22 de junho de 2007

Alguém falou em «sexploitation»?

LUXÚRIA. «Prefiro ir jogar às cartas se não tiver uma mulher com mamas grandes nos meus filmes.» RUSS MEYER

«O filme que está prestes a ver não é uma sequela de Valley of the Dolls. É totalmente original e não tem nenhuma relação com pessoas reais. Vivas ou mortas. Aborda, tal como Valley of the Dolls, o mundo muitas vezes diabólico do espectáculo, mas numa época e contexto diferentes.» O aviso é feito logo nos primeiros frames de O VALE DAS BONECAS II, num genérico tão estranho quanto sugestivo. Que é como quem diz, o espectador está prestes a entrar no universo bizarro e kitsch de Russ Meyer. Famoso pela abordagem despudorada da sexualidade, com protagonistas femininas de saias curtas e seios enormes, Meyer ficou para a história do cinema como um dos seus grandes iconoclastas, que viu a sua oportunidade de brilhar com filmes Série B à medida que o soft core foi ganhando espaço nas salas escuras, nos oscilantes anos 70. Agora que o projecto GRINDHOUSE, de Tarantino e Rodriguez, se aproxima dos cinemas nada como recordar a génese de um estilo cinematográfico aparentemente menor que inspirou esta dupla revivalista. Dentro da cinematografia desbragada de Russ Meyer, onde abundam histórias desconexas, com apetência pelo mau gosto, insinuações de orgias, droga, música pop-rock com o glam à espreita e sempre uma extensa colecção premeditada de clichés, o culto foi-se solidificando com o tempo, como é habitual quando se fala na fronteira entre o genialmente satírico e o puro lixo – num estatuto comparável aos esforços que John Waters tem tentado recuperar, como em Um Filme Indecente. A sua perversão cinéfila já foi apelidada de sexploitation e deu frutos em títulos como Faster Pussycat Kill! Kill! ou no título recentemente lançado em DVD (numa edição de dois discos), O VALE DAS BONECAS II. Livremente baseado na obra literária «The Valley of the Dolls», da autoria de Jacqueline Susann, este musical mascarado de comédia sexual, com reminiscências do cinema negro de Roger Corman, da literatura pulp, dos filmes blaxploitation e até de uma certa encenação descabida “à la Ed Wood”, é um caso de puro delírio visual, onde a história é um pretexto primário para fazer mover (literalmente) os protagonistas. Ao descrever as peripécias de uma girl band por Los Angeles, que depois se transforma numa conquista por uma herança, Russ Meyer não se esforça minimamente por dar espessura ao trio protagonista: prefere mostrá-lo (segundo a sua célebre montagem de mudança de plano “num abrir e fechar de olhos” para criar ilusão de movimento). Seja frente ao espelho a mudar de roupa ou nos lençóis com uma companhia inusitada, o que se pressente é o reflexo da subcultura hedonista dos anos 70, motivada pela mediatização do cinema pornográfico nas grandes salas. Talvez por isso O VALE DAS BONECAS II respire sexualidade por todos os poros e culmine numa tragédia de inspiração shakesperiana, dando novo vigor ao conceito de liberalização fílmica, com direito a inúmeras cenas de antologia (a do revólver na boca de uma das personagens é uma delas). Antigo fotógrafo da Playboy, Russ Meyer resolveu arrastar a nudez para o cinema e dar-lhe um tratamento (pseudo)artístico. Falecido em 2004, o seu percurso irregular (ensinado em muitas universidades de cinema e prestes a ser adaptado ao grande ecrã pelo realizador Rob Cohen) é bem recordado nos extras que complementam o DVD de O VALE DAS BONECAS II. Além de testes de gravação com os actores, depoimentos, galeria de imagens e trailers, esta edição é rica em documentários, como aquele em que o elenco refere as suas cenas preferidas e tenta classificar O VALE DAS BONECAS II. A resposta mais assertiva ilustra a ambiguidade da obra: um “rock-horror-exploitation-musical”.

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