28 de março de 2007

NA SALA ESCURA: Berlusconi à sombra de um melodrama

IRA. «Sou o Jesus Cristo da política. Sou uma vítima paciente, confio em toda a gente e sacrifico-me por qualquer um.» Sílvio Berlusconi é, à semelhança de George W. Bush, um coleccionador de citações tão bacocas quanto desproporcionadas perante os tempos mediáticos de hoje em que a mais inocente gafe se dissemina pelos múltiplos canais transmissores de mensagens... Mas a figura de Berlusconi, magnata dos media que dirigiu os destinos da Itália até ser substituído por Prodi e moldou as leis a favor dos seus negócios menos claros além de apostar pela via política do populismo anedótico, gerou ódios. Entre a esquerda mais enervada com a passagem voraz do político pelos destinos de Itália, conta-se a presença activa de Nanni Moretti. E o cineasta decidiu transpor o seu desdém e revolta contra Berlusconi através de um filme... Um filme que entra dentro de um filme. Um anti-herói que quer manter-se à tona de uma indústria à custa de outro anti-herói. Um melodrama mascarado de sátira política, consumido por ela. Uma provocação que nunca o chega a ser, apesar de, ao vermos o próprio Moretti a vestir a pele de Berlusconi no final do filme, sentirmos que esta é a maior provocação de todas... O CAIMÃO é sobre tudo isso: os paradoxos de uma política canalizada pelos ecrãs de televisão, embora os ímpetos mais críticos sejam desfigurados pela acção (aparentemente secundária, mas que rapidamente se torna o foco principal desta história premiada em Cannes...) do produtor «série Z», um Ed Wood à italiana, Bruno (excelente Sílvio Orlando) que se tem de confrontar com um divórcio. E o processo de falência por ser um produtor fracassado que condensa as suas esperanças na jovem realizadora Teresa (Jasmine Trinca), que lhe apresenta um argumento prometedor. Trapalhão e pouco atento, Bruno vai descobrir que a maior fragilidade do projecto que lhe pode restituir a glória cinematográfica é o facto da história se centrar em Berlusconi... o político que toda a gente odeia, mas que no fundo votou nele. Nanni Moretti constrói, desta vez, uma obra de múltiplas linguagens, um jogo de espelhos em matéria de registos narrativos, mas compromete a sua polémica aversão crítica a Berlusconi com o melodrama genuinamente cómico que elabora com o dom já exposto em QUERIDO DIÁRIO e O QUARTO DO FILHO. O que até nem é má opção, dado que evita exercícios de propagandismo exacerbado, à semelhança do que fez Michael Moore em FAHRENHEIT 9/11... Apenas compromete a abordagem de desconstrução do «mito» Berlusconi e o embrulha numa intriga familiar. Ainda assim, este filme revela-se uma original proposta dramática, com brilhantes momentos e uma descrição sensível dos antagonismos contemporâneos da política, do cinema e do próprio insustentável peso da consciência!

O CAIMÃO * * * *
A polémica sentiu-se em todo o lado, mas parece ter-se esfumado quando se vê o resultado final. A última obra de Moretti é até levemente complacente com a postura caricatural de Berlusconi - excepto no brilhante final exposto a negro... com o próprio Moretti como protagonista. Fora isso, o filme oscila entre o documentário fragmentado de uma rodagem comprometida com o melodrama genuinamente realista de um homem que tem de lidar com o divórcio e lutar para manter vivo o afecto dos filhos. Esta pouco vista visão masculina da separação é uma das mais-valias deste pseudo-exercício de farsa política (a maior de todas!) que, embora falhe a análise incisiva sobre o fenómeno Berlusconi comprova o talento de Moretti para alargar as fronteiras narrativas e emocionais do seu cinema. Uma deliciosa e incómoda surpresa, que demorou tempo de mais a chegar às nossas salas.

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