31 de julho de 2006

Quanto mais antigo, melhor

Não tenho tido muito tempo para ir ao cinema. "Mea Culpa!" O trabalho não ajuda e consome o tempo livre na medida em que me demoro a conseguir descolar dele. Depois, além da vida pessoal, que estimo e que nem sempre quero que se confunda com serões passados no cinema, tenho ainda uma série de DVDs que se têm vindo a acumular lá em casa para (re)ver. Neste período de alguma exaustão - em que ainda me escapam "filmes obrigatórios" na sala escura como Carros, Profissão: Repórter, Diários da Bósnia ou até mesmo a "pipoca" deste Verão Os Piratas das Caraíbas II - há um vício que não me escapa: o gosto dos clássicos. Sim, aqueles a preto-e-branco, do período de ouro de Hollywood, com meios arcaicos quando comparados com as grandes produções de hoje, mas que mostravam o vigor de se estar a desbravar novos caminhos rumo a uma ficção capaz ainda de surpreender... Nesta caminhada de testar emoções (por, em alguns casos, ainda não existirem precedências), enterneço-me sempre com um filme de Hitchcock, Preminger, Ford e... Billy Wilder. É a ele que dedico este apontamento, pela forma como acreditava que os seus filmes eram feitos para a gestão de expectativas do público e por ter criado alguns dos mais poderosos documentos cinematográficos em cada estilo - O Crepúsculo dos Deuses no melodrama, Pagos a Dobrar no thriller, O Apartamento na comédia romântica ou Grande Carnaval na crítica social e no poder manipulador do jornalismo. Depois, há ainda aquela deliciosa "screwball commedy", com duas "drag queens" de se lhe tirar o chapéu: Jack Lemmon e Tony Curtis. Às voltas com os enganos e uma mítica Marylin Monroe. Quanto Mais Quente, Melhor é daquelas pérolas que não cansam. E que constituem uma alternativa imediata (quando adquirido o DVD) à ressaca de estar a falhar o compromisso de ir ao cinema todas as semanas. Os clássicos ficam... e eu com eles.

Pecad
o
do Dia: Luxúria

Num tempo em que a censura apertava, é de 1959 que estamos a falar, Billy Wilder usou este
entrave para trabalhar a ironia como arma e tornar uma comédia aparentemente inofensiva num jogo intenso de paradoxos sexuais, com críticas ainda às tramas de "gangsters" e a alguma repressão. Quanto Mais Quente, Melhor respira sexualidade (e sensualidade muito por culpa dos caracóis louros e das formas voluptuosas de Marilyn, sempre Marilyn...) por todos os poros, sem mostrar mais do que uma alça descaída, uma perna mostrada de relance ou um olhar. Quando Jack Lemmon e Tony Curtis se vêem forçados a vestirem-se de mulher para escaparem à morte, começa a montanha-russa de lugares em falso, sarilhos que Billy Wilder desmonta e gere com a mestria que poucos conseguem sem que pareça falso. Por isso, e por todo o "timing" perfeito nas doses de comédia, Quanto Mais Quente, Melhor (Óscar de Melhor Guarda-Roupa) vai para aquele lugar elitista das comédias perfeitas, cristalizadas no tempo, que não perdem uma gota de inventividade quase 50 anos depois. Afinal, as armadilhas que provocam o riso continuam a ser as mesmas. E Marilyn tem aqui a sua prestação mais memorável. * * * * *

28 de julho de 2006

Os pinguins também são estrelas de cinema

E continua a revisão bem escolhida do que se passou no último ano cinematográfico na sala 3 do Cinema King. Hoje é dia de documentário gelado, para contrastar com os dias quentes de Verão. A Marcha dos Pinguins foi um dos êxitos-surpresa do ano passado e colocou a França no território do documentário mediático, que culminou com a atribuição de um Óscar de Melhor Documentário. Na verdade, o filme não é totalmente documental, opta pela dobragem melodramática, em jeito de ficção intimista, que tem melhores resultados do que se poderia esperar. E é surpreendente que tanta gente tenha aceite o desafio de contemplar belas paisagens e reconciliar-se no ecrã com as rotinas e os caprichos ambientais que a Natureza criou. Longe das grandes produções e efeitos especiais de costume...

Pecado do Dia: Avareza

O realizador Luc Jacquet surpreendeu meio mundo com o seu estilo fluído e poético na forma de filmar de muito perto o ciclo da vida dos pinguins-imperadores. O resultado é uma deliciosa fábula, que nos faz pensar que a Natureza faz sentido. O primor técnico, a capacidade da câmara surgir em todos os espaços sem ser notada, os diálogos sentimentais e a banda-sonora atmosférica fazem de A Marcha dos Pinguins uma obra enternecedora, menos científica que o típico documentário televisivo e capaz de ultrapassar as expectativas na narração do dia-a-dia familiar. Os pinguins-imperador são das espécimes mais raras do planeta, as que lutam contra o clima mais feroz e agora são também estrelas de cinema. Daquelas que vão ficar sempre coladas à retina... * * * *

26 de julho de 2006

O maior êxito português é um imenso "trailer"

Antes de mais o filme teve um mérito inédito: levar às salas nacionais mais de cem mil pessoas. Um feito único para o precário cinema português, que ainda precisa de um "abanão" de forma a tornar-se algo mais do que o nicho artístico que parece de costas voltadas para o grande público. Agora que chega ao DVD, O Crime do Padre Amaro representa a estreia do cinema português no SIN CINEMA. Apesar disso, não é a mais feliz: se é o maior filme nacional em matéria de receptividade, não deixa de ser também um dos mais trôpegos, caricaturais e com pior gestão dramática de sempre, assemelhando-se a um imenso "trailer", com cenas de apenas dez ou quinze segundos sobrepostas umas às outras que não possibilitam envolvimento e coerência em mais uma adaptação do romance polémico de Eça de Queiroz. Nos últimos tempos, o cinema português parece adormecido - este ano, além do recente Os Diários da Bósnia ou Lisboetas, que curiosamente são dois documentários, nada de relevante chegou às salas -, e são raras as excepções que nos fazem pensar num possível equilíbrio entre motivações artísticas e boas bilheteiras: casos singulares de Alice, O Delfim, Os Imortais ou Noite Escura. O que falta? Muita coisa... investimento, argumentos e capacidade para responder aos apelos do público. Faltam filmes mediáticos, que revelem pujança sem cair no novelo telenovelesco - neste ponto, sim, já conseguimos dar o salto... Por isso, O Crime do Padre Amaro, apesar das imensas fragilidades, merece aplauso. Um breve e curto aplauso. Enquanto nós, espectadores atentos, ficamos à espera de melhores dias...

Pecado do Dia: Luxúria

Se há aspecto que O Crime do Padre Amaro parece representar uma evolução é na forma como
são filmadas as cenas de sexo entre um Amaro Vieira (Jorge Currula) pouco verosímil e uma Amélia (Soraia Chaves) lasciva e lacónica. Pode-se especular sobre um primeiro passo para um cinema erótico nacional, mas este filme de Carlos Coelho da Silva não é mais do que um imenso "trailer" moderno e cosmopolita que manipula de forma grosseira o património literário de Eça de Queiroz e pretende não mais do que limar a sua história à imagem de Zona J, de Lionel Vieira. O principal "pecado" deste filme é ter sido concebido como uma mini-série para a SIC, pelo que a versão de 100 minutos é uma imensa salada de ideias, com momentos cénicos de curtíssima duração, maus "raccords" e espessura dramática quase nula. Apesar de apostar num vasto número de actores portugueses - todos parecem querer "fazer uma perninha", desde Rogério Samora a João Lagarto, Ruy de Carvalho, Ana Bustorff ou Maria Emília Correia -, todos os papéis são caricaturas assustadoramente básicas e nem um colossal Nicolau Breyner consegue escapar do desaire. O Crime do Padre Amaro é televisão passada para o grande ecrã, o que pode não ser totalmente negativo se recordarmos o pioneiro Adão e Eva. Neste caso, além de distorcer qualquer ponto de vista mais sério sobre fé, o filme quer ser levado a sério, mas ao fim de cinco minutos já perdeu o rumo. Para nunca mais se encontrar... *

25 de julho de 2006

Um simulacro de Kurt Cobain

O cinema King repescou uma velha fórmula do cinema Ávila para os meses mornos de Verão em matéria de estreias cinematográficas relevantes: reexibe as obras mais marcantes do último ano, em matéria de aceitação mais crítica do que mediática, que resulta numa segunda oportunidade para ir ver na sala escura obras que escaparam à vasta oferta e que estiveram em exibição em poucos espaços por serem, na sua maioria, filmes artísticos, de autor, com uma sólida estrutura de composição. Ao longo do dia de hoje, nos horários das 14.00, 16.30, 19.00 e 21.30, a sala 3 recorda (mesmo depois de já se ter estreado em DVD), a visão pessoal de Gus Van Sant sobre o mito (e a sua desagregação) de Kurt Cobain, apesar da alusão ser dissimulada - a começar logo por um outro nome do protagonista e por colocar em primeiro plano um estilo moroso e decadente -, a fim de melhor ilustrar a queda de um mito, neste caso o mais importantes vulto da música "grunge" da década de 90. Last Days - Os Últimos Dias é, por isso, um objecto incómodo, mais próximo do capricho técnico de Gus Van Sant, que parece não se conseguir desprender do estilo "à la Dogma" de Von Trier (apesar de menos pretensioso e mais niilista), do que um documento com alguma vontade em desconstruir as repercussões da fama incómoda. Apesar disso, merece ser visto, porque ajuda a traçar limites sobre até que ponto uma obra é legítima enquanto objecto de cinema. Na verdade, Last Days - Os Últimos Dias parece situar-se num limbo artístico, entre culto e lixo. E estes extremos por vezes tocam-se...

Pecado do Dia: Avareza

É de muita contenção de meios que se faz esta obra de Van Sant, mais por convicção e desejo de criar um estilo mais intimista, do que por necessidade. Van Sant filma uma obra para o seu umbigo e deita por terra qualquer boa ideia cinéfila. Prefere levar o espectador a deambular com o protagonista, Blake (um Michael Pitt convincente mas sem nada para dizer, porque as falas não abundam neste registo introspectivo mas vazio), que se encontra à beira da decomposição. Os seus últimos dias são apresentados quase sem cortes, num exercício de "cinema-verité" fora do contexto e contrariado pelo final pseudo-espiritual. Ruidoso, Last Days - Os Últimos Dias é desconfortável e só algumas sequências (como o longo plano de confronto com o vendedor de listas telefónicas ou o desabafo melódico de Blake - que é o único vestígio de música ao longo de toda a história) salvam o filme da pura inércia. Exercício de estilo? Talvez, mas chumbado pela pretensão intelectualizante que tem até um ponto negativo: questiona ao de leve o valor das duas obras anteriores de Van Sant, que se regem por um registo narrativo semelhante, ou seja, Gerry e Elephant, mas que conseguem passar uma mensagem relevante. * *

24 de julho de 2006

A ironia serve-se com pétalas de rosa

Sou mais adepto do grande ecrã e do coleccionismo de DVD do que do visionamento espontâneo de um filme num canal de televisão (também já o fui durante alguns anos... e retenho na memória uma série de óptimas descobertas ao acaso durante esse tempo). Ainda assim, o tempo passa e, muitas vezes, a programação televisiva ainda que não muito estimulante, pode trazer boas surpresas. Já senti essa necessidade, mas hoje gosto de ser eu a decidir o que ver, criar ciclos orientados pelo meu gosto ou curiosidade, procurar raridades em lojas de DVD em segunda mão e, acima de tudo, sentir o cinema como uma arte de imagens que se infiltram na retina e que, de vez em quando, é bom voltar a contrastar o efeito que temos na nossa mente com aquilo que, de facto, transparece no ecrã. Por isso, vou também estar atento, aqui no SIN CINEMA, aos destaques televisivos que me apeteça partilhar. É por isso que constato que, hoje, segunda-feira, há uma obra a passar no Lusomundo Gallery, às 23.20, que merece ser objecto de revisão. Trata-se de Beleza Americana, a obra que deu a conhecer ao mundo o dom cénico de Sam Mendes (que, desde aí, tem gorado expectativas no esforço de repetir o êxtase deste conto pouco moralista e desconstrutor de muitos mitos norte-americanos). Quem aprecia mesmo cinema, não o deixou escapar quando, no ano 2000, arrebatou cinco Óscares, incluindo o de Melhor Filme. Mas, Beleza Americana tem um dom que a maioria dos filmes nunca consegue atingir: dá vontade de ver vezes sem conta, graças à sua capacidade em se desmultiplicar em diversas linguagens, permitindo que a percepção evolua consoante o estado de vida do seu espectador. Há poucos que o conseguem (a esses chamamos "Filmes de Vida"), tais como Crepúsculo dos Deuses, Zelig, O Terceiro Homem ou La Dolce Vita. Mas esta fábula cosmopolita de Sam Mendes tem esse mérito, o de se oferecer novo a cada novo visionamento. Por isso, deve ser visto hoje à noite, quer para quem tem assinatura de um canal por cabo "premium" ou para quem tem bom gosto nas suas compras ou aluguer em cassete ou DVD.

Pecado do Dia: Inveja

Como se desconstrói um país e se expõe as suas fragilidades na sua componente mais
flagrante, não hesitando críticas incisivas e vontade em não alimentar paradoxos, descodificar hipocrisias e alertar para uma imensa crise de valores? E como extrair beleza de tudo isso? De famílias que não se encontram, pais que cobiçam amigas das filhas, homens que reprimem varões, pessoas que cedem a chantagens ou até do mero saco de plástico que oscila na rua ao sabor de uma brisa outonal... Sam Mendes tem a resposta e filma o enorme sentimento de inveja que domina os falsos moralismos urbanos com uma sensibilidade tocante e um enorme dom para misturar o realismo descoordenado do universo familiar com breves abstracções que ilustram as neuroses dos protagonistas (um Kevin Spacey sem saber para onde ir, e digno vencedor de um Óscar de Melhor Actor, e uma Anette Benning histriónica e irresistível). A fotografia é soberba, os planos artísticos também. Depois, na vontade em colocar a mão no lodo social sem luvas de pelica, sobressaem ainda as pétalas de rosa vermelhas que dão um ar metafórico e perfumado à falsa beleza americana que é, afinal, mais genuína assim que caem todas as máscaras. Afinal, quem não as usa? * * * * *

21 de julho de 2006

Sentir Hitchcock ao ar livre

Hoje é dia de Alfred Hitchcock ao ar livre na Cinemateca. Tal como amanhã e todos os fins-de-semana de Julho e Setembro. A "culpa" é do evento de Verão que o Museu do Cinema promove há três anos: as "Sessões de Esplanada", com a exibição em ecrã gigante de clássicos em ambiente descontraído... Um sentimento que nem sempre é difícil de conseguir quando é do "mestre do suspense" que se fala. Iniciado com "Os Pássaros", o ciclo "Na Esplanada com Hitchcock", com sessões sempre às 22.30, é um mosaico bastante completo da obra do realizador britânico, oscilando entre o seu período inicial, com obras inglesas a preto-e-branco onde testou fórmulas e uma hipótese de estilo para o género "thriller", e o da sumptuosidade norte-americana, já com o prestígio e os meios que lhe permitiram criar clássicos de luxo. O ambiente ao ar livre permite uma experiência diferente e um novo olhar para (re)ver uma cinematografia acessível nos ciclos "interiores" do Museu do Cinema ou no formato DVD. Agora, os serões podem ser diferentes. Porque permitem sentir na pele de novo o gosto pela claustrofobia do mestre que chegou um dia a dizer que os actores deviam ser tratados como gado. Afinal, eram meras peças para compor a sua arquitectura cinéfila que o levaram a criar um culto inédito em torno da sua figura enquanto cineasta visionário.

Pecado do Dia: Soberba

O serão de hoje inscreve-se sob o signo da dúvida e do desespero que os segredos podem gerar no convívio conjugal. Suspeita, de 1941, não é dos títulos mais óbvios da carreira de Hitchcock mas foi um dos primeiros sinais do requinte e da consciência plena do seu estilo que o mestre imprimiu por terras norte-americanas. Cada cena tem já a sua sombra (e há até o habitual "cameo"...), cada movimento de câmara revela já uma perfeita noção dos contornos da envolvência narrativa e psicológica e... depois há os efeitos de "suspense", aqueles pequenos truques cinematográficos para realçar até que ponto Lina (Joan Fontaine, vencedora do Óscar de Melhor Actriz por esta prestação dúplice) deve suspeitar das intenções do marido (o eterno galã de comportamentos ousados, Cary Grant). Suspeita deu que falar devido à obrigação de Hitchcock em alterar o final com o medo do estúdio RKO de que o público se afastasse do filme se este fosse demasiado cruel. É pena... porque é precisamente o fim o mais morno de uma história que tem ainda uma curiosa alusão a Agatha Christie. Cenas memoráveis? A caminhada de Cary Grant com um copo de leite fresco nas mãos, que sintetiza a ambiguidade que Hitchcock conseguia criar com um simples (afinal, bastante complexo...) jogo cénico. Hoje, às 22.30 no Museu do Cinema ou em DVD numa edição da Costa do Castelo. * * * *

20 de julho de 2006

NA SALA ESCURA: Catástrofe à beira da extinção?

Num documentário de rodagem da nova versão de Poseidon (para quem não sabe, o filme que chegou há poucas semanas às salas nacionais é um "remake" de um clássico de 1972 com Gene Hackman), o realizador Wolfgang Petersen afirma que gosta de filmar nas profundezas porque "a água lhe dá sorte". Não foi o caso deste épico de acção, que parece mais querer aproveitar-se da fórmula de Titanic do que propriamente apresentar ideias novas. Apesar disso, Petersen prefere o "fogo-de-artifício" dos efeitos especiais com "feeling série B" do que o sentimentalismo que James Cameron usou (e abusou) entre DiCaprio e Winslet. Aqui, o grupo de personagens que resolve lutar pela vida quando uma onda gigante vira um paquete de luxo literalmente de pernas para o ar é desconexo e pouco se sabe das suas motivações. São apenas seres desesperados e peças que Petersen usa para ultrapassar diversos desafios, à medida e ritmo de um jogo de computador. Pelo caminho, há baixas inesperadas, situações-limite e um enorme vazio dramático que tenta ser compensado pela inventividade do jogo físico. Poseidon afundou-se nas bilheteiras norte-americanas e deixa passar a ideia de que o filme-catástrofe é um género quase morto (mas que pode um dia destes voltar em força...) e que o público nem sempre gosta de se repetir - as analogias com Titanic são evidentes, além desta obra já ser, por si própria, um "remake high tech" de um filme que não precisava de uma cópia. Apesar de diversão inconsequente, Poseidon arrisca-se a contribuir para que as grandes produções (com orçamentos acima dos 100 milhões de dólares/euros) estejam em vias de extinção. É que os estúdios não aguentam "muitos afundanços" como este...

Pecado do Dia: Ira


Já se sabia que Wolfgang Petersen não era muito dado a grandes profundidades na altura de apresentar as suas personagens - basta recordar a visão maniqueísta que criou do guerreiro Aquiles no interessante épico Tróia. Apesar disso, o seu estilo lacónico e incisivo nunca tinha conhecido tamanha dimensão e logo no filme mais caro em que se envolveu... Em Poseidon, os protagonistas apresentam-se cada um em duas ou três cenas para, logo de seguida, se embrenharem numa complexa luta pela sobrevivência (entre as caricaturas contam-se Richard Dreyfuss num papel "sui generis" e Josh Lucas a tentar copiar o heroísmo malandro de Tom Cruise). E... é só isso! De resto, Hollywood aproveita para mostrar o que já consegue fazer em matéria de efeitos digitais e actores como Kurt Russell procuram restituir o prestígio que o filme nunca deixa explorar. Aqui, o barco é o protagonista e a mão de Petersen também. Apesar de desequilibrado, Poseidon é talvez o melhor exemplo de um filme-catástrofe com marcas de filme de autor (a ira, a dinâmica bruta e... a surpresa tétrica). Se é que isso é possível... * *

19 de julho de 2006

Seis minutos de Tim Burton

Antes da estreia em longas-metragens, muitos dos cineastas conceituados de hoje deram os primeiros passos em filmes de curta-duração onde introduziram estilos, criaram experiências e testaram fórmulas para mais tarde, com outros meios e maturidade, voltarem a elas e desenvolverem-nas de uma forma mais ambiciosa. Foi recentemente lançado em DVD - sem, porém, ter chegado ainda ao mercado nacional - uma compilação com 16 curtas-metragens de realizadores como Spike Lee, Alexander Payne, George Lucas e... Tim Burton. Esta pequena relíquia chamada Cinema 16 chama a atenção para os pontos de partida artísticos de gente que hoje tem o cinema mediático a seus pés. Foi por essa razão que me lembrei da obra de estreia de Tim Burton (incluído no referido DVD), de 1982, e que também pode ser encontrada nos extras de algumas edições de O Estranho Mundo de Jack - obra com a qual possui algumas similitudes, não só visuais como dramáticas. A pequena pérola Vincent relata, em apenas seis minutos, a obsessão de uma criança de sete anos pelo universo obscuro de Vincent Price e Edgar Allan Poe. Com traços autobiográficos, Vincent delicia pelo tom poético e obscuro, com apurado sentido na animação "stop motion" e revela uma profunda coerência que o tem acompanhado ao longo da sua já vasta obra pelo território movediço do cinema fantástico. Basta pensar nas motivações negras de Noiva Cadáver.

Pecado do Dia: Soberba


Apesar de, por cá, estar apenas acessível na edição especial do DVD de O Estranho Mundo de Jack - o que parece ser a combinação perfeita -, Vincent é tão ou mais importante do que a obra que ajuda a complementar em formato digital. É uma pequena delícia que revela o engenho de Tim Burton em recorrer a referências mais negras, o gosto pela fábula e por uma certa nostalgia do terror "low cost" - não é por acaso que já fez um "biopic" sobre Ed Wood. Em Vincent, o lado de menino que vive perdido em pensamentos impróprios para a idade ganha outra dimensão com os bonecos de traço apurado (alguém duvida que os cabelos em desalinho da personagem principal são uma alusão ao próprio visual de Burton?) e o belíssimo texto narrado pelo próprio Vincent Price, em que a voz dúplice se conjuga na perfeição com a bipolaridade da criança que sonha com a morte, fantasmas e torturas inesperadas. Exemplos da beleza destes versos? "Vincent Malloy is seven years old, / He's always polite and does what he's told. / For a boy his age he's considerate and nice, / But he wants to be just like Vincent Price. / He doesn't mind living with his sister, dog and cat, / Though he'd rather share a home with spiders and bats... " Já se sente o arrepio na pele? * * * * *

18 de julho de 2006

O medo vem do Oriente

Hollywood gosta de "remakes". Ou melhor, gosta de estar atenta aos novos ventos artísticos que vão surgindo um pouco por todo o mundo, em cinematografias mais modestas e que, por terem menos meios, permitem sopros de criatividade e arrojo. Quando os grandes estúdios decidem refazer um filme - que, por qualquer motivo, se auto-trascende - nem sempre a coisa bate certo. Até porque, na maioria das vezes, o desafio é mais uma forma de preencher calendário e não traz nada de novo além da capacidade de desvirtuar uma boa ideia. Ultimamente, Hollywood descobriu o cinema oriental de terror. Tanto o Japão como a China ou Coreia do Sul, são casos com longa tradição na capacidade de gerar ambientes de alta tensão claustrofóbica, jogando com mitos, espíritos e, acima de tudo, sem medo de arriscar em personagens demoníacas ou em novas situações em que a hemoglobina é a actriz principal. Dado o culto em torno destas obras que rasgam as fronteiras do seu país de origem, Hollywood percebeu o potencial mediático deste filão e, rapidamente, têm estreado nas salas de todo o mundo obras de terror (e respectivas sequelas) cujo berço vem do Oriente. Exemplos? O Aviso (partes I e II), The Grudge - A Maldição ou Águas Passadas. Quem deixou escapar os originais pode sentir-se surpreendido pela inventividade, mas a cópia, até ao momento, muito raramente ultrapassou o original. Para os mais curiosos no género, aconselha-se uma pesquisa mais atenta nos clubes de vídeo, em festivais alternativos - como o nosso Fantasporto - ou nas lojas de DVD porque o mercado é prometedor. Há poucos dias, vi pela primeira vez Anjo ou Demónio, de Takashi Miike, e só posso dizer que a sensação de me envolver com o medo tem outro sentido mais genuíno na língua original (apesar deste filme, felizmente e apesar do sucesso, ter escapado à versão norte-americana). Quando se estreou nas salas da Suíça, houve mesmo um espectador que precisou de cuidados médicos devido ao susto. Neste género, como nos jogos de artes marciais, o cinema oriental não tem rival... Talvez por isso muitos cineastas destes países estejam a ser "caçados" pela indústria norte-americana.

Pecado do Dia: Ira

O principal segredo de Anjo ou Demónio, que deu nas vistas no Fantasporto há seis anos, é o facto de começar como um melodrama romântico, sobre a tentativa de um viúvo de refazer a sua vida afectiva, para desembocar num chocante "thriller" carnal, com direito a torturas rebuscadas (corte de membros do corpo), traumas de infância e longas alucinações. A capacidade para passar de um género antagónico para o outro, permite o choque e o embaraço do espectador, perdido num jogo estranho entre a realidade e o confronto psicológico do protagonista. Depois há a personagem feminina, Asami Yamasaki (Eihi Shiina), que vai a um "casting" para participar num filme da produtora do protagonista e, apesar de não ficar no papel de um filme que nunca chega a existir, se envolve carnalmente com o víuvo carente. Mas as coisas não são o que parecem (poderia ser de outra forma?) e Anjo ou Demónio promete muitas surpresas, como o arrepiante desabafo "mais fundo, mais fundo", da personagem feminina. Não é o que estão a pensar... É muito mais perverso do que isso... Aceitam este jogo de ira? * * * *

17 de julho de 2006

Onde pára o romantismo em Hollywood?

Já há algum tempo que se tem dificuldade em encontrar nas salas de cinema uma comédia romântica vinda de um grande estúdio, capaz de fugir às fórmulas episódicas das habituais "sitcoms" televisivas ou que fuja ao humor escatológico introduzido (com êxito) por Doidos Por Mary. Será que já não faz sentido o romantismo cinematográfico no século XXI? Ou será que a crise de valores cada vez dá menos importância à envolvência emocional? O já referido Eu e Tu e Todos os Que Conhecemos escapa a esta crise, mas joga noutra "liga", a do filme experimental, esse sim de boa saúde... Confesso que hesito sempre em ir ao cinema, gastar os meus cinco euros para ver os actores do costume - Ben Stiller, Meg Ryan, Hugh Grant ou Sandra Bullock - às avessas com assuntos do coração (para isso, ligo um dos quatro canais ao sábado ou domingo à tarde... e de graça). Mas, como tenho uma irmã na idade "Morangos com Açúcar", lá a levei a ver a última comédia da moda: Separados de Fresco, com Vince Vaughn e uma Jennifer Aniston a querer provar que há vida para lá de Brad Pitt. Resultado: apesar da boa prestação de Vaughn e de uma boa premissa (começar um filme quando os outros costumam terminar, ou seja, desmistificando o "viveram felizes para sempre"), aumentou as minhas suspeitas de que o romantismo é demasiado esquematizado em Hollywood e que as relações de hoje no grande ecrã já pouco trazem algo de estimulante. Há sempre o DVD de Um Amor Inevitável lá por casa para matar saudades...

Pecado do Dia: Preguiça

É esse o defeito de Separados de Fresco e da grande maioria das comédias românticas cosmopolitas: uma enorme carência de ideias. Apesar do "à vontade" de Vince Vaughn neste tipo de papéis e de uma ou outra cena hilariante (a sequência do jantar de família cumpre muito bem os seus objectivos), este filme de Peyton Reed, que foi um dos êxitos-surpresa do Verão nas bilheteiras norte-americanas, vê-se com a facilidade de quem vê um episódio de "Friends", mas sai-se da sala com a sensação de que se poderia ter ido muito mais longe... Afinal, numa época de tantas mudanças e transformações, nem sempre é fácil entender a complexidade das relações afectivas. Mas aligeirá-las até ao limite será a melhor opção? * *

15 de julho de 2006

NA SALA ESCURA: O banal é cinematográfico

O filme entrou de mansinho nas salas nacionais. Antes, passara pelo IndieLisboa com bons resultados. Mas houve muita gente que o foi ver por acaso, por ouvir dizer que era diferente ou pelo título apelativo que define a componente interrogadora e comunicativa que domina a história. Eu e Tu e Todos os Que Conhecemos é uma interessante obra de estreia da artista plástica Miranda July, que também interpreta o papel principal. Mas do que fala esta pequena obra norte-americana que continua a reflectir o sopro inventivo do cinema "indie" e que, como nunca anteriormente, tem dado passos de gigante? Fala de pequenos nadas, da vontade de comunicar, dos percalços na envolvência interpessoal e articula tudo com uma óptima condução narrativa... No fundo, é o moderno filme independente por excelência, dado que possui a frescura técnica e a vontade em criar um realismo onírico para personagens impregnadas de idiossincrasias. O seu êxito minoritário é sinal de que ainda há gente que gosta de se desdobrar em experiências cinéfilas, procurando no grande ecrã uma surpresa ou um desafio às convicções enquanto espectador (e este filme é carregado de "piscadelas de olho", convidando a quem quiser a embrenhar-se na intimidade de um casal que tarda em encontrar um ponto de sintonia num universo desconexo e tendencialmente depressivo). E é também salutar a sua presença nas salas de cinema nacionais. Porque até nos últimos tempos nem nos podemos queixar de estreias de pequenos filmes, daqueles que tratam as banalidades do dia-a-dia como diamante dramático em bruto para uma longa-metragem. Exemplos? A Lula e a Baleia, Chupa no Dedo ou Os Amigos de Dean.

Pecado do Dia: Preguiça

Miranda July não tem pressa em apresentar as suas personagens ou fazer crer ao espectador onde pretende ir em matéria dramática. É até bastante "preguiçosa" neste ponto e... ainda bem. Mais centrada nos pormenores estéticos e introspectivos das personagens, é quase por acaso que entendemos que a relação dos dois filhos de Richard (John Hawkes) com o pai já teve melhores dias ou que Christine (Miranda July) escolheu a profissão de "taxista de idosos" porque não gosta de estar sozinha. Mas sabemos o essencial porque em Eu e Tu e Todos os Que Conhecemos o que se pretende é dar pequenos episódios da realidade de cada pessoa, com uma apreensão mais realista do que cinematográfica da história. Leve e ambiciosa, a vida desta gente sem coordenadas impõe-se à custa de momentos, como aquele maravilhoso teste à vida e morte de um peixe que se encontra num saco de plástico e em cima de um carro em movimento... Miranda July sabe o que quer e nunca envereda pelos percursos mais fáceis. Na tela, parece preferir os caminhos mais sinuosos e sumarentos do que os pré-estabelecidos. Vencedor da Câmara de Ouro do Festival de Cannes, Eu e Tu e Todos os Que Conhecemos é a sugestão perfeita para as noites quentes destes dias. Não só porque refresca o espírito, mas também porque ajuda a perceber que, no meio do caos do dia-a-dia, ainda há muito por descobrir e é sempre possível criar uma ordem alternativa... * * * *

14 de julho de 2006

Uma alternativa à "geração pixel"

Quando se encontram em exibição simultânea nas salas de cinema duas grandes produções de animação digital, ou seja, produtos de luxo das concorrentes Pixar (com Carros) e Dreamworks (com Pular a Cerca), apetece lembrar que, apesar de estarem em vias de extinção, os desenhos a lápis e papel, que ganham movimento graças à sobreposição compulsiva, ainda dão alguns frutos. São cada vez mais pequenos objectos artísticos, que representam pequenas indústrias sem os meios técnicos dos grandes estúdios americanos. Mas, aos poucos, a animação tradicional parece querer constituir uma alternativa sólida ao "pixel mainstream", criando narrativas simples que deixam espaço para que figuras de traço expressivo deslizem contra os padrões, inclusivamente daqueles que vigoravam nos filmes mais comerciais, quando o digital ainda se encontrava numa fase de desenvolvimento precária. Não se pretende aqui fazer a apologia de que o "pixel" corrompeu a animação - até porque renovou e mediatizou um estilo clássico, abrindo portas para uma nova dimensão criativa, de que são bons exemplos Shrek, Monstros e Companhia, Uma Vida de Insecto ou À Procura de Nemo. Mas apenas não negligenciar novas propostas (outro dos casos recentes que deu que falar foi O Castelo Andante), novas concepções artísticas que têm surgido aqui e ali... Belleville Rendez-Vous estreou-se há três anos e (re)colocou a França no panorama da animação de prestígio. E faz todo o sentido pelos seus traços marcados, roçando o classicismo das suas imagens amareladas com o prodígio narrativo (e onírico) dos tempos modernos.

Pecado do Dia: Gula

É um doce. De ver e chorar por mais... Belleville Rendez-Vous, de Sylvain Chomet, trouxe em 2003 uma nova dinâmica (e tom revivalista) para o universo da animação, com as deambulações da Mme. Souza (uma simpática portuguesa de buço, manca e minúscula de tamanho) na procura pelo neto ciclista, vítima de uma deliciosa conspiração. Onírica e desconexa, a história deste filme, que chegou a ser nomeado para o Óscar de Melhor Longa-Metragem de Animação, distorceu de tal forma as suas figuras (atente-se na visão da América a meio do filme) que só lhes confere mais personalidade. Nesta jornada sem regras muito realistas, a criatividade é ainda insuflada por uma banda sonora memorável, a cargo de Benoît Charest, que lembra canções de cabaré, com a energia necessária para suportarem toda a acção (muito parca em diálogo). Em suma, todos os condimentos necessários, para uma dose de animação que promete deixar qualquer espectador rejuvenescido. * * * *

13 de julho de 2006

O "swing" de Sinatra a preto e branco

Há quantos anos morreu Frank Sinatra? Segundo o calendário há oito, apesar de continuar a marcar presença constante na minha aparelhagem, seja a cantar em tom gingão o tema "Jeepers Creepers" ou numa pose mais eloquente (e como ele sabia fazer essa pose!) com "(I've Got You) Under My Skin". Sinatra era o corpo e a voz de um "swing" cristalizado no tempo, com reminiscências às "big bands" de Count Basie (com quem chegou inclusivamente a trabalhar em diversas ocasiões). Soube utilizar a sua imagem como poucos, até no grande ecrã (chegou a ganhar uma estatueta dourada como Melhor Actor Secundário em Até à Eternidade), e apesar de nem sempre conseguir fugir ao reconhecimento do cantor que quer afirmar-se como actor, conseguiu um punhado de boas interpretações. A melhor revi-a ontem, num clássico de Otto Preminger, O Homem do Braço de Ouro, em que Sinatra não hesitou em testar o seu estatuto transcendente de estrela (apesar de uma vida marcada por vícios e suspeitas de ligação à mafia), interpretando o primeiro protagonista do cinema num papel assumido de toxicodependente. O resultado? Um conto negro de dimensão existencialista e apurado sentido de decadência emocional, em que Sinatra revela contenção e boa capacidade de gestão dramática. Quem diria que, além da sumptuosidade dos palcos, o cantor sabia evidenciar-se nos enquadramentos intimistas de uma câmara narcisista, como a de Preminger?

Pecado do Dia: Soberba

Defensor do pragmatismo em detrimento dos artifícios narrativos, Otto Preminger construiu a sua carreira com obras lineares mas polvilhadas com marcas de autor por todo o lado. Preminger tinha orgulho do seu estilo e da sua obsessão por contar uma história através do movimento e das expressões dos seus actores. O Homem do Braço de Ouro é um exercício de estilo fabuloso, com uma excelente fotografia, uso expressivo da banda sonora e muitos traços de "film noir". Mas é um conto profundamente triste, de um homem, Frankie (Sinatra) a tentar lutar contra o vício. A seu lado, está uma esplêndida Kim Novak (na pele de Molly) e cada plano de conjunto entre este par é de antologia. De 1955, este filme foi nomeado para três Óscares (incluindo o de Melhor Actor). Cena memorável: o momento em que Molly pede lume a Frankie e, com a luz da chama de um fósforo, apercebe-se que o amado voltou a cair no vício. * * * * *

12 de julho de 2006

Distorcer o cinema: um pecado nem sempre errado

Para concluir este pequeno ciclo sobre filmes que fazem alusão ao título deste novo espaço de imagens, a escolha é óbvia. Apesar de outras opções como o "naïf" clássico de O Pecado Mora ao Lado ou o medíocre encontro imediato de António Banderas e Angelina Jolie em Pecado Original, centro-me em Sin City - A Cidade do Pecado. Porquê? Porque me permite mostrar que as novas tendências do cinema abrem horizontes, rasgam convenções e criam possibilidades inéditas para uma arte que, qualquer dia, será de difícil caracterização. Mas será mesmo assim? Na forma como combina o universo visual da banda desenhada "dark" com as técnicas dramáticas de um filme, Sin City distorceu mais uma vez a noção clássica de cinema, dividindo opiniões. A questão não é nova: basta recordar o momento em que o artista Andy Warhol dirigiu Empire, ou seja a experiência de filmar, sempre com o mesmo ângulo e sem qualquer corte, o edifício mais carismático de Nova Iorque desde as três da manhã de um dia até à madrugada do seguinte; ou quando a Disney decidiu dar novos contornos à ficção-científica juvenil com Tron; ou quando Lars von Trier introduziu a sua filmagem desconexa e de câmara ao ombro (o movimento "Dogma") em Ondas de Paixão; ou quando Gaspar Noé inverteu a linearidade narrativa e explorou os limites da violência (e, consequentemente, aquilo que moralmente deve ser ou não visto) em Irreversível. Terá valido a pena distorcer o cinema? Até que ponto é aceitável o acto de o manipular? Há casos e casos, embora aqueles que permaneçam sejam os que ajudam a traçar fronteiras e perceber que, logicamente, nem tudo é permitido num filme até porque, a dado momento, deixa-se de fazer cinema e passa-se para o campo dos objectos alienígenas. Quem decide o que é aceitável ou não? Obviamente o público e... o tempo! Pecar com as convenções e fazer algo de novo não deixa de ser salutar. Só assim se avança para novos territórios. Querem um exemplo? O que seria da animação de hoje em termos de potencial gráfico e narrativo se a Pixar não arriscasse em lançar, em 1995, uma longa-metragem de animação inteiramente gravada com técnicas digitais? O resto é Toy Story...

Pecado do Dia: Avareza.

Não existe uma pontinha de modéstia neste neoculto de Robert Rodríguez (até aqui
habituado ao frenesi de filmes com algumas boas ideias, mas que derrapam num excesso de movimento para poucas motivações relevantes). E ainda bem. Com Sin City - Cidade do Pecado, eleva a banda-desenhada a um outro nível e, com o desejo de estilizar ao máximo as suas imagens, o cinema vai por arrasto para um campo que, visualmente, é muito aliciante. A forma como as três histórias, que seguem à risca a estrutura delineada pelos livros de Frank Miller, se encadeiam é também de realçar pelo engenho, assim como o regresso de Mickey Rourke à grande forma, na pele do herói "pecador" Marv. Neste conto sem verdadeiros heróis mas com um punhado de personagens à deriva no "pântano da corrupção", há ainda um "bombom": a cena rodada por Quentin Tarantino (amigo de longa data de Rodríguez) no carro em que circulam as personagens de Cliven Owen e Benicio "Morto-vivo" Del Toro. É preciso mais para se tornar um clássico deste novo século? Hollywood costuma responder facilmente a esta questão: sim, como uma sequela que chega já em 2007. * * * * *

11 de julho de 2006

A arte de pecar pelo olhar

Confesso: também tenho o pecado do cinema. Não há volta a dar... Sempre que uma nova obra se impõe ao olhar deixo-me submergir no universo proposto e controlado da tela (ou, cada vez mais, do ecrã de televisão) e deixo-me coordenar por um espaço/tempo virtual que, apesar de mero simulacro, durante duas horas é mais realista que muitas pessoas que se cruzam no meu caminho. Nesta arte do fascínio, mas também do refúgio, as imagens também se podem traduzir por palavras e, ao fim de alguma relutância, decidi embrenhar-me na blogosfera, sem pretensões de nada além de partilhar (ou não) o que penso sobre o que vejo - mesmo que ninguém leia, posso sempre cultivar o meu umbigo... Quando se defende "o cinema como pecado", nada melhor do que iniciar este espaço de sugestões "pecaminosas" com o filme que aglutina as sete maneiras mortais de sair da linha. David Fincher já tinha dado algumas cartas em "Alien 3 - A Desforra", mas pouco se conseguiu desprender dos filmes anteriores da saga, até que aceita dirigir um "thriller" negro nas motivações e, de tal forma elaborado, que só com muito engenho pôde ser levado a bom porto. "Se7en - Sete Pecados Mortais" é a escolha perfeita para sublinhar "a 7ª arte como oitavo pecado capital".

Pecado do Dia: Todos.

De 1995, "Se7en" reinventou um género quando já tudo parecia inventado. A fotografia baça, os personagens à deriva, o confronto de métodos, a morte manipulada até à última exaustão e um "twist" de causar pele de galinha. Quase sem se dar por isso, tornou o "film noir" mais negro do que alguma vez tinha sido e Brad Pitt revelou-se um actor que quer ser levado a sério. Cada pecado mortal é dissecado da forma mais incisiva, para culminar no confronto com um dos vilões mais famosos da História do Cinema. Aqui, cada imagem permanece na retina, como aquele tormento que fica impregnado no inconsciente. * * * * *