11 de agosto de 2007

Ganhar asas num trapézio

SOBERBA. «Deixa-te estar sozinho! Deixa as coisas acontecerem. Mantém-te sério! Olha mais do que uma vez! Mantém o teu espírito. Mantém a distância. Mantém a palavra!» CASSIEL (Otto Sander) em «As Asas do Desejo»

A imagem é do clássico de Wim Wenders AS ASAS DO DESEJO, mas não é sobre este maravilhoso filme que quero centrar o meu texto. Ou melhor, parto dele para chegar a uma outra experiência, sentida na pele há dois dias. Decidi ir ver o espectáculo de circo aéreo OLA KALA, do grupo francês Les Arts Sauts, em exibição numa tenda arredondada gigante, estrategicamente localizada no Centro Cultural de Belém. Se bem se recordam, no crepuscular filme de Wenders, um anjo desejava ser humano e, por entre simples reflexões sobre o prazer de ser humano, deixa-se deslumbrar por uma trapezista de sorriso plácido e cabelos encaracolados. No fundo, ele é um ser transcendente, ela é o elo realista da história. Pois bem: no espectáculo de novo circo a que assisti, são os trapezistas que parecem anjos, lá no alto, por entre uma bruma cénica, que levitam entre acrobacias mais intensas e místicas do que os banais números dos espectáculos circenses de Natal. O grande mérito de OLA KALA é fazer-nos acreditar de novo no poder ilusório, testar convenções espacio-temporais e assumir a extrema beleza que é testar as leis da gravidade como se fosse a coisa mais singela do mundo. Depois há a música, possante e incisiva, onde predominam as cordas e as ambiências rítmicas (neste espectáculo, até a banda levita... literalmente!), que ilustra e aprofunda os vários números que se sucedem sem pressa. Sem cair no niilismo sensível dos shows do grupo De La Guarda, este é um momento de novo circo (essencialmente, pensado) que incide sobre a estética do movimento aéreo, com diversas acrobacias relacionadas com o voo e com a queda... a 12 metros do chão. A produção do OLA KALA descreve-o na perfeição: «Os corpos substituem as palavras e formam uma linguagem própria que tem o trapézio como suporte.» Sim, aqui não é possível falar. O corpo deixa passar todas as emoções, dita o ritmo e gere um momento de suspensão da rotina. É também por este silêncio que me lembrei de AS ASAS DO DESEJO. Dos instantes de paixão entre o protagonista e a bela trapezista, sendo que ele a visitava diariamente ao pequeno circo onde actuava, deixando-se comover pela sua vulnerabilidade. E isso bastava.

PS - Apesar do espectáculo valer a pena, deixo um aviso: paguem os bilhetes com dinheiro se chegarem depois das 20h00. É que a bilheteira oficial fecha, todo o CCB fecha e... não há Multibanco ali nas redondezas (dá para acreditar!!!!????). Resultado: andar a passo apressado até aos Pastéis de Belém (!!) para levantar dinheiro e andar tudo de novo até ao recinto. Às vezes, parece que vivemos na província. Então quando se fala de cultura...

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