20 de janeiro de 2009

NA SALA ESCURA: A vida em função do tempo

ESPECIAL DAVID FINCHER
INVEJA. «A vida define-se pelas oportunidades... mesmo aquelas que se perdem.» BENJAMIN BUTTON (Brad Pitt)

O cinema é, na sua essência, uma distorção temporal, ou melhor, uma experiência que subverte em nome de uma intenção o ritmo inexorável e rotineiro dos ponteiros do relógio. É certo e sabido que se consegue condensar uma vida ou as vidas de muita gente em pouco mais de hora e meia, quando esse tempo (por si só!) não é mais do que uma ínfima parte da existência - segundo consta, a média da vida humana faz-se de qualquer coisa como 650 mil horas...

Em O ESTRANHO CASO DE BENJAMIN BUTTON o modelo aplica-se, dado que se fica a conhecer a vida de uma personagem única em cerca de duas horas e meia. Mas a forma como se questiona o tempo é elevada ao extremo e com particulares efeitos em matéria de reflexão sobre como nos moldamos em função de segundos e como, por mais voltas que se dê, há uma evolução, uma ordem, um sentido para as coisas. A não ser que se seja Benjamin Button e aí o sentido é completamente distorcido.

É disso que nos fala esta poderosa adaptação do conto de F. Scott Fitzgerald, da capacidade de pensar uma vida que comece pelo fim, ou melhor por um princípio alternativo que é precisamente a velhice. E se o tempo, ao andar para a frente, não comportasse o desgaste do corpo mas antes a sua reabilitação? Se as rugas dessem lugar ao acne e não o inverso? Se a calvície avançasse para a farta cabeleira? Se a fraqueza terminasse em vigor? É algo contraditório com o princípio da oxidação de tudo o que é orgânico mas é também uma premissa de génio que possibilita reflectir sobre como se ajustam os valores e as intenções perante estas circunstâncias.

E assim chegamos a uma forma peculiar de apontamentos existencialistas até porque o protagonista desta prodigiosa metáfora se relaciona e afecta vidas de pessoas «normais». Quem é defensor de que a existência devia começar pelo fim e terminar no colo da mãe não sabe ao certo nas implicações que isso cria e é essa toda a força de O ESTRANHO CASO DE BENJAMIN BUTTON.

A profundidade das questões que o filme levanta podia ser facilmente desmascarada pelas incongruências que à primeira vista podem surgir mas a obra mais recente de David Fincher é sólida como um rochedo no modo peculiarmente sensível como descreve a vida imaginária de alguém que se rege por coordenadas antagónicas da vida real. E o cineasta faz bem em envolver a história num certo tom de fantasia humanista, da qual esperávamos ver Tim Burton dirigir, mas nunca o realizador que reinventou o thriller, decompôs o suspense e até psicologizou o policial.

Sim, David Fincher acerta em todas as frentes no território do melodrama e aceita com habilidosa criatividade também repensar a história de amor, que aqui surge e se desenvolve da maneira possível face aos constrangimentos cronológicos.

O ESTRANHO CASO DE DAVID BUTTON pode ser acusado de ser excessivamente polido, académico, xaroposo. É-o até à medula. Mas, neste caso, e como em poucos outros como, por exemplo, «Forrest Gump», a contenção e a rendição perante modelos narrativos e estéticos seguros é admirável porque é necessário recorrer a estes mecanismos para se captar a mensagem. E que, neste caso, ganha espessura graças à inversão temporal do protagonista.

É assim que se percebe o sentido daquele beija-flor que surge no final da história, do temporal omnipresente na acção que se quer valer no presente, da narração que dá excessiva cor a esta fábula. São emotivos mas necessários.

Outra dificuldade nesta missão em contar uma história de alguém que vive de trás para a frente é a gestão dos efeitos especiais. É certo que estes em uma ou outra ocasião se sobrepõem ao drama, mas até aqui David Fincher consegue equilíbrio perante o assombro que é ver um contido Brad Pitt rejuvenescer... Ou uma Cate Blanchett inabalável com quase um século de idade, numa cama de hospital.

Belo e consciente das suas premissas, O ESTRANHO CASO DE BENJAMIN BUTTON é uma hipótese séria de melodrama, que repensa e desfaz o mito da eterna juventude. Não, não é do medo de crescer de Peter Pan que aqui se trata... É algo que é de uma disfuncionalidade atroz e que por isso só podia dar uma grande história.

Neste ano que agora começa, este favorito para os principais prémios da Academia (de certeza absoluta!) é um filme que já se inscreve na história do cinema. O ESTRANHO CASO DE BENJAMIN BUTTON é já um dos grandes de 2009. E mais um ponto alto na carreira de David Fincher. O cinema não tem segredos para ele!

Outra crítica AQUI

O ESTRANHO CASO DE BENJAMIN BUTTON
De David Fincher (2008)
* * * * *
A vida de Benjamin Button é única: nasce velho e vai rejuvenescendo à medida que os anos passam... É esta a base sólida deste filme de David Fincher, que opera aqui uma viragem na sua bem-sucedida carreira. Mas o realizador de Clube de Combate não hesita perante o melodrama e dá forma a uma das mais desconcertantes histórias de amor do cinema recente. Tudo sobre o espectro da temporalidade e dos seus efeitos em personagens que seguem em direcções opostas. A força desta fábula moral está também na excelente direcção de actores (Brad Pitt e Cate Blanchett são irrepreensíveis), na gestão dos efeitos especiais, na fotografia, no cuidado de articular histórias que até possuem especifidades gráficas, nos diálogos sensíveis. Enfim... na vontade em preencher de pequenas subtilezas uma história que possui em si uma força extraordinária e que levanta inúmeras questões. Às quais David Fincher responde com óptimo cinema.

1 comentário:

emot disse...

Estamos 100% de acordo, e olha que andava já um bocado desiludido porque tenho ouvido e lido críticas pouco positivas e entusiásticas relativamente ao filme - um pedaço de cinema ENORME, diga-se.
abraço