16 de agosto de 2006

A identidade, essa noção desconhecida

Os filmes de Woody Allen são como aqueles CDs velhinhos, com o "booklet" dobrado nas pontas, que teimam em não sair da aparelhagem. As comédias fazem sorrir a cada novo visionamento, os diálogos decoram-se como citações de um livro de cabeceira, as piscadelas de olho ao surrealismo encaram-se como apelos à criatividade. A carreira de Woody Allen - mesmo a fase mais ligeira dos seus primeiros e derradeiros filmes, com excepção do negro Match Point - é um vício cultural e o coleccionismo em torno dos DVDs das suas obras traz sempre um pequeno rombo no orçamento mensal e uma passagem atenta às prateleiras dos videoclubes. Ainda há grandes lacunas nas edições nacionais de fitas mestras - onde páram as versões portuguesas de clássicos como A Rosa Púrpura do Cairo, Os Dias da Rádio ou O Herói do Ano 2000? Um dos casos mais flagrantes é Zelig, uma das obras mais interessantes e antigas de Woody (o ano de produção é 1983), que só nas edições importadas da Fnac ou da Amazon se pode encontrar. É uma ficção disfarçada de documentário, sobre um homem que apresenta um curioso distúrbio físico-emocional: transfigura-se em função da pessoa com quem está. O resultado é genial e, apesar de ainda não o ter em formato digital, gosto de rever em VHS e até passou há pouco tempo no Canal Hollywood. De resto, há imagens que ficam impregnadas na mémória. Mesmo as que duram quase hora e meia.

Pecado do Dia: Avareza

Ainda ao lado de Mia Farrow, Woody Allen construiu uma pequena obra, com uma contenção de
meios impressionantes, mas reveladora do seu estilo desconstrutor da identidade. Aqui esta noção é levada ao extremo e assume contornos de fábula, dado que Zelig (Allen) é uma personagem que literalmente se metamorfoseia em função do universo exterior, anulando-se completamente. O seu caso - "cientificamente" espantoso - é apresentado como aberração à semelhança de "Homem-Elefante". É então que entra em cena Mia Farrow na pele da psicanalista que se oferece para entender o bizarro episódio contado em forma de lenda e apresentado segundo os moldes do documentário televisivo dos tempos a preto-e-branco, com imagens granulosas e tudo. Os efeitos especiais são enternecedores por serem tão comedidos, as mutações do protagonista têm, muitas vezes, efeitos perversos de crítica política (a transformação de Zelig em judeu é bom retrato disso mesmo). Mas é a identidade que está em jogo, essa noção complexa e que seria, mais tarde, explorada por Woody das mais diversas maneiras. Em Zelig, o extremo faz sentido e o cineasta que melhor retrata Nova Iorque parece fazer jus à noção de "persona", termo grego de onde vem o conceito de "pessoa" mas cujo sentido original é "máscara". * * * * *

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