5 de abril de 2010

NA SALA ESCURA: O vício em John Travolta

IRA. «Oh! Que se lixe o futuro!» TONY MANERO (John Travolta)

O IndieLisboa, que está prestes a voltar para mais uma edição, tem muitos méritos. O maior talvez seja a possibilidade de fazer chegar aos ecrãs nacionais projectos autorais, de dimensão menor, que de outra forma ficariam esquecidos no contexto cultural dos seus países de produção. Pois bem, TONY MANERO pode chegar com dois anos de atraso aos cinemas, mas ainda bem que o faz em nome do cinema multicultural, diverso, independente.

Estamos no Chile nos finais dos anos 70, com o regime de Pinochet a desintegrar um país sem raízes culturais, desfeito no espartilho político que corrompe a consciência, nas encruzilhadas da desigualdade social. No meio da crise, o cinema pode surgir como escape, ainda que depois sirva para ilustrar o comportamento erróneo de uma personagem que vive à margem.

É assim que nos é apresentado Raul Peralta (soberbo Alfredo Castro), um homem que mora nos subúrbios e que tem uma estranha obsessão: a figura de Tony Manero, personagem icónica de John Travolta em 'Saturday Night Fever'. O seu sonho é copiar-lhe os movimentos, a roupa branca com calças coladas ao corpo e deixar-se levar pela aura funky, ou melhor, disco sound.

À volta desta paixão tudo rui. Há uma rotina centrada numa pequena pensão, feita de personagens tristes que se deixam levar pela música de Raul. Mas este não é um modelo a seguir: além da sua obsessão em Tony, há também uma obscura veia de 'serial killer', que Raul demonstra nas mais inusitadas situações.

TONY MANERO é, por isso, um retrato dúplice de uma realidade chilena bem documentada, assente em personagens profundas e estranhas. O mérito do filme, de imagem granulosa, cores esbatidas e planos cortantes para evidenciar a deambulação do protagonista, é precisamente a figura construída por Alfredo Castro, dividida entre o sonho do disco sound e o pesadelo da morte que lhe corrói a acção.

Realizado em 2008, o projecto é um dos mais interessantes e díspares retratos sul-americanos que nos chegou nos últimos tempos. É bom descobrir este trabalho de Pablo Larraín, um autor preocupado em mostrar figuras humanas até na sua mais insondável inconstância.

TONY MANERO
De Pablo Larraín (2008)
* * *
Chile não é dos países cujo cinema seja mais conhecido por cá, mas há uma nova vaga que merece ser respeitada e discutida. Este trabalho de Pablo Larraín combina drama político, com thriller arrepiante e musical ilustrado pelas bolas de espelhos das discotecas. Apesar de haver alguma dificuldade em lidar com os espaços entre as cenas, o filme é um interessante retrato de personagens desavindas, com particular destaque para a entrega de Alfredo Castro ao seu Raúl, que sonha em ser John Travolta. Daí ao abismo é um curto passo...

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