wes Anderson, afirmou que A Lula e a Baleia tem um grande alicerce auto-biográfico. E isso pressente-se... Mas é impressionante como mostra a subjectividade que cada um dos pais (excelentes Jeff Daniels e Laura Linney) tem - nenhum deles é modelo de paternidade, mas haverá pais ideais? A riqueza dramática (aparentemente niilista) de A Lula e a Baleia causam inveja porque a simplicidade parece nunca antes ter sido descoberta. E pode servir de lição para a maioria dos telefilmes "casos da vida" e para uma ou outra experiência emocional que rapidamente cede a moralismos. Ninguém é perfeito, só nos resta procurar um bocadinho de lucidez. E de conforto. * * * *

1 de agosto de 2006

Manual anti-neura em forma de disco

Há dias assim... Em que as coisas não batem certo, o ânimo vai abaixo e aparecem sempre umas contas extra - seja um imposto desconhecido, uma avaria no carro ou um ordenado que tem de esticar. Estive assim ontem. E hoje, apesar de estar em recuperação, tenho sempre um remédio mais eficaz que qualquer placebo. Trata-se de uma comédia musical, com dúvidas existenciais "à la Adrian Mole", que nos ajuda a perceber que há mais gente que passa por dias em que parece que não devia ter saído da cama. Alta Fidelidade, do irrepreensível Stephen Frears, é o manual anti-neura perfeito, por articular as questões do amadurecimento (ainda que, primordialmente, a nível afectivo) com uma poderosa banda-sonora a culminar com uma versão deliciosa de Jack Black do clássico "Let's Get It On" de Marvin Gaye. Pelo menos, durante cerca de hora e meia, os dilemas de Rob Gordon (impecável John Cusack) sobrepõem-se com leveza às nossas interrogações existenciais (que, a longo prazo, se revelam pequenas e uma mera agulha num gigantesco palheiro). E nos fazem acreditar nas potencialidades do cinema enquanto fonte genuína de entretenimento. Além dos olhos, estimulam-se também os ouvidos. Um sinal claro de puro bom gosto.

Pecado do Dia: Soberba

O realizador Stephen Frears, que esteve no ano passado a dar uma lição de cinema na Gulbenkian (e onde, justamente, foi exibido este filme), gosta de experimentar todos os géneros cinematográficos, parecendo, em cada um deles, um mestre de subtilezas e ciente de uma noção profunda de estilo. No âmbito da comédia ligeira, Frears nunca tinha dado grandes pistas, mas, com Alta Fidelidade, prova conhecer todos os segredos do género e cria uma profunda e respeitadora adaptação da obra de Nick Hornby. Tudo está no sítio certo e, a espaços, John Cusack fala para a câmara à semelhança de Ally McBeal, porque esta comédia é mais televisiva do que outra coisa. Ainda assim, o entusiasmo digno de "sitcom" de culto que provoca é delicioso e Alta Fidelidade é o filme pós-adolescente mais ligeiro e mais "cool" de se adorar de todos os tempos. Está tudo lá: os vícios, os defeitos, os hobbies, os encontrões com o coração, as mulheres, o desejo de fazer listagens de tudo e mais alguma coisa e... a música. Que reflecte um bom gosto sem mácula. Depois... depois há Jack Black em início de carreira num dos desempenhos secundários mais divertidos de todos os tempos. Basta ver a sua entrada em cena na loja de discos onde trabalha. Dá para esquecer? * * * *