6 de janeiro de 2007

NA SALA ESCURA : Um filme estilhaçado

... Uma das forças motrizes do cinema é a capacidade de contar várias histórias em simultâneo, permitindo que o olhar do espectador se desprenda de uma temporalidade e de um espaço determinado. Essa oscilação temática permite, quase sempre, enriquecer a experiência cinéfila e o filme-mosaico é, cada vez mais, entendido como experiência de prestígio. Embora nem sempre funcione, quem consegue mostrar diversas personagens e histórias apresentadas enquanto fragmentos que, mais tarde, certamente encontrarão um fio condutor, conhece todo o potencial cinematográfico enquanto meio de mensagens diversas. Ainda recentemente faleceu um dos mais sólidos cineastas deste modelo narrativo - e pouco usado, no cinema comercial de hoje, ávido de experiências simplistas e automatizadas -, capaz de construir teias narrativas com elencos numerosos: sim, Robert Altman. Mas, depois do reconhecimento feito nessa altura, o tema do filme-mosaico volta a estar na ordem do dia, motivado pela estreia do último filme do mexicano Alejandro González Iñarritú, BABEL. Coqueluche na próxima temporada de prémios (é já um dos favoritos aos Óscares, depois de COLISÃO, outro esforço menos intenso neste género, ter levado inesperadamente o galardão de Melhor Filme para casa no ano passado), este conto sofrido e fragmentado em quatro pequenas histórias que, desde o início, aparentam estar interligadas, é só a mais recente obra apresentada como "puzzle" a ser descodificada pelo espectador, que Iñarritú vem agora propor. Quem conhece de perto a sua obra anterior, percebe que este jovem mexicano gosta de filtrar a experiência complexa e inter-relacional do folhetim com a tradição nobre do cinema sentimental sempre em mente: tanto AMOR CÃO como 21 GRAMAS são exemplares na forma como partiram de um acontecimento extremo - um acidente de automóvel - para questionarem a força humana e a sua resistência perante o absurdo das circunstâncias. Agora, com BABEL, Iñarritú decide encerrar uma espécie de trilogia das emoções exacerbadas e aperfeiçoa ainda mais o gosto pelas narrativas fragmentadas. Contudo, desta vez, decidiu universalizar o espaço-tempo da sua história, construindo uma hipótese de tese emocional sobre os dilemas e as fronteiras comunicacionais de todo o mundo. O resultado - que tem o seu cerne num novo acontecimento extremo, um tiroteio em direcção a um autocarro - volta a ser profundamente tocante e revelador do dom de Iñarritú para dissertar sobre a dificuldade em nos relacionarmos com o outro. Este é o tempo do cinema-emoção em estado puro, abrilhantado por desempenhos tocantes e uma realização soberba. Um motivo mais do que suficiente para repartirmos o olhar por outras experiências sólidas no genéro do filme que se constrói a partir de fragmentos dispersos... e que se encontra sempre, dando todo o sentido devido ao conceito de sinergia.



BABEL * * * * *
Pecado: Ira
Radiografia possível para os tempos globalizados de hoje, onde o acidente pode ter consequências tétricas, esta obra grandiosa de Alejandro González Iñarritú é ambiciosa: partindo do modelo de narrativas desintegradas (que o realizador experimentara já em 21 GRAMAS ou AMOR CÃO), destrói fronteiras e apresenta um punhado de personagens de diferentes raízes a lutarem contra as armadilhas do destino. Crú e muito emocional, é um belo espectro de experiências violentas mas, acima de tudo, muito humanas. Os Óscares já se vêem ao longe...

COLISÃO * *
Pecado:
Preguiça
Vencedor-surpresa dos Óscares em 2005, este mosaico urbano de Paul Haggis (com créditos firmados na escrita), COLISÃO parece copiar os modelos do labirinto narrativo de Altman e Thomas Anderson, reflectindo superficialmente sobre as dificuldades de imigração nos Estados Unidos. Ao pretender retratar o "melting pot", perde-se na lamechice desnecessária e não consegue a força pretendida em algumas das histórias, como a do pai cuja filha é salva de um tiro por um suposto milagre. Resta um elenco esforçado, de onde se destaca Matt Dillon ou Sandra Bullock.


YI YI * * * *
Pecado: Avareza

Exemplar modelo de contenção de meios, este espectro familiar do dia-a-dia em Taiwan foi uma das surpresas subtis de 2000. Realizado pelo chinês Edward Yang, conta-nos com particular subtileza e ritmo dengoso, o mundo oriental pelo olhar de uma criança. Pelo caminho, há assuntos sérios como uma tentativa de suicídio ou as longas conversas com a avó do protagonista, que nos são mostrados com particular sensibilidade por uma câmara que evita os grandes planos e prefere dar um tom documental às emoções que vão surgindo no ecrã.


GOSFORD PARK * * *
Pecado:
Inveja
Não é a obra mais memorável de Altman, mas foi das últimas que o cineasta dos mosaicos narrativos conseguiu impor como exemplo do seu estilo fragmentado. Em jeito de farsa dos modelos literários de Agatha Christie, GOSFORD PARK reúne um naipe interessante de personagens numa mansão e apresenta-nos um crime. Quem terá cometido o delito? O desenlace não é o mais importante, mas a exposição dos "telhados de vidro" de empregados e patrões numa outra sátira ao classicismo britânico. Elegante e frio, o filme convence enquanto jogo de invejas mútuas.


MAGNÓLIA * * * * *
Pecado: Soberba
Quando Robert Altman estava a dirigir, já com graves problemas de saúde, aquele que viria a ser o seu derradeiro filme, BASTIDORES DA RÁDIO, pediu a Paul Thomas Anderson para vigiar toda a obra, caso por motivos de doença grave não a pudesse terminar. Percebe-se porquê: Anderson foi exemplar na construção deste mosaico de personagens à deriva, em que temos Tom Cruise como guru sexual, um jovem prodígio bloqueado ou uma Julianne Moore à beira do desespero com a doença do marido. É a experiência mais intensa dos últimos anos no campo do drama estilhaçado e tem ainda aquela memorável banda sonora de Aimee Mann e a célebre chuva de sapos...


AMARCORD * * * *
Pecado: Luxúria
O cinema europeu também é prolífico em matéria de mosaicos narrativos, que o diga Federico Fellini com esta sátira sobre o rumo de uma comunidade rural durante o regime de Mussolini. Disperso e muito divertido, o filme tem também uma forte componente sensual, na descoberta da sexualidade pelos personagens mais infantis. O espírito é quase sempre de festa e o quotidiano da vila retratada em AMARCORD muda à medida das estações do ano. Brilhante e burlesco.


PLAYTIME * * * * *
Pecado:
Gula
Jacques Tati é exímino na construção de acções dispersas onde o único elemento aglutinador é a sua "persona" Sr. Hullot. Em PLAYTIME, o encanto e questionamento da vida moderna é apresentado segundo um sem número de situações equivocadas que transmitem muito bem o pulsar dos tempos modernos. Recorde-se a utilização brilhante de Tati nos efeitos sonoros e a célebre sequência no restaurante. As delícias desta crónica, apesar de tudo desencantada, inscrevem na perfeição o modo autoral como Tati é também uma referência na construção de maravilhosos mosaicos.

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