19 de abril de 2008

NA SALA ESCURA: A solidão é reconfortante







AVAREZA.
«Nunca quis fazer filmes difíceis de propósito. Fazem-se os filmes que se conseguem fazer.» ALAIN RESNAIS

Há quem veja um filme por ter o actor preferido, há quem escolha a próxima obra a justificar uma ida ao cinema pelo género narrativo, há quem não pense nisso de todo e deixe-se seduzir por um trailer, uma crítica de jornal ou até seguir as opiniões do grupo de amigos com quem se vai para a sala escura. Gosto de escolher os filmes em função do realizador.

Não é, certamente, um critério permanente de escolha, mas ajuda a efectuar a selecção e são, sem dúvida, as vezes em que mais sinto prazer ao ver um filme: reconhecer as marcas do estilo, perceber as influências, testemunhar a evolução, criticar más opções.

Do veterano Alain Resnais conheço pouco, mas admiro a longevidade e o facto de ser um dos poucos cineastas clássicos que resistem. Não chega à idade do nosso Manoel de Oliveira, mas anda lá perto: com 85 anos, começou a filmar ainda na década de 30!

Pois bem, com CORAÇÕES, Alain Resnais prova que ainda está vivo e que o seu olhar ainda é de mestre, daqueles que estuda cada plano na cabeça, tem cuidados nos raccords e não cede a facilitismos
.

É tudo pensado ao milímetro em nome de uma singularidade, de um estilo que já não se vê. Sim, é verdade que a solidão deste naipe de simpáticas personagens tem algo de já passado, são motivadas por sentimentos quase telenovelescos e, por vezes, revelam uma inocência de carácter (mesmo quando pisam o risco) que já não se padece com as colisões de valores de hoje. Sim, Alain Resnais é um realizador "à antiga" mas que resiste na forma como expõe a sua forma de filmar.

Ao adaptar a peça do dramaturgo inglês Alan Ayckbourne, o cineasta procura reflectir sobre a solidão, mas numa perspectiva de intimismo cosy. Para tal, recorre aos actores com quem gosta de trabalhar - casos de Pierre Arditi e Sabine Azéma - e cria um jogo de laços afectivos simples, escorreito e muito sensível. O

destaque vai para a personagem de Azéma, a ambígua Charlotte, que é uma mulher dúplice, tão capaz de se afirmar pela fé religiosa como de emprestar cassetes de vídeo contendo gravações caseiras demasiado arrojadas para o seu colega de trabalho testemunhar. As seis pessoas que vivem rodeadas de si mesmas são também um contrabalanço perante a ideia de que Paris é a «Cidade do Amor». Na verdade, todos procuram-no neste filme. Mas a verdadeira relação duradoura é com a solidão!


CORAÇÕES
De Alain Resnais (2006)
* * * *
A neve está omnipresente: além de servir como elemento de corte entre as cenas é também uma armadilha porque este não é um filme romântico. É antes sobre vidas "geladas" pela solidão e da qual não vão conseguir desprender-se. Alain Resnais cria um importante melodrama-mosaico, com histórias que se interligam na emoção, de uma autenticidade desarmante. Além de muito bem filmado, este filme é antes de mais um retrato humanista. É de pessoas que fala e das suas resistências, das suas duplicidades. Pelo retrato sensível, a obra é irrepreensível. E isso elimina mesmo as pequenas resistências na forma algo conservadora de filmar. Apesar do clima frio, a obra aquece-nos com os seus afectos. Mas isso não quer dizer com finais felizes...

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