13 de março de 2010

NA SALA ESCURA: Duas faces do melodrama

AVAREZA. «Não me mintas! O amor não quer nada comigo. Manda-me abaixo. O amor viola-me. Faz-me sentir que não valho nada.» PRECIOUS (Gabourey Sidibe)

A ideia da Academia de recuperar a velhinha tradição de ter dez nomeados para o Óscar de Melhor Filme pode ter soado a marketing, mas o que é certo é que se pôde ver filmes na linha da frente, que de outra forma nunca lá chegariam, não por falta de mérito próprio, mas pelas próprias noções inculcadas nos membros que escolhem os nomeados.

Apesar disso, tanto PRECIOUS como NAS NUVENS constariam certamente do leque de melhores filmes se a categoria se mantivesse só com cinco nomeados. A força dramática que os define, bem como o esforço para repensar o melodrama tornam ambos em excelentes exercícios do novo cinema norte-americano, mais próximo da matriz independente do que as fórmulas já gastas do típico blockbuster.

Comecemos pelo primeiro: trata-se de uma adaptação de um romance literário sofrido, uma história profundamente dramática, facilmente capaz de entrar no campo do sofrimento enjoativo. Pois bem: Lee Daniels conseguiu o frágil equilíbrio de traduzir as palavras amargas de Sapphire num belo conto triste.

A protagonista tem o mundo inteiro contra ela: obesa desmesurada, infeliz, analfabeta e com um filho deficiente resultante de uma violação do seu pai, a protagonista tem ainda de lidar com uma nova gravidez indesejada e com os tormentos físicos e psicológicos de uma mãe em estado de combustão permanente (interpretada magistralmente por Mo'Nique, justamente vencedora do Óscar de Melhor Actriz Secundária).

Mas quando se cai no fundo do poço só resta começar a tentar subir e é pelas palavras - a almejada poesia! - que Precious encontra algum conforto. Nisso e nos amigos. Seja a professora que lhe alimenta os sonhos, a um enfermeiro que a ajuda no parto, nas colegas de carteira ou numa funcionária da Segurança Social que quer descobrir o lado negro da personagem principal.

Além de uma contenção dramática impressionante, PRECIOUS reclama para si as linhas com que se cose o drama urbano, familiar e pessoal. Suportado por diálogos crus e bastante dolorosos, o filme tem uma estética bem conseguida, planos assombrosos e uma dinâmica autoral. É um filme com méritos próprios, que cresceu essencialmente do boca a boca.

Já NAS NUVENS, de Jason Reitman, pretende aproximar a comédia romântica com uma reflexão de contornos levemente dramáticos sobre os tempos modernos.

Numa época em que o trabalho já não é para sempre, o medo do despedimento serve de base para se conhecer a figura de fato aprumado e mala omnipresente na mão vivida por George Clooney. O seu trabalho é, precisamente, dar conta do fim do trabalho dos outros. Para tal, existe uma táctica discursiva que o protagonista domina como poucos. E uma vida passada em aeroportos.

É assim que se repensa a globalização, o pertencer a todo o lado e a lado nenhum. Tudo com a leveza das grandes histórias e simplicidade. Além de se questionar as relações humanas, questiona-se a noção de que viver sozinho é mais seguro do que acompanhado. Mas, por mais racional que se seja, o coração ainda consegue pregar partidas... Se Clooney é mais profundo do que a norma, Vera Farmiga e Anna Kendrick são o contraponto desejado. Em suma: um grande filme que aposta tudo na simplicidade. Outro equilíbrio difícil de alcançar. O melodrama está vivo, renovado e... recomenda-se.

PRECIOUS
De Lee Daniels (2009)
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Um minúsculo projecto produzido por Oprah Winfrey cresceu desmesuradamente e ainda bem. Baseado em factos reais, o filme é intenso, realista, profundo e cruel. Como cruéis são algumas vidas desavindas. O belo retrato humano deve muito à câmara de Lee Daniels, mas também a excelentes desempenhos: desde a estreante Gabourey Sidibe à monstruosa Mo'Nique, passando pelas breves presenças de Paula Patton e Mariah Carey. No fundo, é o que de melhor "um caso da vida" pode ser.


NAS NUVENS
De Jason Reitman (2009)
* * * *
O cinema de Jason Reitman já tinha impressionado com o simpático "Juno", mas aqui amadurece nas intenções e nos resultados. O homem que despede toda a gente e que gosta de viver sozinho, vai perceber que ainda pode ter surpresas afectivas. Tal como o espectador que aderir a este jogo de personagens muito bem elaborado. Cheio de boas ideias dramáticas e visuais, o filme tem ainda uma bela sequência inicial, com as vistas aéreas a assumirem um interessante lado expressionista e, por vezes, abstracto. A comédia quer-se inteligente assim!

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