14 de setembro de 2006

NA SALA ESCURA: O fantasma feminino de Almodóvar

Almodóvar nunca escondeu o seu fascínio pelas mulheres. Munido de uma imensa sensibilidade (que gosta de transpor para o grande ecrã), o realizador espanhol filma os trejeitos femininos mesmo quando os seus protagonistas são homens - atente-se em Má Educação ou Fala Com Ela. Nos seus últimos filmes, articulou a sua veia de contador de histórias de cordel, nem sempre muito distantes da dinâmica de folhetim, com um sopro de poesia carnal, bastando recordar o modo como filmou os corpos em Em Carne Viva ou a morte no caso do já referido Fala Com Ela. Com o seu último filme, Voltar, o realizador espanhol parece querer respirar fundo, recordar as suas memórias de infância (a personagem de Carmen Maura, velha companheira nos filmes de Almodóvar que se afastou do mestre há quase 20 anos por desentendimentos pessoais, é assumidamente baseada na figura materna do cineasta) e voltar a homenagear o sexo feminino. Uma homenagem sentida, com reminiscências no cinema italiano clássico, subnarrativas de faca e alguidar e ainda um regresso à comédia, levando o espectador a rir da morte e, consequentemente, da vida. Este pequeno interlúdio numa evolução de carreira que parecia cada vez mais séria e intimista (ninguém duvida que o anterior Má Educação é a obra mais auto-biográfica da sua já extensa carreira) recebe-se com um sorriso e, apesar de já não existirem grandes surpresas no estilo, o resultado volta a surpreender pela figura do "fantasma", que afinal é capaz de ser a mais realista de todas as personagens. Com Voltar, Almodóvar comprova que pode filmar o que quiser porque o engenho e a sensibilidade já ninguém lhe tira. E, como grande cineasta das emoções que é, o resultado final é sempre alvo de admiração.

Pecado do Dia: Inveja

Já se disse que Voltar é um filme mais ligeiro que os seus antecessores e que representa um regresso do realizador espanhol aos lugares confortáveis da sua filmografia: comédia burlesca, intrigas rebuscadas, conflitos familiares, piscadelas de olho à morte e uma enorme vénia às mulheres. Na verdade, as mulheres são tudo neste filme, numa espécie de homenagem em que o fascínio roça a inveja pela luminosidade das suas vidas, a sua força em relação aos homens (o único que aparece é apunhalado em três tempos...) e o seu imenso sorriso. Penélope Cruz tem, neste filme, um presente imenso de Almodóvar - é mesmo, até ao momento, o desempenho da sua vida - ao incarnar a alma desse filme e o paradigma feminino dos filmes do mestre espanhol. O seu visual de diva clássica latina, as suas deambulações entre lágrimas e sorrisos ajudam a empurrar o filme para uma história em que o misticismo também é uma farsa, porque o que conta são as emoções, mesmo as que se apresentam ao olhar de forma brutal. Melodrama de cores vivas, Voltar surpreende pouco quanto a inventividade narrativa. Mas é tão forte nas emoções e reflecte tanto um estilo que já é recebido à partida com carinho, que só pode ser bem aceite. Vencedor do Prémio de Melhor Interpretação Feminina para o grupo de actrizes que lideram o elenco no Festival de Cannes deste ano, o filme é mais uma obra perfumada que Almodóvar dedica à sensibilidade de todos nós. * * *

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