31 de julho de 2006
Quanto mais antigo, melhor
Pecado do Dia: Luxúria
Num tempo em que a censura apertava, é de 1959 que estamos a falar, Billy Wilder usou este entrave para trabalhar a ironia como arma e tornar uma comédia aparentemente inofensiva num jogo intenso de paradoxos sexuais, com críticas ainda às tramas de "gangsters" e a alguma repressão. Quanto Mais Quente, Melhor respira sexualidade (e sensualidade muito por culpa dos caracóis louros e das formas voluptuosas de Marilyn, sempre Marilyn...) por todos os poros, sem mostrar mais do que uma alça descaída, uma perna mostrada de relance ou um olhar. Quando Jack Lemmon e Tony Curtis se vêem forçados a vestirem-se de mulher para escaparem à morte, começa a montanha-russa de lugares em falso, sarilhos que Billy Wilder desmonta e gere com a mestria que poucos conseguem sem que pareça falso. Por isso, e por todo o "timing" perfeito nas doses de comédia, Quanto Mais Quente, Melhor (Óscar de Melhor Guarda-Roupa) vai para aquele lugar elitista das comédias perfeitas, cristalizadas no tempo, que não perdem uma gota de inventividade quase 50 anos depois. Afinal, as armadilhas que provocam o riso continuam a ser as mesmas. E Marilyn tem aqui a sua prestação mais memorável. * * * * *
28 de julho de 2006
Os pinguins também são estrelas de cinema
Pecado do Dia: Avareza
O realizador Luc Jacquet surpreendeu meio mundo com o seu estilo fluído e poético na forma de filmar de muito perto o ciclo da vida dos pinguins-imperadores. O resultado é uma deliciosa fábula, que nos faz pensar que a Natureza faz sentido. O primor técnico, a capacidade da câmara surgir em todos os espaços sem ser notada, os diálogos sentimentais e a banda-sonora atmosférica fazem de A Marcha dos Pinguins uma obra enternecedora, menos científica que o típico documentário televisivo e capaz de ultrapassar as expectativas na narração do dia-a-dia familiar. Os pinguins-imperador são das espécimes mais raras do planeta, as que lutam contra o clima mais feroz e agora são também estrelas de cinema. Daquelas que vão ficar sempre coladas à retina... * * * *
26 de julho de 2006
O maior êxito português é um imenso "trailer"
Pecado do Dia: Luxúria
Se há aspecto que O Crime do Padre Amaro parece representar uma evolução é na forma como são filmadas as cenas de sexo entre um Amaro Vieira (Jorge Currula) pouco verosímil e uma Amélia (Soraia Chaves) lasciva e lacónica. Pode-se especular sobre um primeiro passo para um cinema erótico nacional, mas este filme de Carlos Coelho da Silva não é mais do que um imenso "trailer" moderno e cosmopolita que manipula de forma grosseira o património literário de Eça de Queiroz e pretende não mais do que limar a sua história à imagem de Zona J, de Lionel Vieira. O principal "pecado" deste filme é ter sido concebido como uma mini-série para a SIC, pelo que a versão de 100 minutos é uma imensa salada de ideias, com momentos cénicos de curtíssima duração, maus "raccords" e espessura dramática quase nula. Apesar de apostar num vasto número de actores portugueses - todos parecem querer "fazer uma perninha", desde Rogério Samora a João Lagarto, Ruy de Carvalho, Ana Bustorff ou Maria Emília Correia -, todos os papéis são caricaturas assustadoramente básicas e nem um colossal Nicolau Breyner consegue escapar do desaire. O Crime do Padre Amaro é televisão passada para o grande ecrã, o que pode não ser totalmente negativo se recordarmos o pioneiro Adão e Eva. Neste caso, além de distorcer qualquer ponto de vista mais sério sobre fé, o filme quer ser levado a sério, mas ao fim de cinco minutos já perdeu o rumo. Para nunca mais se encontrar... *
25 de julho de 2006
Um simulacro de Kurt Cobain
Pecado do Dia: Avareza
É de muita contenção de meios que se faz esta obra de Van Sant, mais por convicção e desejo de criar um estilo mais intimista, do que por necessidade. Van Sant filma uma obra para o seu umbigo e deita por terra qualquer boa ideia cinéfila. Prefere levar o espectador a deambular com o protagonista, Blake (um Michael Pitt convincente mas sem nada para dizer, porque as falas não abundam neste registo introspectivo mas vazio), que se encontra à beira da decomposição. Os seus últimos dias são apresentados quase sem cortes, num exercício de "cinema-verité" fora do contexto e contrariado pelo final pseudo-espiritual. Ruidoso, Last Days - Os Últimos Dias é desconfortável e só algumas sequências (como o longo plano de confronto com o vendedor de listas telefónicas ou o desabafo melódico de Blake - que é o único vestígio de música ao longo de toda a história) salvam o filme da pura inércia. Exercício de estilo? Talvez, mas chumbado pela pretensão intelectualizante que tem até um ponto negativo: questiona ao de leve o valor das duas obras anteriores de Van Sant, que se regem por um registo narrativo semelhante, ou seja, Gerry e Elephant, mas que conseguem passar uma mensagem relevante. * *
24 de julho de 2006
A ironia serve-se com pétalas de rosa
Pecado do Dia: Inveja
Como se desconstrói um país e se expõe as suas fragilidades na sua componente mais flagrante, não hesitando críticas incisivas e vontade em não alimentar paradoxos, descodificar hipocrisias e alertar para uma imensa crise de valores? E como extrair beleza de tudo isso? De famílias que não se encontram, pais que cobiçam amigas das filhas, homens que reprimem varões, pessoas que cedem a chantagens ou até do mero saco de plástico que oscila na rua ao sabor de uma brisa outonal... Sam Mendes tem a resposta e filma o enorme sentimento de inveja que domina os falsos moralismos urbanos com uma sensibilidade tocante e um enorme dom para misturar o realismo descoordenado do universo familiar com breves abstracções que ilustram as neuroses dos protagonistas (um Kevin Spacey sem saber para onde ir, e digno vencedor de um Óscar de Melhor Actor, e uma Anette Benning histriónica e irresistível). A fotografia é soberba, os planos artísticos também. Depois, na vontade em colocar a mão no lodo social sem luvas de pelica, sobressaem ainda as pétalas de rosa vermelhas que dão um ar metafórico e perfumado à falsa beleza americana que é, afinal, mais genuína assim que caem todas as máscaras. Afinal, quem não as usa? * * * * *
21 de julho de 2006
Sentir Hitchcock ao ar livre
Pecado do Dia: Soberba
O serão de hoje inscreve-se sob o signo da dúvida e do desespero que os segredos podem gerar no convívio conjugal. Suspeita, de 1941, não é dos títulos mais óbvios da carreira de Hitchcock mas foi um dos primeiros sinais do requinte e da consciência plena do seu estilo que o mestre imprimiu por terras norte-americanas. Cada cena tem já a sua sombra (e há até o habitual "cameo"...), cada movimento de câmara revela já uma perfeita noção dos contornos da envolvência narrativa e psicológica e... depois há os efeitos de "suspense", aqueles pequenos truques cinematográficos para realçar até que ponto Lina (Joan Fontaine, vencedora do Óscar de Melhor Actriz por esta prestação dúplice) deve suspeitar das intenções do marido (o eterno galã de comportamentos ousados, Cary Grant). Suspeita deu que falar devido à obrigação de Hitchcock em alterar o final com o medo do estúdio RKO de que o público se afastasse do filme se este fosse demasiado cruel. É pena... porque é precisamente o fim o mais morno de uma história que tem ainda uma curiosa alusão a Agatha Christie. Cenas memoráveis? A caminhada de Cary Grant com um copo de leite fresco nas mãos, que sintetiza a ambiguidade que Hitchcock conseguia criar com um simples (afinal, bastante complexo...) jogo cénico. Hoje, às 22.30 no Museu do Cinema ou em DVD numa edição da Costa do Castelo. * * * *
20 de julho de 2006
NA SALA ESCURA: Catástrofe à beira da extinção?
Pecado do Dia: Ira
Já se sabia que Wolfgang Petersen não era muito dado a grandes profundidades na altura de apresentar as suas personagens - basta recordar a visão maniqueísta que criou do guerreiro Aquiles no interessante épico Tróia. Apesar disso, o seu estilo lacónico e incisivo nunca tinha conhecido tamanha dimensão e logo no filme mais caro em que se envolveu... Em Poseidon, os protagonistas apresentam-se cada um em duas ou três cenas para, logo de seguida, se embrenharem numa complexa luta pela sobrevivência (entre as caricaturas contam-se Richard Dreyfuss num papel "sui generis" e Josh Lucas a tentar copiar o heroísmo malandro de Tom Cruise). E... é só isso! De resto, Hollywood aproveita para mostrar o que já consegue fazer em matéria de efeitos digitais e actores como Kurt Russell procuram restituir o prestígio que o filme nunca deixa explorar. Aqui, o barco é o protagonista e a mão de Petersen também. Apesar de desequilibrado, Poseidon é talvez o melhor exemplo de um filme-catástrofe com marcas de filme de autor (a ira, a dinâmica bruta e... a surpresa tétrica). Se é que isso é possível... * *
19 de julho de 2006
Seis minutos de Tim Burton
Pecado do Dia: Soberba
Apesar de, por cá, estar apenas acessível na edição especial do DVD de O Estranho Mundo de Jack - o que parece ser a combinação perfeita -, Vincent é tão ou mais importante do que a obra que ajuda a complementar em formato digital. É uma pequena delícia que revela o engenho de Tim Burton em recorrer a referências mais negras, o gosto pela fábula e por uma certa nostalgia do terror "low cost" - não é por acaso que já fez um "biopic" sobre Ed Wood. Em Vincent, o lado de menino que vive perdido em pensamentos impróprios para a idade ganha outra dimensão com os bonecos de traço apurado (alguém duvida que os cabelos em desalinho da personagem principal são uma alusão ao próprio visual de Burton?) e o belíssimo texto narrado pelo próprio Vincent Price, em que a voz dúplice se conjuga na perfeição com a bipolaridade da criança que sonha com a morte, fantasmas e torturas inesperadas. Exemplos da beleza destes versos? "Vincent Malloy is seven years old, / He's always polite and does what he's told. / For a boy his age he's considerate and nice, / But he wants to be just like Vincent Price. / He doesn't mind living with his sister, dog and cat, / Though he'd rather share a home with spiders and bats... " Já se sente o arrepio na pele? * * * * *
18 de julho de 2006
O medo vem do Oriente
Pecado do Dia: Ira
O principal segredo de Anjo ou Demónio, que deu nas vistas no Fantasporto há seis anos, é o facto de começar como um melodrama romântico, sobre a tentativa de um viúvo de refazer a sua vida afectiva, para desembocar num chocante "thriller" carnal, com direito a torturas rebuscadas (corte de membros do corpo), traumas de infância e longas alucinações. A capacidade para passar de um género antagónico para o outro, permite o choque e o embaraço do espectador, perdido num jogo estranho entre a realidade e o confronto psicológico do protagonista. Depois há a personagem feminina, Asami Yamasaki (Eihi Shiina), que vai a um "casting" para participar num filme da produtora do protagonista e, apesar de não ficar no papel de um filme que nunca chega a existir, se envolve carnalmente com o víuvo carente. Mas as coisas não são o que parecem (poderia ser de outra forma?) e Anjo ou Demónio promete muitas surpresas, como o arrepiante desabafo "mais fundo, mais fundo", da personagem feminina. Não é o que estão a pensar... É muito mais perverso do que isso... Aceitam este jogo de ira? * * * *
17 de julho de 2006
Onde pára o romantismo em Hollywood?
Pecado do Dia: Preguiça
É esse o defeito de Separados de Fresco e da grande maioria das comédias românticas cosmopolitas: uma enorme carência de ideias. Apesar do "à vontade" de Vince Vaughn neste tipo de papéis e de uma ou outra cena hilariante (a sequência do jantar de família cumpre muito bem os seus objectivos), este filme de Peyton Reed, que foi um dos êxitos-surpresa do Verão nas bilheteiras norte-americanas, vê-se com a facilidade de quem vê um episódio de "Friends", mas sai-se da sala com a sensação de que se poderia ter ido muito mais longe... Afinal, numa época de tantas mudanças e transformações, nem sempre é fácil entender a complexidade das relações afectivas. Mas aligeirá-las até ao limite será a melhor opção? * *15 de julho de 2006
NA SALA ESCURA: O banal é cinematográfico
Pecado do Dia: Preguiça
Miranda July não tem pressa em apresentar as suas personagens ou fazer crer ao espectador onde pretende ir em matéria dramática. É até bastante "preguiçosa" neste ponto e... ainda bem. Mais centrada nos pormenores estéticos e introspectivos das personagens, é quase por acaso que entendemos que a relação dos dois filhos de Richard (John Hawkes) com o pai já teve melhores dias ou que Christine (Miranda July) escolheu a profissão de "taxista de idosos" porque não gosta de estar sozinha. Mas sabemos o essencial porque em Eu e Tu e Todos os Que Conhecemos o que se pretende é dar pequenos episódios da realidade de cada pessoa, com uma apreensão mais realista do que cinematográfica da história. Leve e ambiciosa, a vida desta gente sem coordenadas impõe-se à custa de momentos, como aquele maravilhoso teste à vida e morte de um peixe que se encontra num saco de plástico e em cima de um carro em movimento... Miranda July sabe o que quer e nunca envereda pelos percursos mais fáceis. Na tela, parece preferir os caminhos mais sinuosos e sumarentos do que os pré-estabelecidos. Vencedor da Câmara de Ouro do Festival de Cannes, Eu e Tu e Todos os Que Conhecemos é a sugestão perfeita para as noites quentes destes dias. Não só porque refresca o espírito, mas também porque ajuda a perceber que, no meio do caos do dia-a-dia, ainda há muito por descobrir e é sempre possível criar uma ordem alternativa... * * * *
14 de julho de 2006
Uma alternativa à "geração pixel"
Pecado do Dia: Gula
É um doce. De ver e chorar por mais... Belleville Rendez-Vous, de Sylvain Chomet, trouxe em 2003 uma nova dinâmica (e tom revivalista) para o universo da animação, com as deambulações da Mme. Souza (uma simpática portuguesa de buço, manca e minúscula de tamanho) na procura pelo neto ciclista, vítima de uma deliciosa conspiração. Onírica e desconexa, a história deste filme, que chegou a ser nomeado para o Óscar de Melhor Longa-Metragem de Animação, distorceu de tal forma as suas figuras (atente-se na visão da América a meio do filme) que só lhes confere mais personalidade. Nesta jornada sem regras muito realistas, a criatividade é ainda insuflada por uma banda sonora memorável, a cargo de Benoît Charest, que lembra canções de cabaré, com a energia necessária para suportarem toda a acção (muito parca em diálogo). Em suma, todos os condimentos necessários, para uma dose de animação que promete deixar qualquer espectador rejuvenescido. * * * *
13 de julho de 2006
O "swing" de Sinatra a preto e branco
Pecado do Dia: Soberba
Defensor do pragmatismo em detrimento dos artifícios narrativos, Otto Preminger construiu a sua carreira com obras lineares mas polvilhadas com marcas de autor por todo o lado. Preminger tinha orgulho do seu estilo e da sua obsessão por contar uma história através do movimento e das expressões dos seus actores. O Homem do Braço de Ouro é um exercício de estilo fabuloso, com uma excelente fotografia, uso expressivo da banda sonora e muitos traços de "film noir". Mas é um conto profundamente triste, de um homem, Frankie (Sinatra) a tentar lutar contra o vício. A seu lado, está uma esplêndida Kim Novak (na pele de Molly) e cada plano de conjunto entre este par é de antologia. De 1955, este filme foi nomeado para três Óscares (incluindo o de Melhor Actor). Cena memorável: o momento em que Molly pede lume a Frankie e, com a luz da chama de um fósforo, apercebe-se que o amado voltou a cair no vício. * * * * *
12 de julho de 2006
Distorcer o cinema: um pecado nem sempre errado
Pecado do Dia: Avareza.
Não existe uma pontinha de modéstia neste neoculto de Robert Rodríguez (até aqui habituado ao frenesi de filmes com algumas boas ideias, mas que derrapam num excesso de movimento para poucas motivações relevantes). E ainda bem. Com Sin City - Cidade do Pecado, eleva a banda-desenhada a um outro nível e, com o desejo de estilizar ao máximo as suas imagens, o cinema vai por arrasto para um campo que, visualmente, é muito aliciante. A forma como as três histórias, que seguem à risca a estrutura delineada pelos livros de Frank Miller, se encadeiam é também de realçar pelo engenho, assim como o regresso de Mickey Rourke à grande forma, na pele do herói "pecador" Marv. Neste conto sem verdadeiros heróis mas com um punhado de personagens à deriva no "pântano da corrupção", há ainda um "bombom": a cena rodada por Quentin Tarantino (amigo de longa data de Rodríguez) no carro em que circulam as personagens de Cliven Owen e Benicio "Morto-vivo" Del Toro. É preciso mais para se tornar um clássico deste novo século? Hollywood costuma responder facilmente a esta questão: sim, como uma sequela que chega já em 2007. * * * * *
11 de julho de 2006
A arte de pecar pelo olhar
Pecado do Dia: Todos.
De 1995, "Se7en" reinventou um género quando já tudo parecia inventado. A fotografia baça, os personagens à deriva, o confronto de métodos, a morte manipulada até à última exaustão e um "twist" de causar pele de galinha. Quase sem se dar por isso, tornou o "film noir" mais negro do que alguma vez tinha sido e Brad Pitt revelou-se um actor que quer ser levado a sério. Cada pecado mortal é dissecado da forma mais incisiva, para culminar no confronto com um dos vilões mais famosos da História do Cinema. Aqui, cada imagem permanece na retina, como aquele tormento que fica impregnado no inconsciente. * * * * *