24 de setembro de 2008

Dar umas luzes aos irmãos Lumière (II)












Caros irmãos Lumière,


Os mercados financeiros andam loucos por estes dias. Há quem compare a esquizofrenia bolsista com os tempos amargos da Grande Depressão de 1929, que certamente tiveram o infortúnio de testemunhar. E a culpa é do quê? Além do vício do endividamento, há que apontar as culpas para uma matéria preta, espessa, tão desejada apesar do seu rasto. Algo que me fez lembrar um filme recente, dos melhores que vi desde sempre.

Por isso mesmo, e porque vos quero mostrar como se faz cinema hoje em dia (o bom, principalmente, porque o mau é rapidamente apreensível), vou falar-vos de «Haverá Sangue», de Paul Thomas Anderson.

A primeira sequência deste estrondoso trabalho centra-se no complicado método para encontrar o ouro negro, numa altura em que a técnica era artesanal e saía inteiramente do esforço humano.

Filmada quase sem luz e som, é uma brilhante introdução metafórica para o que se aproxima, um épico cheio de lugares tão negros quanto o da matéria-prima que ainda hoje controla grande parte das carteiras e dos mercados financeiros – vê-se!

Com «Haverá Sangue», o realizador Paul Thomas Anderson pretendeu escalpelizar a história moderna dos Estados Unidos, usando precisamente a descoberta do petróleo como fonte de riqueza para elaborar uma ruptura ao nível dos valores, não só económicos como principalmente morais.

É neste ponto que se percebe que toda a acção do ardiloso filme estará condensada na figura de Daniel Plainview, mais uma estrondosa composição de Daniel Day-Lewis, provavelmente o melhor actor de todos os tempos (e que justamente recebeu uma segunda estatueta dourada para Melhor Actor, depois de «O Meu Pé Esquerdo»).

É ele que se assume como uma combinação de ambição e fé, alguém que rapidamente troca o sangue pelo preto do crude a correr-lhe nas veias. Seguindo-lhe os passos da fortuna, o espectador acaba por se confrontar com uma ardilosa saga de uma família para sempre moldada pelos caminhos do petróleo.

A relação de Daniel com o seu filho também será abalada na evolução sem dó nem piedade de mero prospector de prata a magnata do ouro negro. No entanto, no seu encalço estará também a provação religiosa, em mais um golpe de génio desta habilidosa realização do criador de «Boogie Nights – Jogos de Prazer» e «Magnólia».

Ao tentar aproximar-se da pequena e conservadora cidade de Little Boston, da qual apenas lhe interessa a riqueza que se esconde nas suas entranhas, o anti-herói tem de se aproximar dos seguidores da igreja do pregador Eli Sunday (Paul Dano, actor competente mas que perde em comparação com o «monstro» Daniel Day-Lewis).

Aí, haverá um arrepiante confronto com a fé e o duelo face ao materialismo inconsequente de quem prefere medir a realidade em números, litros e cálculos precisos, em vez de afectos e cumplicidade.

Ao querer evidenciar o pragmatismo até desumano do seu protagonista, o cineasta dá espaço a Day-Lewis para incorporar esta necessidade de afrontar Deus, até porque ele próprio se considera o máximo expoente da divindade.

Pelo caminho, tudo se vai dissipando, até a relação com o seu filho, antigo aliado e agora vítima de um inesperado acidente. Neste ponto, já se percebeu que a vida de Daniel Plainview é uma fonte de líquido pegajoso e obscuro, pronta para assimilar as sequelas da opção de querer viver para reinar.

Baseado no romance literário «Oil», de Upton Sinclair, «Haverá Sangue» é uma alternativa ao modelo de «blockbuster» por recuperar a tradição das grandes sagas familiares.

É posterior ao «western» mas a sua essência comporta a história de vidas marcantes, que serpenteiam os valores em busca de uma obsessão: neste caso, a vontade de controlar o poder, embora correndo o risco de ser sucumbido por ele.

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