25 de março de 2007

DVD: Era uma vez um país

SOBERBA. «Sempre que estou a rodar um filme, quero matar-me. Porque nunca vejo a luz ao fundo do túnel.»Palavra de Kusturica! Os seus filmes são sempre um caleidoscópio de sensações, com uma forma de fazer cinema que não se impõe com suavidade, invade a percepção do espectador sem pedir licença e mostra ao que vem sem pinga de contenção. Foi assim com «A Vida é um Milagre», «Gato Preto, Gato Branco» (até hoje o maior sucesso em salas nacionais do realizador nascido em Sarajevo, com mais de cem mil espectadores) ou UNDERGROUND. E é precisamente este o filme, que revi recentemente em DVD (depois de uma recente campanha publicitária resgatar a música de Goran Bregovic e as minhas memórias cinéfilas do cinema de Kusturica), mais celebrado da sua carreira por representar uma catarse do seu estilo e aglutinar todas as suas influências artísticas, que vão de Shakespeare a Fellini, sem esquecer o burlesco dos Irmãos Marx. A história é grandiosa porque se propõe a contar em cerca de duas horas e meia os rumos conflituosos da Jugoslávia desde a II Grande Guerra até à década de 90. Pelo caminho ficam alusões aos receios da guerra fria, ao comunismo, aos conflitos internos de uma Jugoslávia desmembrada, às vidas duplas de quem sobrevive com negócios duvidosos. Para tal, Kusturica escolhe o percurso de Marko (Miki Manojlovic) e do seu amigo Blacky (Lazr Ristovski), que trabalham no mercado negro, e que decidem resistir à invasão nazi. Alojam-se numa cave onde, durante uma série de anos, passam a viver em comunidade com uma série de personagens bizarras e onde Kusturica aproveita para explorar ao máximo as contrariedades de uma sociedade em constante desintegração. Há ainda um enorme segredo a dividir os dois amigos relacionado com a clausura e a passagem súbita pelo melodrama (na parte final do filme) que tornam a obra num símbolo da relação amor-ódio que Kusturica nunca escondeu nutrir pelo seu país. Neste caos permanente que, mesmo assim, parece encontrar a sua ordem, surge a festa, a noção de celebração bem presente também em «Gato Preto, Gato Branco» e um olhar para a consciência de pessoas a testarem a lucidez por se estar a viver num clima de guerra – neste ponto, o cineasta sempre admitiu que a zona dos Balcãs é recheada de pessoas com talento a nível intelectual mas que nunca se entendem assim que se juntam. É por isso que, em UNDERGROUND, se monta um verdadeiro circo à medida das grandes obras de Fellini, dada a colisão entre excentricidade e naturalismo. Depois de UNDERGROUND, que se estreou nos cinemas em 1995, Kusturica ponderou deixar o cinema – a experiência foi limite e, desde este filme, que o seu estilo se aligeirou e parece aprofundar ainda mais a alucinação cómica e as temáticas shakespearianas. A mistura de luz e sombra deste retrato da Jugoslávia não se voltou a repetir. Mais uma razão para relembrar UNDERGROUND com carinho.

UNDERGROUND * * * * *
O dom manipulador e o “à vontade” com que Kusturica domina a câmara, os actores, os cenários e tudo mais pressentem-se logo nos primeiros minutos, com a sublime sequência do bombardeamento no Jardim Zoológico. Animais à solta e expectativas também para tudo o que se segue, que é não só uma lição de cinema desprendida de espartilhos técnicos e dramáticos mas também um teste à versatilidade digna de génio por gerir um sem número de pequenas situações que, no seu todo, nos dão a percepção clara de como os absurdos da vida até fazem sentido. E ajudam a resgatar um país da decomposição e do esquecimento. A edição em DVD com extras possui uma apresentação cuidada no que concerne à qualidade audiovisual e o material adicional circunscreve-se a artigos e dossiers de imprensa, filmografia do realizador (compatíveis apenas com DVD Rom). Ainda não é a edição que esta obra, a segunda Palma D’Ouro de Kusturica depois de «O Pai Foi em Viagem de Negócios», de 1985, merece, porque, de facto, a obra é uma lição de história distorcida sobre o rumo de um país – e, em particular, de uma cidade, Belgrado – ao longo de cinco décadas.

1 comentário:

Carlos M. Reis disse...

Uma obra maravilhosamente excessiva e deliciosa. Seja qual for a nossa opinião sobre a sua visão facciosa da História, este é talvez o melhor filme do talentoso cineasta, um glorioso exemplo de "mise en scène" aliado a uma visão cómica que está constantemente a exceder a sua própria hipérbole.

Cumprimentos.