23 de março de 2009

Dar umas luzes aos irmãos Lumière (VII)

Caros irmãos Lumière,

Diz-se que William Shakespeare inventou o teatro, no que à sua carga emocional diz respeito. É por isso que as suas obras ainda hoje se refazem em vários palcos. A sua mensagem é universal, os sentimentos expostos também.

A marca autoral faz-se à custa de personagens que nunca estão a meio caminho para algum lado. Vivem no centro de algo muito superior a elas e até nos exercícios mais cómicos se deixa perceber um fundo psicológico com fortes repercussões.

Não é por acaso que o cinema, na sua vontade em pegar na autenticidade das emoções, adaptou em diversas circunstâncias grande parte das obras do dramaturgo inglês. Mas nem sempre o fez de forma assumida. E é aqui também que se encontram os casos mais interessantes.

Lembro-me desta componente dramática do cinema ao descobrir «Anatomia do Medo» («Ikimono no Kiroku»), aquele que é entendido como um trabalho maldito no contexto da carreira de Akira Kurosawa, mas que é também um dos mais aproximados da lógica shakespeariana.

O medo é a palavra-chave deste trabalho dirigido num impecável preto e branco. Sob o pano de fundo da guerra fria e das clivagens inerentes aos receios de um ataque nuclear, o patriarca Kiichi Nakajima vive aterrado quanto à hipótese do Japão ser assolado por um ataque e só quer levar a família consigo para o pacífico Brasil. Mas ninguém parece querer mudar de vida, tanto mais para seguir apenas os receios de um homem cuja idade já pesa.

Resultado? A guerra invisível tem efeitos mais trágicos do que os bombardeamentos, dado o rompimento familiar, e o protagonista, ao ver-se sozinho na sua vontade de fugir, caminha a passos largos para a demência.

Nesta jornada psicológica rumo ao isolamento, Kurosawa deixa-se levar pelas vozes interiores, pelos rostos tolhidos pelo susto, pela incompreensão e pelo sentido mais lato da palavra ruptura. E tudo isto sob um omnipresente calor, um sol gigante, como se a personagem principal estivesse a lutar contra o Inferno.

«Anatomia do Medo» joga com as implicações afectivas de uma dúvida e é um poderoso teste à coesão familiar, esse tema tão recorrente de outros trabalhos de Shakespeare. A vivacidade dos diálogos comporta ecos de «Rei Lear» e o efeito impressionista das suas imagens faz com que o espectáculo se construa em torno de sentimentos tão cortantes como o terror ou a piedade.

E caminha-se fundo neste precipício, que embora assente em premissas tão velhas como a mais antiga peça de teatro, surge sob a máscara moderna dos medos de uma ameaça química a partir de uma divisão mundial.

No final, assiste-se à clausura. E nem mesmo o efeito positivo da cena final, que usa os corredores em direcção ao hospício como metáfora para as subidas e descidas - e, neste caso, a subida da mãe com a criança mostra que pode haver esperança! -, consegue apagar o que se passou antes. Temos uma família desmembrada, um protagonista velho, desfeito e sozinho, completamente enlouquecido. Haverá algo mais shakespeariano do que esta perversão?

Depois, em «Anatomia do Medo», há ainda a figura poderosa de Toshiro Mifune, envelhecido propositadamente para viver a pele do homem que sonha com a evasão. O seu rosto de permanente temor é daquelas imagens que não descolam da retina.

É o cinema a impor-se na sua face mais dura. E expressionista.

1 comentário:

Cheila Saldanha disse...

Vou fazer um trabalho sobre eles. De facto um tema interessante e pouco divulgado, talvez.
Já tás no meu blog...!!