29 de janeiro de 2007

CINEFILIA: Os desafios do guerreiro de Hollywood

... Já se estreou há algumas semanas (mesmo antes do Natal) e eu fui vê-lo logo na sessão de apresentação para imprensa. Ainda assim, a última realização de Mel Gibson não é um filme fácil de digerir e nem se percebe bem porquê: a reconstituição da civilização maia tem todos os meios a seu favor, mas a visão sangrenta que Mel Gibson insiste em desenvolver (numa dimensão diferente de A PAIXÃO DE CRISTO mas igualmente excessiva) já cansa e acaba por perurbar em grande parte aquilo que se adivinhava como um óptimo épico de aventuras (e onde a aura sacra envolve por completo a missão do protagonista de regressar à família). APOCALYPTO é, antes de mais, um bom pretexto para recordar a carreira de um dos nomes fortes da indústria de Hollywood (que foi dos primeiros a cobrar 20 milhões de dólares por filme), nunca excelente actor, mas um herói de acção com algumas escolhas ousadas na carreira. Na verdade, Mel Gibson é a típica estrela em ascensão, que experimentou a realização na altura certa e tem o mérito de elevar as suas convicções, mesmo contra-corrente. Para a história fica mesmo A PAIXÃO DE CRISTO, uma visão puramente seguidista das suas orientações teológicas (como se sabe, é um católico ortodoxo, que chegou a visitar a "nossa" Irmã Lúcia) que, contra o previsto, se tornou num dos projectos independentes mais rentáveis de todos os tempos. Com APOCALYPTO, Mel Gibson decidiu voltar a arriscar, mas os resultados são diferentes: se, por um lado, o filme foi corrompido pelo seu desaforo contra os judeus depois de ter sido apanhado embriagado ao volante, por outro a obra é violentamente gratuita e não quer esboçar um relato denso sobre uma das mais interessantes civilizações medievais. Fica-se pela caricatura, pela apropriação simbólica de uma mensagem emotiva sobre o poder sociológico das relações humanas e um pretensioso grito de revolta contra a coerção. Mesmo assim, sente-se o músculo da sua câmara e Mel Gibson volta a mostrar que é melhor a dirigir do que a interpretar (o filme não saiu assim tão mal nas bilheteiras, tendo rendido 50 milhões de dólares só nos Estados Unidos). Algo que a sua carreira recheada de "blockbusters" o desmente. Mas não são assim tantos os filmes do seu currículo que ficaram na memória. Para a posteridade, aqui ficam sete pontos altos. Os "pontos baixos" foram mais...



APOCALYPTO * * *
Pecado do Dia: Preguiça
Uma aldeia invade outra, durante o apogeu sul-americano da civilização maia, para exercer poderosos rituais de violência. Nada que demova Jaguar Paw (Rudy Youngblood) de tentar reencontrar a família. Mel Gibson demonstra pulso forte na direcção, mas a aposta no épico de aventuras retira inventividade a uma boa reconstituição épica. E já enjoa o excesso de hemoglobina que Mel Gibson gosta de filmar...

A PAIXÃO DE CRISTO * *
Pecado do Dia: Ira
A reconstituição das últimas horas da vida de Cristo (Jim Caviezel) é um exercício extremo, a resvalar para o registo "gore", onde Gibson aproveita para explorar ao máximo a sua visão teológica. Vale enquanto projecto de uma vida (que venceu, quando todos pensavam o contrário), mas cinematograficamente é vazio, desprovido de qualquer fundamentação ideológica. Prefere-se o banho de sangue e a tortura acéfala.

SINAIS * * * *
Pecado do Dia:
Avareza
O último grande desempenho de Gibson (e, talvez, o seu melhor de sempre...) é construído às ordens de M. Night Shyamalan em mais um conto sobrenatural, desta vez envolvendo extraterrestres, que vêm abalar a consciência de um padre descrente. A relação problemática da personagem de Gibson com a fé é outro ponto forte deste melodrama de ficção-científica, pouco denso em matéria narrativa mas exemplar enquanto experiência cinematográfica intensa. Shyamalan constrói um exercício de "suspense" do outro mundo (literalmente), com a habitual contenção.

A FUGA DAS GALINHAS * * * * *
Pecado do Dia: Gula
Nesta fábula deliciosa da dupla "stop motion" britânica Peter Lord e Nick Park, Gibson tem outro desempenho memorável mas meramente vocal. A sua personagem Rocky, um galinácio de circo que engana um grupo de galinhas que sonham voar, é antológica pela combinação certa de humor inteligente com dinamismo animado. A história tem uma analogia acertada com os campos de concentração nazis e as cenas passadas no interior da nova máquina de empadas são memoráveis. Era bom que os filmes de animação fossem sempre tão ricos como este. Até as piadas são para todos os gostos.

BRAVEHEART - O DESAFIO DO GUERREIRO
* * * * *
Pecado do Dia:
Soberba
Cinco estatuetas douradas (incluindo os Óscares de Melhor Filme e de Melhor Realizador) foram a recompensa certa para esta super-produção também protagonizada pelo próprio Gilbson. A revisitação da independência escocesa, liderada por William Wallace, é recriada com particular engenho e um ímpeto aventureiro nas doses certas. Gibson transcende-se e cria um dos últimos grandes épicos guerreiros do cinema.

HAMLET * * *
Pecado do Dia:
Luxúria
Nesta adaptação do clássico de William Shakespeare (nem sequer a melhor...), Mel Gibson aproveitou para relembrar a experiência dos palcos para dar vida ao protagonista conturbado. A relação com Ofélia (Helena Bonham-Carter) justifica o pecado seleccionado, mas há muito mais para ter em conta nesta realização branda de Franco Zefirelli. Gibson é irrepreensível como Hamlet e, em seu torno, deambulam uma série de bons actores - Glenn Close, Alan Bates, Ian Holm ou Paul Scofield. Só é pena que a química das boas interpretações não eleve ainda mais esta versão de 1990.


MAD MAX * * * *
Pecado do Dia:
Inveja
Excelente estreia de George Miller na direcção de um filme-espectáculo, é um dos últimos gritos de rebeldia da década de 70 no cinema. Esta visão futurista e niilista de uma Austrália desertificada é pouco dada a diálogos, mas Gibson veste bem a pele deste anti-herói que tem a sua missão inscrita no alcatrão da estrada. O filme original, já com quase 30 anos desde a estreia, é quase tão importante quanto BLADE RUNNER. Vale pela violência e o tom lacónico da acção.

2 comentários:

emot disse...

"hemoglobina" é a melhor palavra em todo o texto!

;)
Abraço

home design disse...

its a great blog, keep posting