Neste Verão que já se revelou demasiado gélido para a cultura mundial (as mortes de Bergman e Antonioni assim o comprovam), eis que um dos vultos mais respeitados e criticados da cultura nacional conhece um fim. O que é mais estranho nisto tudo é que eu também o conheci, superficialmente é certo, na relação distante entre professor-aluno de uma turma de cem alunos ainda confusos sobre o que querem do futuro. Porém, Eduardo Prado Coelho tinha o dom de parecer o velho amigo lá de casa, o tio culto que aprecia frivolidades, o intelectual que gosta de se aproximar do senso comum. As suas aulas de Cultura Contemporânea foram das mais livres e espontâneas que tive em todo o curso, porque Prado Coelho dava-as em jeito de conversa, testemunho intimista ou pedagogia dissimulada pelo conforto das palavras. E é assim que o recordo: de alguém muito conhecedor, mas também muito afável, bem disposto e nada hermético. No final da cadeira, o exame era um trabalho de tema livre para explorar, em jeito de recensão. E eu, claro, com o bichinho do cinema já a fazer-me cócegas pelo corpo, tinha de desembocar em Woody Allen. E escolhi uma das minhas obras preferidas que, sem o saber, colavam na perfeição com o rasto que EPC deixa em todos nós: AS FACES DE HARRY. Para quem sabe de que filme se trata é a história cómica de um escritor que se vê confrontado (literalmente) com as personagens dos seus livros - que são abstracções da sua experiência. Como se sabe, EPC vivia para os livros e também terminava sempre uma conversa a recordar um excerto de um romance, a citação de um ensaio sobre o estruturalismo ou a mera crónica encontrada no jornal lido durante a manhã. É isso que recordo de EPC: a palavra. E o seu confronto com ela. Talvez um dia publique aqui a minha dissertação sobre AS FACES DE HARRY, dado que a conservo comigo. Ou talvez não. O que sei é que sempre que pensar em EPC me vou lembrar de Woody Allen e das suas neuroses literárias. A cultura nacional está mais pobre. Intelectualmente, mas também em emoção.
2 comentários:
É incrível que ao lermos a mesma crónica, do João Miguel Tavares no DN, fixámos a mesma frase!!
Abraço!
Sim, provavelmente por isso e
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