3 de novembro de 2007
O cinema em meia dúzia de pinceladas
INVEJA. «Este é um mundo que se está a tornar progressivamente pior. Podemos concordar ao menos nisso?» BARRIS (Robert Downey Junior)
O futuro. Quantas visões já tivemos dele? Por que será que o gostamos tanto de o prever mesmo que acabemos sempre submersos na sua onda de imprevisibilidade? A ficção-científica tem ganho prestígio nas últimas décadas porque, quando é bem feita, permite que se criem metáforas e abstracções futuristas que funcionam como crítica ao mundo real, actual.
Além do mais, quando é bem feito, este género ficcional gera novas epifanias no que concerne aos limites do humano, do maquinal e, consequentemente, das coordenadas temporais, espaciais e de valores tão sensíveis como o da identidade. Philip K. Dick é uma autoridade neste campo, até porque muito dos seus contos geraram óptimos filmes no grande ecrã.
A sua escrita descomplexada e as ínúmeras questões éticas que levantava nas suas visões nem sempre muito positivas sobre o amanhã ditaram-lhe uma legião considerável de fãs.
Um deles é também um dos mais arrojados e inovadores cineastas do novo meio independente norte-americano (assim, ao estilo de Gus Van Sant, mas ainda com uma carreira mais desconexa!). Richard Linklater, depois de ter reinventado o romantismo em «Antes do Amanhecer/Antes do Anoitecer», ter experimentado a comédia musical com «Escola de Rock» ou, por exemplo, o western em «The Newton Boys», voltou a fundir cinema com pintura e animação, à semelhança do que fizera no poético e muito interessante «Waking Life».
Porém, em A SCANNER DARKLY - O HOMEM DUPLO, Linklater quis tornar as imagens filmadas inicialmente em imagem real e depois pintalgadas por uma elaborada tecnologia digital numa teoria da conspiração intimista, partindo logicamente do conto homónimo de Philip K. Dick.
E o que fica desta história que gira em torno do poder de vigilância no futuro, misturando isso com o vício em torno de uma droga, é um quadro mais uma vez assente nas personagens e nos múltiplos sentidos que elas vão construindo enquanto se questionam num mundo que é apresentado como sendo daqui a sete anos.
Basicamente, a trama gira em torno de um polícia (Keanu Reeves) que tem como missão investigar a rede de distribuição da substância «D», uma droga poderosa que corrói tudo à volta. No trabalho, usa um fato de camuflagem e câmaras de vigilância, mas rapidamente se percebe que ele próprio não só sucumbe ao poder da droga como pode estar também a ser alvo de inspecção alheia.
Com o seu grupo de aparentes amigos - um punhado de actores bem escolhido de onde se destacam Robert Downy Jr. e Winona Ryder - , o protagonista vai sentir na pele a incerteza quanto à identidade e viver momentos de pura introspecção desperdiçada, quase ao jeito de alucinação digna de um adepto do psicadelismo.
Brilhante esteticamente e multisensível, A SCANNER DARKLY é algo hermético e precisa de ser visto mais de uma vez. Com múltiplas texturas argumentativas a despontar, o filme não deixa de ser ele próprio um convite à alucinação dado o arrojo gráfico. No fundo, uma hipótese para filme de ficção-científica para quem desdenha naves e efeitos especiais mainstream. Aqui,as grandes explosões dão-se ao nível da consciência. E Richard Linklater usa e abusa dessa constatação.
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