30 de setembro de 2006

NA SALA ESCURA: A poesia do caos, cinco anos depois

Muita gente tem questionado a razão por que um realizador que reincide no "politicamente incorrecto" se deixou submergir por uma tragédia como o 11 de Setembro de 2001 e rodou um filme patriótico, melodramático, centrado na experiência poderosa de dois membros da Autoridade Portuária de Nova Iorque, que conseguiram escapar com vida à queda das Twin Towers. Oliver Stone já dissecou o Vietname por três vezes, o assassinato de JFK também. Fez a apologia da violência, denunciou regimes políticos repressivos na América Latina e traçou o percurso de Nixon. O seu cinema é, naturalmente, de grandes causas, porque este cineasta (talvez o melhor do cinema contemporâneo "mainstream") usa as imagens - manipula-as com requinte, seria melhor dizer... - para delinear retratos profundos, quase sempre fracturantes. Depois do desaire de Alexandre, O Grande (ainda ninguém percebeu muito bem por que é que este épico falhou, apesar de ambicioso e esteticamente interessante, mas, acima de tudo, vazio...), Stone foi mexer num trauma recente da história norte-americana e, pelas consequências globalizantes de hoje, mundial, usando menos intervencionismo crítico perante a situação em redor, mas centrando-se no limiar da vida/morte de dois homens, presos durante longas horas nos escombros do World Trade Center. Homem de esquerda, Stone poderia ter criticado a postura de Bush, elaborado rebuscadas teorias da conspiração ou colocar um olhar mais azedo numa obra que chega aos ecrãs cinco anos depois do dia em que o mundo mudou. E que colocou nas nossas vidas, directa ou indirectamente, um receio, uma suspeita, um olhar de soslaio para alguém de cor diferente... Stone procura com este soberbo World Trade Center a redenção, não só com os espectadores que possam ter ficado desiludidos com as suas últimas experiências cinematográficas, mas com uma Nação que só agora começa a retratar os seus maiores traumas no ecrã. Numa era de tecnologia de ponta e multi-informação, quanto tempo demora a olharmos de frente para um tragédia, a ficcioná-la ou até mesmo a rirmo-nos dela? Cada vez menos... Com World Trade Center, o que Stone consegue fazer é levar o espectador a jogar as mãos na consciência para questionar os limites da maldade humana.


Pecado do Dia: Avareza

Contenção é a palavra de ordem que domina a visão de Oliver Stone sobre a tragédia do 11 de Setembro de 2001. World Trade Center prefere usar as imagens televisivas sobre a tragédia do que encenar em grande escala o embate dos dois aviões nas torres mais elevadas de Nova Iorque. A primeira colisão só é visível numa sombra, a outra é anunciada por telefone. O efeito é perturbante e revela a mestria de Stone em brincar com as convicções do espectador, porque apesar deste não voltar a ver no ecrã o que já conhece de cor, toma o embate como garantido, justamente pelas imagens que viu na televisão aquando da tragédia. Depois, há que centrar um monumental acontecimento na vida de dois homens, bombeiros, que ficam soterrados nos escombros da primeira torre. É aqui que se entra na poesia do caos, na tragédia de quem é inocente e vê a sua vida corrompida por um enorme colapso. As personagens de Nicolas Cage e Michael Peña fazem-nos acreditar que há esperança e conseguem envolver o espectador quase sem se mexerem na maior parte da acção - o esforço de Cage é mesmo de louvar... Depois vêem-se as suas famílias, espectadoras de uma tragédia que não compreendem. Oliver Stone usa um microcosmos social, mas que aborda as várias nuances imediatas do 11 de Setembro de 2001. Não optou pela análise política, pelas repercussões estratégicas internacionais ou pelo medo do terrorismo. Fez antes um poderoso melodrama, que faz recuar este acontecimento à sua essência, a dos sentimentos. E ajudou-nos a perceber que, muitas vezes, quando assistimos a uma tragédia pelos média, esta já vem filtrada. Com World Trade Center temos a ilusão de ter estado mais perto de um colapso. Pelo menos, o sentimento parece chegar até nós. Será que Oliver Stone se rendeu ao seu país e aceitou os seus inúmeros defeitos? Não. O que não quer dizer que não possa filmar belíssimos casos de vida. * * * *

27 de setembro de 2006

As imagens também dançam

Por motivos diversos (muito trabalho, mudanças, contenção de custos e cansaço apesar da semana de férias há bem pouco tempo...), tenho estado quase de costas voltadas para o cinema em sala escura. Um pecado que prometo compensar um dias destes... Solução imediata para este mal? Consultar a pilha de DVDs que tenho lá por casa (e que consegui reordenar novamente por ordem alfabética, devido a mudança necessária) e escolher ao acaso um filme que me pode marcar o serão pelas melhores razões. Billy Elliot não foi escolha minha... mas ainda bem que o revi, no outro dia, à noitinha, na companhia da pessoa certa. Revi-o pela quarta ou quinta vez e chego cada vez mais à conclusão que este musical inglês (dos produtores de Quatro Casamentos e um Funeral ou O Diário de Bridget Jones) é mais um manual de uma adolescência à descoberta de si própria pela dança do que um mero seguidor dos cânones do musical dançado. E, no final, deu-me vontade de dançar ao acaso, como nas crises de criatividade do jovem protagonista (excelente Jamie Bell). E logo eu, que não sou fã de musicais - há Moulin Rouge, Toda a Gente Diz Que Te Amo e pouco mais do que os clássicos Chapéu Alto ou Serenata à Chuva. O que torna Billy Elliot excepcional é a sua capacidade de restituir o espírito rebelde e ingénuo da juventude, transportando a música para a história como escape para uma realidade mais crua. Esta inserção nada poética e até abrupta é absolutamente performativa. E dá vontade de ver de novo.

Pecado do Dia: Inveja

Foi uma estreia certeira, digna de causar muita inveja pela consistência de uma primeira obra:
Stephen Daldry, hoje ainda mais respeitado porque após Billy Elliot construiu o elenco feminino mais sólido dos últimos anos em As Horas, surpreendeu toda a gente com uma história simples, passada numa Inglaterra provinciana, dilacerada por greves de mineiros durante a governação de Margaret Tatcher, em que um jovem rapaz que deveria praticar boxe, se deixa seduzir pelos movimentos graciosos do ballet. É uma história contada em jeito de Patinho Feio - o número final de O Lago dos Cisnes sintetiza a analogia na perfeição - com a música a ilustrar as imagens com uma imensa comoção. Mais do que isso, há a veracidade dos desempenhos, seja Jamie Bell a construir uma personagem em mutação psicológica permanente, ou uma Julie Walters como a professora de ballet cheia de frustações e exigências. Este conto que é um valente sopro para auto-estimas mais fragilizadas mostra que as imagens também dançam. Sejam as do ecrã ou as que se colam na nossa cabeça. * * * * *

19 de setembro de 2006

Jornais à procura de um lugar ao sol

E, subitamente, o mercado jornalístico entrou em polvorosa devido à estreia de um semanário com nome de tablóide britânico que, desde o primeiro número, assume que não cede a promoções e espera, em poucas semanas, tornar-se líder do seu sector. Mas alguém acredita que, verdadeiramente, possa fazer mossa ao "saco de plástico"? Há uns meses diria que não, hoje com o "lusco-fusco" gerado dou o largo benefício da dúvida. A estreia foi, de facto, em grande, com um visual arejado (talvez demasiado tabloidizado no que concerne ao caderno principal), muitas ideias e um descomprometimento que já há alguns anos fazia falta. Mas onde está o suplemento de cultura? A boa edição fotográfica? O "Sol" é jovem e ambicioso e precisa apenas de limar umas arestas. A sua entrada no mercado só pode ser louvável, até porque obrigou o "Expresso" a mudar de visual e a perder o quase monopólio dos semanários (depois, gerou um dano colateral: o encerramento há muito anunciado do "Independente", um jornal que guardo num cantinho privilegiado da minha memória). No meio desta picardia, importa não esquecer que, mais do que projectos em constante renovação, o jornalismo precisa de deixar de ser preguiçoso, escrito sempre a partir da secretária, menos dependente das agências externas e procurar histórias próprias. Toda a gente sabe disso, mas como investir quando as vendas caem todos os dias e os gratuitos ganham terreno a cada nova semana? O que é certo é que o jornalismo está a mudar a sua essência com uma rapidez estonteante e, parece-me, que no futuro a informação será cada vez mais um bem "de borla". Este paradoxo será interessante de observar de perto. Muitas vezes, longe da visão saudosista do grande ecrã.

Pecado do Dia: Avareza

Neste período de convulsão jornalística, apeteceu-me recuar às origens, às aulas académicas de jornalismo e à figura de um certo professor de sotaque norte-americano que me deu a ver pela primeira vez, como o cinema de meios escassos e múltiplas ambições deu cartas há mais de 60 anos no olhar atento sobre o jogo de influências que rodeia a imprensa. Apesar de algo datada, a comédia O Grande Escândalo, de Howard Hawks, é um excelente exemplo de como os meandros jornalísticos podem ser os mesmos do cinema clássico. Claro que há um olhar romântico e uma caricaturização excessiva do par protagonista, Cary Grant e Rosalind Russel, em verdadeiro rodopio para conseguirem a "cacha" sobre um condenado à pena de morte. Exemplo perfeito do género "screwball comedy", O Grande Escândalo" apresenta uma guerra dos sexos ambígua, críticas à honestidade do repórter sem escrúpulos, mas acima de tudo, transmite o sentimento genuíno de prazer que a profissão de jornalista comporta. É uma relação de amor-ódio, que invade muitas vezes a esfera pessoal, onde o mérito se negligencia, mas onde, no final, tudo acaba por ter o seu sentido. O mestre Howard Hawks move-se neste meio com a profundidade com que abordou o melodrama ou o western. Ficou famoso em Hollywood por isso mesmo, por uma perfeccionista versatilidade. Neste caso, teve um dos seus pontos altos, criando uma obra-mestra para a comédia e um tratado anedótico sobre as perversidades de uma profissão que, embora hoje muito mais dependente da tecnologia, mantém os níveis de inconstância e adrenalina. Para quem lhe veste verdadeiramente a camisola. Depois há sempre o desabafo da personagem de Rosalind Russel para a de Cary Grant: "Now, get this, you double-crossing chimpanzee, there ain't going to be any interview and there ain't going to be any story. (...) I wouldn't cover the burning of Rome for you if they were just lighting it up. If I ever lay my two eyes on you again, I'm gonna walk right up to you and hammer on that monkeyed skull of yours 'til it rings like a Chinese gong! ." * * * * *

14 de setembro de 2006

NA SALA ESCURA: O fantasma feminino de Almodóvar

Almodóvar nunca escondeu o seu fascínio pelas mulheres. Munido de uma imensa sensibilidade (que gosta de transpor para o grande ecrã), o realizador espanhol filma os trejeitos femininos mesmo quando os seus protagonistas são homens - atente-se em Má Educação ou Fala Com Ela. Nos seus últimos filmes, articulou a sua veia de contador de histórias de cordel, nem sempre muito distantes da dinâmica de folhetim, com um sopro de poesia carnal, bastando recordar o modo como filmou os corpos em Em Carne Viva ou a morte no caso do já referido Fala Com Ela. Com o seu último filme, Voltar, o realizador espanhol parece querer respirar fundo, recordar as suas memórias de infância (a personagem de Carmen Maura, velha companheira nos filmes de Almodóvar que se afastou do mestre há quase 20 anos por desentendimentos pessoais, é assumidamente baseada na figura materna do cineasta) e voltar a homenagear o sexo feminino. Uma homenagem sentida, com reminiscências no cinema italiano clássico, subnarrativas de faca e alguidar e ainda um regresso à comédia, levando o espectador a rir da morte e, consequentemente, da vida. Este pequeno interlúdio numa evolução de carreira que parecia cada vez mais séria e intimista (ninguém duvida que o anterior Má Educação é a obra mais auto-biográfica da sua já extensa carreira) recebe-se com um sorriso e, apesar de já não existirem grandes surpresas no estilo, o resultado volta a surpreender pela figura do "fantasma", que afinal é capaz de ser a mais realista de todas as personagens. Com Voltar, Almodóvar comprova que pode filmar o que quiser porque o engenho e a sensibilidade já ninguém lhe tira. E, como grande cineasta das emoções que é, o resultado final é sempre alvo de admiração.

Pecado do Dia: Inveja

Já se disse que Voltar é um filme mais ligeiro que os seus antecessores e que representa um regresso do realizador espanhol aos lugares confortáveis da sua filmografia: comédia burlesca, intrigas rebuscadas, conflitos familiares, piscadelas de olho à morte e uma enorme vénia às mulheres. Na verdade, as mulheres são tudo neste filme, numa espécie de homenagem em que o fascínio roça a inveja pela luminosidade das suas vidas, a sua força em relação aos homens (o único que aparece é apunhalado em três tempos...) e o seu imenso sorriso. Penélope Cruz tem, neste filme, um presente imenso de Almodóvar - é mesmo, até ao momento, o desempenho da sua vida - ao incarnar a alma desse filme e o paradigma feminino dos filmes do mestre espanhol. O seu visual de diva clássica latina, as suas deambulações entre lágrimas e sorrisos ajudam a empurrar o filme para uma história em que o misticismo também é uma farsa, porque o que conta são as emoções, mesmo as que se apresentam ao olhar de forma brutal. Melodrama de cores vivas, Voltar surpreende pouco quanto a inventividade narrativa. Mas é tão forte nas emoções e reflecte tanto um estilo que já é recebido à partida com carinho, que só pode ser bem aceite. Vencedor do Prémio de Melhor Interpretação Feminina para o grupo de actrizes que lideram o elenco no Festival de Cannes deste ano, o filme é mais uma obra perfumada que Almodóvar dedica à sensibilidade de todos nós. * * *

13 de setembro de 2006

Um chá (e uma noite) no deserto

Costuma dizer-se que o que é bom acaba depressa. Concordo inteiramente e, nove dias depois, já estou de volta às pequenas coisas do dia-a-dia, à vida de sempre, ao trabalho, a casa. Mas estou diferente! Nem que seja por um bocadinho. A razão é simples: de toda a viagem que realizei por terras marroquinas (espaço de contrastes, de mescla de cheiros e sabores, de carências, de caos...), aquilo que mais retenho na memória é a breve passagem pelo deserto, com porta de entrada na pequena cidade de Zagora. É o chavão de quem se aventura pelas areias, com direito a passeio de dromedário e tudo (o meu, baptizei-o convenientemente de "Areias"), mas o silêncio e a paisagem feita de tudo que é o nada nunca mais me vai sair da cabeça. Dormir numa tenda de pano, com direito a música local, chá quente e lições de filosofia berbere fizeram-me crescer a mim e a quem foi comigo mais um bocadinho. O deserto é mais uma força da natureza que de tão deslumbrante nos faz sentir ligados à terra. Enterrar os pés na areia, sentir os pingos de chuva que só acontecem uma vez por ano (e que, felizmente, se manifestaram na noite em que lá estive) e ver o nascer do Sol no horizonte, fizeram-me sentir vivo. Senti esta experiência ao lado da pessoa certa e, agora, percebo que os dilemas do dia-a-dia são mais pequenos e sem sentido do que se podia imaginar. Grande é o monte de areia que, por causa do vento, nunca é igual todos os dias. É bom estar de volta!

Pecado do Dia: Soberba

Já se disse que Marrocos é também palco de cinema. Em Ouarzazate, pequena localidade interior (com uma estação de autocarros de fugir...), há um imenso estúdio de cinema que é possível visitar quando nenhuma rodagem estiver a decorrer. Obras que o tiveram como cenário primordial? Lawrence da Arábia, de David Lean, e Um Chá no Deserto, de Bernardo Bertolucci. O primeiro é tão grandioso que quero voltar a ele na altura certa (talvez quando esta experiência no deserto revelar-se demasiado nostálgica), o segundo parece-me mais imediato porque o revi recentemente. A história do casal de artistas norte-americanos Moresby (interpretados por uma irreconhecível Debra Winger e John Malkovich) é densa e entranha-se como os grãos de areia quando o vento puxa. Neste jogo de enganos, com demasiados momentos à deriva, é o espírito do Norte de África que parece dar sentido à relação carnal dúbia. Pelo meio, aparece o jovem George Tunner (Campbell Scott), capaz de baralhar as coordenadas afectivas dos protagonistas e introduzir um sentimento de rebeldia necessário para o filme evoluir. O que se destaca ainda em O Chá no Deserto é o seu tom atmosférico, a fotografia de cores quentes e as belíssimas imagens rodadas em Ouarzazate. Eu estive lá, ainda que de passagem, e é essa passagem que me faz olhar de outra forma para este melodrama e esquecer algumas das suas vulnerabilidades, onde Bertolucci revela demasiados tiques artísticos. Ainda assim, como experiência sensível, é um prodígio para o olhar. A génese do cinema, portanto. * * *