23 de junho de 2008

NA SALA ESCURA: O sabor do melodrama








GULA.
«As fronteiras entre 'cinema de autor' e 'cinema popular', aqui, já explodiram (e à mesa talvez tenhamos mais hipóteses de ser todos iguais).» VASCO CÂMARA in Ípsilon

O que se sabia do cineasta Abdel Kechiche? Que era um tunisino radicado em França, entusiasta dos filmes de Yasujiro Ozu e que gosta de recrutar para os seus trabalhos cinematográficos actores amadores.

Antes de O SEGREDO DE UM CUSCUZ apenas havia dado nas vistas com «A Esquiva», mas nada fazia prever que o seu cinema nos entrasse pela retina adentro graças a uma singela homenagem à noção de família. Sim, este pequeno filme que se passeou com êxito em diversos festivais celebra a família na sua força e nas suas necessárias fragilidades.

Em O SEGREDO DE UM CUSCUZ, Kechiche mostra-nos de muito perto (sim, o grande plano é a sua arma em prol da emoção) o quotidiano de uma família de meios modestos, que luta por se manter unida no meio de uma encruzilhada igualmente cultural - sim, são de raízes árabes a lutar por um lugar em nome próprio numa França periférica.

Ao colocar o foco da acção no olhar triste e rugoso de Slimane (Habib Boufares), Kechiche dá profundidade moral a uma história que é trágico-cómica, rude, áspera e lacónica como pode ser (e na maior parte das vezes é) a própria vida. É sob o seu olhar cansado que se testemunha a perda do emprego, o desconforto de quem já não se enquadra na ordem social de hoje, a sua presença em duas famílias (a numerosa do primeiro casamento e a mais moderna da segunda relação) e a luta por um sonho: transformar uma velha e decadente embarcação num restaurante cuja especialidade é o cuscuz cozinhado pela ex-mulher.

Neste ponto, O SEGREDO DE UM CUSCUZ ganha um novo fôlego e mostra como uma família se pode unir à mesa e por uma causa. No entanto, Kechiche volta a mostrar maturidade e engenho no modo como «cozinha» um final do qual não se estava à espera.

Para lá do olhar realista das primeiras sequências, o filme torna-se num camuflado trabalho de «suspense», com direito a números cómicos e uma inesperada tragédia. Mas sê-lo-á mesmo?

Cada um interpreta à sua maneira, porque aqui não é o final feliz que mais importa. Os ingredientes para um bom melodrama estão cá todos. Kechiche «serve» a história na perfeição. Mesmo que o sabor que fica não seja o mais doce...


Outra crítica aqui

O SEGREDO DE UM CUSCUZ
De Abdel Kechiche (2007)
* * * *
É já o melhor filme europeu a chegar às salas este ano e é uma surpresa tão boa porquê? Porque filma com simplicidade as relações complexas de uma família, mostra o que custa seguir um sonho e quer-se aproximar do melodrama realista, com nuances culturais a reter num mundo algo desfragmentado. No fundo, o que Abdel Kechiche consegue comprovar é que no caos dos dias de hoje, apenas os braços abertos da família são uma certeza. Bem cozinhada como um prato de cuscuz.

20 de junho de 2008

QUIZ: Estes elementos lembram que filme?









Sim, o desafio anterior era fácil. Mas este já não é. No fundo, está aqui tudo. Ou será que não?

Solução do QUIZ anterior: «O Fabuloso Destino de Amélie», de Jean-Pierre Jeunet.

OS MEUS POSTERS: A Roda da Fortuna

























GULA.
A imortalidade só se atinge no ecrã e, ao lado de Fred Astaire, Cyd Charisse permanece para sempre em A RODA DA FORTUNA, de Vincente Minelli. Rainha dos musicais, desenvolta, sensual e divina, tratava a dança por tu. Morreu em Los Angeles, aos 86 anos. Outros pontos altos? «Serenata à Chuva» ou «Ziegfeld Follies».

17 de junho de 2008

OS MEUS POSTERS: Vicky Cristina Barcelona


























LUXÚRIA.
Faltam ainda uns bons meses até percebermos como Woody Allen se saiu por terras espanholas. No entanto, VICKY CRISTINA BARCELONA está nas bocas de toda a gente por causa das supostas cenas íntimas entre Penélope Cruz e Scarlett Johansson. É esperar para ver. O poster aposta tudo na proximidade.

12 de junho de 2008

CINEFILIA: As cinco promessas de Junho







SOBERBA. Mês de Junho é sinal de grandes produções e filmes independentes com fartura. Este ano, a regra mantém-se com o facto de a grande maioria dos «blockbusters» chamarem pouco a atenção. Estarão as fórmulas gastas? Títulos como «O Incrível Hulk» mostram que sim. Ainda assim, há uma ou outra proposta interessante a descobrir.

- THE HOTTEST STATE: Já tentou a sorte na escrita, agora esmera-se na realização. O actor Ethan Hawke é daquelas eternas promessas que nunca chegou verdadeiramente a confirmar-se. Como se sai atrás das câmaras? O travo indy do filme chama a atenção e aguça a curiosidade, neste conto pessoal sobre as peripécias de um actor para vingar na carreira, enquanto luta para manter sólida uma relação amorosa com uma compositora.

- O ORFANATO: É talvez a estreia mais auspiciosa do mês - já aqui falámos dela... - por contar com produção de Guillermo Del Toro e procurar desconstruir as regras do terror clássico. Tudo se passa no registo do horror intimista, muito negro, com várias reminiscências aos medos de infância. Outra surpresa? À semelhança de «O Labirinto do Fauno» não se rendeu ao inglês e é falado em espanhol.

- O ACONTECIMENTO: Trata-se do tudo por tudo para M. Night Shyamalan para mostrar que ainda é exímio a contar histórias densas, com um cheirinho a ficção científica, depois de ter sido muito mal compreendida a sua experiência alegórica de «A Senhora da Água». Como resolver a questão? Voltar ao género que o tornou famoso, o convencional «suspense», para mostrar como uma comunidade sucumbe a uma ameaça que não é explicável. Será uma nova «Guerra dos Mundos»? Talvez, porque Shyamalan gosta de usar referências para as manipular. Pode ser um dos filmes do ano.

- O MEU IRMÃO É FILHO ÚNICO: Comédia à italiana vale por si, dada a raridade com que a oferta se faz nas nossas salas, à excepção dos trabalhos de Nanni Moretti. Esta é a história de dois irmãos, com perfis distintos (um é padre, o outro um operário), que vão acabar por se cruzar com o crime. O filme possibilita ainda um olhar descomplexado sobre as décadas libertárias dos anos 60 e 70.

- ALEXANDRA: Um olhar sobre a Tchechénia actual, pela mão de Aleksandr Sukorov, sim esse mesmo, o responsável pelo desafio cinematográfico que é «The Russian Ark». Motivos revigorados para aumentar o interesse. A mulher que dá título ao filme é a avó que vem visitar o neto, um dos melhores oficiais da sua unidade. É pelos seus olhos que entramos num novo mundo, onde as pessoas são parcas nos seus sentimentos.

9 de junho de 2008

O amor começa por muitos lados







LUXÚRIA.
«Se amas o cinema, tens de amar a América.» FATIH AKIN

Mais do que um lugar estranho, o amor é um tumulto, um tormento, algo que auto-destrói. A visão é exposta por Fatih Akin neste soberbo HEAD ON - A ESPOSA TURCA, obra que deu nas vistas há um par de anos pelo circuito independente (ao ponto de receber o Leão de Ouro do Festival de Berlim) e que apenas descobri há coisa de uma semana. Ao ponto de ficar rendido instantaneamente à capacidade do realizador alemão em prender e surpreender pela expressividade das suas imagens.

Esta absorção há muito que não se verificava e pode ser explicada pela convulsão de duas personagens que vivem no ponto máximo dos afectos e começam o amor pelo fim. Ou melhor, a peripécia emocional deste conto muito negro é que os dois turco-alemães da história conhecem-se na fase mais vulnerável das suas vidas - numa clínica de reabilitação, depois de tentarem o suicídio -, mostram-se logo inteiros um ao outro, casam-se por conveniência e, só a partir daí, começam a redescobrir a inocência.

Cahit (Birol Unel) é um alcóolico auto-destrutivo que procura esquecer a morte da primeira mulher, ao passo que a bela Sibel (Sibel Kekilli) apenas sonha em poder escapar-se do conservadorismo da sua família. De início tudo corre sobre rodas, e Sibel acaba por ser uma lufada de ar fresco na vida desmoronada de Cahit. Com o que ambos não contavam, era que o amor iria floscerer na maneira convencional e genuína de o ser, quando ambos estavam preparados para viver a vida em contraciclo.

Sim, a mais-valia e o assombro de HEAD ON - A ESPOSA TURCA está na inversão moral destas personagens, perdidas num mundo que parece não estar disposto a acolhê-los.

Oscilantes entre a tradição turca e a frieza alemã, o casal desfaz-se e sente na pele a força do «amor cão». É disso que se trata: sentir na carne o poder dos sentimentos. Lutar, sofrer, morrer e nascer outra vez, insistir. Tudo em nome de um afecto que vicia. Como o álcool, a cocaína, o sexo. Os dois perdedores desta história jamais poderiam ter um final feliz. São maiores do que isso. Maiores do que a ordem das coisas, incapazes de seguirem os carris auto-impostos pela sociedade. A evasão torna-os maiores do que a vida.

Por isso a queda será igualmente gigantesca. Com uns condimentos orientais, Fatih Akin mostra que é um dos mais jovens promissores europeus e faz-nos acreditar que a vida tem de ser levada com intensidade.

7 de junho de 2008

O QUE AÍ VEM... Kung Fu Panda







SOBERBA.
«Nem por um segundo, olho para mim mesmo como o homem mais sexy do mundo.» JACK BLACK

A animação continua a reinar nos meses de Verão, com os grandes estúdios a fazerem de tudo para que o aprumo da imagem digital consiga ir ainda mais longe, colocando os mais novos nas filas e, com eles, logicamente, os seus pais.

Enquanto não chega a nova aposta da Pixar - sim, ainda é ela que reina neste campeonato - toda a gente está a falar de KUNG FU PANDA
.

Uma animação frenética, com um grupo de personagens cujo desenho é promissor e a garantia de uma combinação aceitável de humor com artes marciais. A história segue os passos de animais preguiçosos que têm de se virar para protegerem o habitat. «Virar» implica serem mestres do pontapé e do soco...

A estreia correu bem tanto nos Estados Unidos como no Festival de Cannes e tem como trunfo a voz de Jack Black na pele do panda protagonista. Ainda bem. Black neste campo continua sem concorrência à vista. Resta saber se a Dreamworks (a produtora desta grande produção) consegue fazer sombra ao poder da Disney.

O que é certo é que nos últimos tempos - sempre com a excepção de «Shrek» - não o tem conseguido... É altura de mudar?

4 de junho de 2008

OS SETE PECADOS DE... Maio 2008

AVAREZA. A colecção de livros de cinema «Cahiers du Cinéma» que o jornal «Público» está a distribuir semanalmente tem permitido algumas descobertas até sobre os ícones com pouco de novo para revelar. Já se sabia que Chaplin não teve uma vida fácil, mas os inúmeros tropeções que a sua carreira teve - quase sempre causados pela instabilidade na vida real, nomeadamente o seu gosto por mulheres de tenra idade - não obnubilaram um génio. Aquele que redescobri em duas deliciosas curtas-metragens, «O Emigrante» e «À Beira Mar». Filmes anteriores à década de 20! Chaplin é imortal: a sua visão ainda hoje enternece.

GULA. Atenção: a moda dos DVD a preços baixos continua. Se, por um lado, o «DN» já distribuiu «Matador», «Ali» ou «Lua de Mel, Lua de Fel» pelo preço dos dois jornais ao fim-de-semana, o «Correio da Manhã» voltou a entrar na corrida e, às sextas-feiras, distribui filmes por mais 1,95 euros. A semana passada foi o engenhoso «O Senhor da Guerra». Segue-se o curioso «Infamous», sobre Truman Capote. A questão é: será assim tão rentável para os jornais o investimento? Resposta: não quero saber, desde que a colecção vá engrossando a preços nunca vistos. Qualquer dia ainda nos pagam...

SOBERBA. Indiana Jones está vivo e de boa saúde em nome do cinema de aventuras revivalista e mais revitalizado do que se esperava. «Indiana Jones e a Caveira de Cristal» é divertimento puro, «à antiga», ainda que a espaços tonto. No fundo, o que importa é que Harrison Ford e Spielberg ainda sabem como dar a volta ao espectador sem trair a saga original. Isso chega.

IRA. A morte de Sydney Pollack embaraçou o cinema comercial. Porquê? Porque mostrou que este dificilmente será o mesmo sem a ousadia e o olhar inteligente do realizador de «África Minha». O que nos deixou Pollack? Um legado de boas memórias e uma forma íntegra de agenciar as imagens. Em Maio, o cinema ficou ainda sem Harvey Korman e, por isso, mais triste.

LUXÚRIA. Na maré de «biopics» que tem inundado Hollywood, parece que a história do criador de «Playboy» vai dar um filme. Hugh Hefner já veio dizer que quer Robert Downey Jr. a fazer de si no grande ecrã. Escolha acertada, não parece?

INVEJA. Depois de muitas polémicas, a Feira do Livro lá abriu as portas. Passei por lá numa noite e é bom ver como a Cinemateca mantém a sua banca. Boa oportunidade para vender catálogos antigos. Há coisas memoráveis por aqui...

PREGUIÇA. Pode parecer que custa ir ao cinema ver fitas românticas como «Vestida Para Casar». Não custa nada, na verdade. E isso também não é obrigatoriamente bom. Contudo, depois de um dia de intenso trabalho, a mente agradece a falta de estímulos exacerbados. O cinema também pode somente distrair.