14 de agosto de 2006

Idiossincrasias da Palma D'Ouro

Diz-se que é o maior festival de cinema do mundo, não só porque se estende por vários dias, mas também porque os cineastas mais requisitados de todo o mundo aceleram os processos de pós-produção das suas últimas obras para marcarem presença na programação do evento que deu prestígio à vila francesa de Cannes. Quem se sai bem na competição, pode esperar boa exibição nas salas e, quem sabe, chegar ao grupo de finalistas das estatuetas douradas de Hollywood. Uma Palma D'Ouro não tem o reconhecimento mediático de um Óscar, mas é um galardão aparentemente menos redutor, mais sensível a outras nuances artísticas e aberto às cinematografias que nem sempre possuem o idioma inglês como forma de expressão primordial. Costumo estar mais ansioso pela estreia nas salas nacionais do último filme que foi premiado em Cannes do que o que venceu o Óscar de Melhor Filme (nas estatuetas douradas, prefiro quase sempre os filmes que receberam os prémios para Melhor Argumento Original e Adaptado). Mas se há coisa que a Palma D'Ouro não é, é isenta e, influenciada pelo espírito do seu júri variável, costuma realizar algumas escolhas dúbias e temperamentais - exemplos? Quando Quentin Tarantino presidiu ao Festival de Cannes, o Grande Prémio foi para Fahrenheit 9/11, o panfleto político mascarado de documentário de Michael Moore que, apesar de interessante, não era de todo um objecto de cinema sólido - talvez o seu carácter híbrido seja a sua marca mais interessante. Este ano, com Wong Kar-Wai na direcção do júri, a escolha recaiu sobre Uma Brisa de Mudança, de Ken Loach, que já se estreou há um par de semanas nas salas nacionais. Belo e de tonalidades clássicas, este drama sobre as convulsões políticas do IRA é um claro e rico objecto de cinema, mas a sua mensagem política parece sobrepor-se às suas ambições artísticas. O meio é a mensagem, já dizia McLuhan. A Palma D'Ouro de Cannes parece apostada num cinema de causas, deixando por vezes o bom cinema atrás das costas. Mas, no fundo, a ambiguidade dos filmes também passa por aqui.

Pecado do Dia: Ira

O cineasta Ken Loach constrói o seu Brisa de Mudança como um complexo mosaico sobre o absurdo da guerra, testando as convicções humanas de quem mata pela indepêndencia de um pedaço de terra. Ao centrar-se na Irlanda dos anos 20, que luta contra a invasão britânica, cria um retrato denso em que a violência era cometida com a inexorabilidade da Inquisição medieval. Pode parecer, a espaços, grotesco e maniqueísta, mas há um realismo incómodo e manipulador que, apesar de desconfortável, se encaixa na mensagem pacifista que se pretende passar. O actor Cillian Murphy lidera um elenco intocável de homens movidos por convicções que as levam até às últimas consequências. Apesar de demasiado cru e nem sempre muito objectivo, Brisa de Mudança é tocante, tem uma belíssima fotografia e faz-nos perceber que o cinema também é um jogo expressivo que tanto pode ser um entretenimento aprazível como produtor de um nó na garganta do espectador. A guerra dos anos 20 por um pedaço de terra é cruel. Mas, mais de oitenta anos depois, as interrogações mantêm-se. * * *

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