10 de outubro de 2006

Os génios morrem à fome

Uma das razões para o fascínio do cinema é a sua capacidade em surpreender sempre. Ou seja, quanto mais embrenhados estamos no reconhecimento de cinematografias, estilos,"nuances" de movimentos e tendências cronológicas, logo vem uma obra baralhar tudo por estar esquecida, um facto que nunca tínhamos ouvido falar ou até mesmo a noção de que quanto mais se conhece mais vontade se tem em ir mais longe e perceber o quão pouco se conhece. Apesar de ter ainda muitas falhas no meu património de referências cinematográficas, esta sensação ocorreu-me há poucos dias, quando dei por mim a relembrar uma outra faceta de Orson Welles, o colossal "Citizen Kane", que entrou na indústria de cinema como potencial génio, com apenas 24 anos de idade e não se conseguiu desviar do estigma de que "o génio morre à fome", terminando cedo a sua carreira nos clássicos e perdendo-se nas últimas (e penosas...) décadas da sua vida, marcadas por projectos impossíveis e inacabados, além de prestações sofríveis como actor -- ficou famosa a sua "voz off" num anúncio televisivo de comida para cão, como símbolo da sua decadência artística... Por isso, causou-me surpresa a obra misteriosa, de 1971, chamada Malpertuis. Neste conto surreal sobre homens e deuses, Welles tem um breve mas intenso desempenho como o patriarca de uma estranha família que, horas antes da sua morte, se reúne para conhecer o destino da sua herança. Mas nesta obra de Harry Kümel o efeito de perturbação é mais forte e a aura envolvente desta história oscila entre o sobrenatural e a reflexão cínica sobre as relações familiares... E assim se descobrem pequenas pérolas que, apesar de algumas fragilidades, valem enquanto objecto-símbolo de uma carreira e reflectem muito bem a queda do mito de Welles, aqui gordo e envelhecido, a sucumbir ao seu engenho.

Pecado do Dia: Soberba

Candidato à Palma d'Ouro de Cannes em 1971, Malpertuis apresenta-nos um universo onírico, que se reflecte na própria montagem expressiva, para nos contar a epopeia de Jan (Mathieu Carrière) no contacto com a sua estranha família, dividida com a morte do seu patriarca e o compromisso de aceitar as condições para ficar com uma avultada herança. Aqui respira-se uma atmosfera propositadamente densa, de contrastes, com momentos de profundo ruído visual para depois apostar em planos mais intimistas. Nada é ao acaso, apesar de alguns cortes abruptos no seguimento do filme. Mas, em Malpertuis, tudo se entranha pelo teste imagético às noções de divino/humano e que culmina num dos finais mais bizarros da história do cinema recente. Iconoclasta e perturbante, esta co-produção alemã e francesa conta ainda com Welles, esse "monstro" que se quer imortal, aqui numa alusão profunda à sua fase mais decadente. * * * *

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