22 de fevereiro de 2010

NA SALA ESCURA: Regresso ao niilismo de Allen

IRA. "Vêem? Sou o único que vê o filme todo. É o que eles chamam de génio." Boris (Larry David)

Os detractores continuam a insistir na ideia de que Woody Allen faz sempre variações do mesmo filme, mas o que é certo é que quando se vê TUDO PODE DAR CERTO fica-se com a sensação que o cineasta nova-iorquino regressou a território seguro, ao humor polido, às relações humanas desfragmentadas, à inventividade aparentemente ingénua, às neuroses irresistíveis. Sim, já conhecemos este tipo de cinema, mas há muito que ele não nos deliciava tanto.

Não é a primeira vez que Woody Allen se preocupa com o sentido da vida, mas neste caso o seu niilismo desordenado e assente no princípio clássico do "Carpe Diem" parece ter uma aura negra. Ou seja, como se a idade avançada tirasse qualquer réstia de optimismo perante uma ordem das coisas sem ordem alguma ou um desencantamento face ao caos que nos rege. Perante o peso da realidade, resta viver fechado sobre nós próprios e aproveitar. Porque nada mais se pode fazer.

É mais ou menos isto que move Boris, um homem amargurado, que se sente mais consciente do vazio do que a maioria das pessoas e que não tem nada a prendê-lo à vida - sim, há até umas tentativas de suicídio comicamente montadas... Mas aqui Woody Allen resolve converter a grande e rabugenta personagem de Larry David - como peixe na água a fazer de Woody Allen... à sua maneira peculiarmente rezinza - em nome do amor.

É essa inversão que não aconteceu em outros casos como 'Crimes e Escapadelas' - talvez o melhor e mais dramático tratado do cineasta sobre as difusas fronteiras do bem e do mal. TUDO PODE DAR CERTO é por isso uma comédia sensível e esperançosa de que a sorte, apesar de ser o que mais pesa numa existência, possa mudar de um momento para o outro.

Além de excelentes desempenhos, Woody Allen dá com este filme um novo fôlego para quem o criticava de ter superficializado o seu estilo. E aproveita para satirizar as relações humanas, os telhados de vidro, a situação de uma América cosmopolita mas enredada nas aparências. Neste ponto, os pais de Melody (irresistível Evan Rachel Wood) e a sua conversão a uma liberdade até sexual são mais uma tirada de génio de Allen.

TUDO PODE DAR CERTO pode não ser a obra-prima que todos ambicionam, mas é o mais inteligente filme de Woody Allen desde 'Match Point'. Nem sequer falta aquela vontade em testar a relação espectador-filme, colocando o protagonista a interpelar directamente quem está sentado na cadeira de uma sala escura. Já tínhamos saudades de ser assim surpreendidos.

TUDO PODE DAR CERTO
De Woody Allen (2009)

* * * *
Nada como regressar à Nova Iorque natal para voltar a filmá-la em tempos agitados e desencantados. Há piadas sobre a recessão, a morte e a modernidade, o que revela que Woody Allen é, além de um cineasta, um excelente observador de comportamentos. O modo como as personagens de Larry David e Evan Rachel Wood (ambos excelentes) evoluem é um caso de coerência narrativa e muito bom gosto. A singeleza da acção que se dá a conhecer a passos lagos é suficiente para continuarmos todos os anos a ansiar por mais um filme de Woody Allen. Esta é a primeira grande surpresa cinéfila do ano. A tradição ainda é o que era...

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