17 de maio de 2009

NA SALA ESCURA: Crescer com barreiras









IRA. «Algumas pessoas chamam-nos racistas. Não somos racistas! Somos realistas!» LENNY (Frank Harper) em Isto é Inglaterra

A infância, quando se aproxima da adolescência, é já um período de convulsão. E é também um momento em que a absorção da realidade circundante se opera de uma forma particularmente evidente.

Estreados há umas semanas nas salas nacionais, eis dois excelentes casos que pensam essa etapa da vida no meio de duas realidades sociais distintas - quer geográfica, quer cronologicamente - e, com isso, configura interessantes pontos de vista sobre a formação da identidade.

De um lado temos os anos 80 num «Reino pouco Unido» em ISTO É INGLATERRA, de Shane Meadows; do outro, mais um exemplo do novo cinema brasileiro que se vinca nas desigualdades urbanas, mas sem miserabilismos comprometedores: o oportuno LINHA DE PASSE, de Walter Salles.

O primeiro é um precioso trabalho, quase documental, sobre uma década de clivagens, quer políticas, quer artísticas. No meio de uma Inglaterra dilacerada pela Guerra das Malvinas, uma criança (verdadeira revelação que é Thomas Turgoose) aproxima-se de um grupo de amigos mais velhos que lhe alteram o visual e as convicções.

Daí, entra-se numa perigosa jornada ideológica, com a entrada de um grupo de personagens nacionalistas extremas - sim, skinheads! - que lhe deformam o pensamento e o levam a pensar que o país não se compadece com estrangeitos «inaptos».

Ao aliar o despertar da adolescência com reflexões sobre o racismo, Shane Meadows consegue mostrar personagens à procura de um rumo sem ceder a facilitismos sentimentais.

Além disso, ISTO É INGLATERRA olha para os anos 80 já com um adequado distanciamento, quase documental, e traz consigo uma pulsão interna que acabará por «rebentar» no momento-chave do filme, caso de terror psicológico muito bem elaborado.

O cinema é aqui maduro, inteligente e ávido por pensar as pessoas. Coisa que LINHA DE PASSE também faz, mas numa lógica totalmente diferente.

Passado num dos múltiplos bairros pobres de São Paulo, este filme quer colocar o olhar do espectador dentro de uma casa sem meios, mas digna. Digna no seu esforço de sobrevivência quando nada ou muito pouco se tem.

Cleuza (Sandra Corveloni, Palma d'Ouro de Melhor Actriz no Festival de Cannes) é a mãe esforçada de quatro jovens, que vivem todos numa apertada casa de paredes escuras. O mais velho distribui encomendas, o segundo vive entre o trabalho num posto de combustível e a fé numa das igrejas que testam o fanatismo, o terceiro sonha ser jogador de futebol e o mais pequeno, preto, vive entre a escola e a vontade em conduzir um autocarro.

As aspirações convivem diariamente com a contrariedade, o vício e a violência. Mas o realizador Walter Salles (a meias com Daniela Thomas), que já nos deu algo de muito bom como «Diários de Motocicleta» ou «Central do Brasil» e algo de mau como «Águas Passadas», está interessado em evidenciar este punhado de personagens segundo a lógica do dia-a-dia, numa vida feita de bons e maus momentos.

Se Cleuza sucumbe muitas vezes ao cansaço e à incapacidade de gerir uma casa onde não existe um pai (na verdade, percebe-se que haverão vários...), por outro há ainda vontade em manter a união e empatia familiar.

LINHA DE PASSE termina em aberto, num instante em que as vidas dos quatro filhos se encontram em momentos-chave. Será que vai dar certo? Ou é a entrada no abismo? No fundo, um teste ao optimismo do espectador, embrenhado numa realidade brasileira que é anti-telenovela.

O que ISTO É INGLATERRA e LINHA DE PASSE têm em comum é mostrarem a dificuldade que é o crescimento. Que engrandece quando se ultrapassam os obstáculos.

Outra crítica de ISTO É INGLATERRA aqui

ISTO É INGLATERRA
De Shane Meadows (2006)
* * * * *

Chegou atrasado este importante filme independente, que pensa a adolescência, mas também a realidade política do Reino Unido dos anos 80. Além disso, expõe as personagens ao estilo e à cultura de uma década que muitos vêem como «maldita». Muito bem dirigido, é um manual sobre a formação da identidade ou a difícil arte em perceber em que lugar se deve estar neste mundo. Seja fisica, seja ideologicamente.



LINHA DE PASSE
De Walter Salles (2008)
* * * *
De repente, nota-se uma enchente do novo cinema brasileiro nas salas nacionais. E ainda bem. Apesar de tematicamente poder ter semelhanças com Cidade de Deus, este retrato familiar vai mais longe. Não há aqui tantas pretensões a nível de moldura social, mas apenas uma forma de conceber a rotina familiar na favela. Com alma verdadeiramente brasileira, o filme é belo plasticamente e filma o futebol de um modo apaixonado. O Brasil é isto!

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