21 de janeiro de 2007

CINEFILIA: Woody continua a dar cartas

... É daquelas tradições que já se nos colou à pele e da qual não abdicamos a cada novo ano: ir ao cinema ver "o último Woody", seja ele mais uma comédia tão frenética quanto igual a outras mais ou menos neuróticas numa carreira de já 46 longas-metragens, ou uma experiência mais intimista (e rara, nos últimos tempos...). Woody Allen é daqueles realizadores-fétiche, entre o público europeu, que o toma como certo a cada novo ano. O que se passa é que Woody acabou de completar sete décadas de vida e não dura sempre. Os seus filmes, sim. E, felizmente, o cineasta continua com o ímpeto de antigamente, sempre disposto a surpreender os fãs e adiando por mais uns tempos a reforma. É um dos últimos clássicos, o último dos que não se importa de estar ausente dos grandes cinemas norte-americanos e até preferiu trocar a sua Nova Iorque por uma mais fria Londres para os seus últimos trabalhos. É lá que se passa a acção de SCOOP, o seu último filme já em exibição entre nós. Desta vez, nas casas de campo dos arredores da cidade e bem no centro, nos bairros periféricos onde, ao certo, não importa. Neste novo esforço cómico, em que o realizador surge já um pouco cansado fisicamente mas mordaz como sempre, há um reencontro com Scarlett Johansson e a entrada de rompante de Hugh Jackman. A trama é rebuscada e, apesar de nem sempre funcionar por inteiro, constitui mais uma "lufada de ar fresco" no território da comédia ligeira. É aqui que, primordialmente, gosto de ver Woody movimentar-se. Com o seu gaguejar de fala, os óculos a penderem do nariz, os gestos como escape quando o diálogo não engata à primeira... Woody não é, nem nunca foi um grande actor. Mas a sua presença é sempre revigorante, pela capacidade em transformar a mais banal piada numa reflexão puramente satírica. Não convém desdenhar do passado no registo "stand up" e parece que é ao burlesco que Woody gosta de regressar. Foi também aí que se estreou no cinema - lembram-se de BANANAS, essa análise desconexa do regime de Fidel? - para depois se lançar por outros voos, mais artisticamente aliciantes, embora seja na arte de fazer rir que a sua essência pareça habitar. Por isso, em SCOOP, a sua composição de mágico de segunda ("Splendini" de seu nome) assenta-lhe como uma luva e conduz a intriga deste policial-espírita para uma dimensão quase antológica. Woody sempre reconheceu não gostar de se ver no ecrã e as suas participações têm sempre de ser cómicas devido à falta de jeito para representar... Nós não nos importamos e até fazemos mais: recordamos sete momentos (não obrigatoriamente os melhores da sua carreira) de humor numa vida que nunca temeu de todo o riso. E ficamos a aguardar o próximo filme, já em 2008, com Colin Farrell e Ewan McGregor à frente do elenco. Woody: não deixes nunca de dar cartas...

SCOOP * * *
Pecado do Dia: Inveja
Woody precisava de contracenar com a sua mais jovem musa, Scarlett Johansson, depois de a dirigir no seu mais sólido título dos últimos oito anos: MATCH POINT. Desta vez, recrutou-a para uma comédia sobrenatural, ao jeito das slapstick commedies de Howard Hawks ou Billy Wilder. Embora longe de ser brilhante, é mais um exercício competente de piadas certeiras e a repetição do seu gosto dramático para o policial. É bom ver Scarlett a fazer de Woody e este a retribuir-lhe na mesma moeda. Inofensivo e ligeiro, é brilhante nas cenas em que Woody se volta a encontrar com a morte...
MELINDA E MELINDA * * * *
Pecado do Dia: Avareza
Injustamente subvalorizado na altura em que se estreou entre nós (há dois anos), este exercício sobre a comédia e a tragédia (e as suas repercussões afectivas) é mais profundo do que aparenta. Não conta com Woody, mas com Will Ferrell a imitar-lhe (bem) os trejeitos. Trata-se de uma mesma história contada segundo pontos de vista diferentes e vence pela entrega a um humor mais melodramático e casual. Radha Mitchell desembaraça-se muito bem da duplicidade da sua personagem.

VIGARISTAS DE BAIRRO * * * *
Pecado do Dia: Gula
É um dos melhores exemplos do seu regresso aos primeiros tempos: o da comédia inconsequente, com direito a números de humor físico. Woody faz aqui par com Tracy Ullman (excelente!) na pele de dois "novos-ricos" que fazem fortuna com os biscoitos dela (daí o pecado seleccionado), depois do falhanço dele nos assaltos. As piadas sucedem-se em catadupa e funcionam muito bem, aqui com direito a termos Woody no mais piroso e embrutecido dos seus personagens. Quase com formato de "sitcom", o filme transcende-se pela ousadia humorística.
HOLLYWOOD ENDING * * *
Pecado do Dia: Preguiça
Em 2002, Woody decidiu criticar de vez, por um lado o cinema americano "mainstream", por outro a vénia desmesurada que os europeus lhe fazem (é um facto que Woody é uma estrela por cá, ao passo que na América são poucos os que decidem ver os seus filmes...). Para tal, veste a pele de um realizador que fica cego no início da rodagem do seu filme, mas que decide ir em frente com o projecto, enganando tudo e todos. Embora exageradamente desconexo, HOLLYWOOD ENDING é mais um bom motivo para recordarmos o dom de Woody para a crítica. A seu lado: uma histriónica Téa Leoni.

SLEEPER - O HERÓI DO ANO 2000 * * * *
Pecado do Dia: Soberba
Na sua terceira longa-metragem, em 1973, decidiu experimentar a ficção-científica. Projecto ambicioso esse, se fosse seguido à risca. Porém, Woody estava na sua fase mais hilariante e politicamente incorrecta, pelo que prefere brincar e bem com os modelos urbanos e sociais de um hipotético amanhã. Este primeiro encontro com Diane Keaton não poderia ser mais saboroso... Recorde-se os seus números de "mimo" ao fazer-se passar por robô e os legumes gigantes. "Non-sense" do futuro com sabor a passado saudosista!

O ABC DO AMOR * * *
Pecado do Dia: Luxúria
Irreverente ao máximo nos primeiros tempos, Woody é ainda hoje o mais irresistível espermatozóide da história do cinema. Este personagem entra só numa das partes de uma história-mosaico que pretende ser um despretensioso manual sobre a sexualidade. Porém, quando se fala de Woody nos primeiros tempos de carreira, nunca se pode levar demasiado a sério. Neste exercício desbragado e, a espaços, pouco convincente trabalho cómico, é mesmo o episódio da simulação da ejaculação masculina que mais convence. Esse e aquele em que temos Gene Wilder num quarto de hotel com uma ovelha!

BALAS SOBRE A BROADWAY * * * * *
Pecado do Dia: Ira
Deixamos o melhor para o fim, nesta selecção quase aleatória (na verdade, TODOS os filmes de Woody merecem ser vistos!) cujo único denominador comum é a versatilidade humorística do mais nova-iorquino dos realizadores. Dirigido em 1994, BALAS SOBRE A BROADWAY tem John Cusack a fazer de Woody Allen, como um argumentista falhado que tem a oportunidade de realizar a peça de teatro dos seus sonhos se se aliar a um poderoso gangster que está disposto a patrocinar o espectáculo. Mas nem tudo são facilidades, e o jovem argumentista tem que aturar uma irresistível (e irritante) Jennifer Tily. Nesta combinação de sátira teatral com filme de gangsters, Woody cria uma brilhante reconversão dos códigos da comédia clássica e até mais violenta com as suas personagens do que é habitual. Tudo em nome da coerência de uma comédia sobre o valor da arte, com desempenhos memoráveis de Chazz Palminteri, Jim Broadbent e uma engenhosa Dianne Wiest (com o seu célebre "Don't Speak"), vencedora do Óscar de Melhor Actriz Secundária.

2 comentários:

emot disse...

Yo, estou de acordo contigo em quase todos - há alguns que ainda não vi. Esse título é a jogar com as cartas Tarot que são importantes no filme? Se é, está porreiro, senão, está mais ou menos bem... ;)
Abraço,
JT

Carlos M. Reis disse...

Que excelente artigo. Adorei mesmo este resumo Alleniano (ou Woodyalanesco :P) e fiquei com vontade de fazer o mesmo brevemente.

Cumprimentos.