26 de dezembro de 2008

NA SALA ESCURA: A obsessão de olhar






INVEJA.
«A única coisa mais terrível do que a cegueira é ser a única pessoa que consegue ver.» MULHER DO MÉDICO (Julianne Moore)

Neste final de ano cinematográfico houve duas belas (e muito tristes) histórias com o denominador comum que é a força do olhar. Algo que permite pensar que é esse mesmo sentido que possibilita ao cinema ser a força que é. É pelo olhar que tudo se constrói, que se desfazem dúvidas, até porque, e apesar de poder dar azo a interpretações erróneas, é também o único meio utilizado para erradicar os últimos vestígios de dúvida.

Numa altura em que proliferam as imagens e em que o dito olhar se disciplina em função de múltiplos ecrãs, é interessante que o cinema também procure reflectir sobre as consequências de ver e ser visto.

QUATRO NOITES COM ANNA, do polaco Jerzy Skolimowski, e ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, do brasileiro Fernando Meirelles, têm ainda a mais-valia de serem obras com a sua essência longe de Hollywood - é certo que o segundo caso é uma produção norte-americana, mas à parte de alguns actores, toda a equipa técnica veio dos quatro cantos do mundo. Este é um facto que permite entender as imagens sob uma outra perspectiva e os resultados são diversos - embora igualmente enriquecedores.

No caso de QUATRO NOITES COM ANNA, a noção de olhar é proibida, ou melhor o protagonista desta desesperada história de amor (que caminha a passos largos para a obsessão) quer ver à força a intimidade de uma mulher por quem nutre uma paixão avassaladora. Léon Okrasa (excelente na contenção, Artur Steranko) é um homem triste, com uma noção do real algo atabalhoada, que trabalha no crematório de um hospital - na sequência desta profissão, o início da história aparece estranho.

Aos poucos, fica-se a saber que houve uma violação e que a vítima desse facto é uma jovem enfermeira que trabalha no mesmo hospital. Mais à frente, percebe-se que a mulher de cabelos louros é o interesse romântico deste homem, que aproveita as noites para entrar no seu quarto e contemplá-la longa e ternamente. E é assim que se cria um amor impossível, em que só um olha, tentando daí extrair uma intimidade forçada.

As cenas agenciam-se de forma mais expressionista do que cronológica. Algo que aumenta a intensidade de uma obra que se inscreve precisamente no território das emoções, dos afectos desesperados e que precisa do olhar para concretizar o amor. No meio desta panóplia de sentimentos e actos proibidos, o final não pode ser pacífico...

Já em ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, a missão era hercúlea: adaptar o romance aparentemente inadaptável que é a obra de José Saramago. O brasileiro Fernando Meirelles disse sim e seguiu em frente num dos mais arrojados projectos dos últimos tempos... A história de Saramago parte de uma cegueira colectiva para ajudar a reflectir sobre a Humanidade. Pois bem, o filme capta inteiramente essa essência e dá-lhe uma força conotativa justamente por passar a mensagem em imagens.

Para lá das diferenças entre um livro e um filme, a obra resolve a problemática da cegueira muito bem, expõe todos os medos e inseguranças, transmite a degradação com particular atenção e mostra as personagens assumidas com particular sentido dramático, graças aos esforços de um painel de actores talentosos - com natural destaque para a virtuosa Julianne Moore, uma das actrizes de primeira linha que ainda gosta de arriscar... E é pela personagem da mulher do médico que a problemática do olhar ganha outra dimensão, dado ser ela a única que vê numa terra de cegos. E não, ela não é rainha: é antes a única (naturalmente, além do espectador) que vê as últimas consequências do que é agir sem ver e pior - pensando que mais ninguém o vê!

Apesar das múltiplas críticas, a obra é sólida e faz jus ao património literário de Saramago. Assim, e apesar de serem projectos distintos, estes dois filmes têm algo que os une: fazer pensar sobre os limites do olhar. E eles não são assim tão estreitos.

4 NOITES COM ANNA
De Jerzy Skolimowski (2008)
* * * *
O produtor Paulo Branco continua a saber escolher os cineastas com quem escolhe trabalhar. É certo que Skolimowski estava parado há algum tempo, mas o modo soberbo como constrói planos, ambientes e desmonta os cânones dos afectos tornam este trabalho num dos mais sólidos deste fim de ano. É um belíssimo tratado de amor e sobre até que ponto a ingenuidade pode ser perversa. Da Polónia chega-nos um conto desencantado. Que mostra os tormentos de um homem que quer apenas ser aceite.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
De Fernando Meirelles (2008)
* * * *
Foi o filme-polémica deste último trimestre, mas merecia mais apoio. O realizador brasileiro de «Cidade de Deus» continua a mostrar talento e vontade em elevar as imagens para um plano pouco coincidente com as regras de Hollywood. E é isso que se volta a encontrar nesta tocante e merecedora de aplauso adaptação do romance de José Saramago. «Ensaio Sobre a Cegueira» é um apelo aos sentidos, ora grotesco ora sensível. Muito bom tecnicamente, tira ainda partido da força da natureza que é Julianne Moore.

Sem comentários: