2 de outubro de 2007

Morrer numa terra cheia de vida







AVAREZA.
«E se Deus me desse um claro sinal de que existe? Tal como fazer um depósito generoso em meu nome num banco suíço!» WOODY ALLEN

Nos últimos anos, o cinema com sotaque espanhol tem sobressaído para lá das ficções de cordel de Pedro Almodóvar. Se, por um lado, os cinéfilos começaram a prestar mais atenção à produção sul-americana – casos de México, com a revelação de Gael García Bernal em «Amor Cão» ou «O Crime do Padre Amaro», ou Argentina, nas deambulações emotivas da realizadora Lucrecia Martel –, a própria indústria espanhola tem procurado reinventar-se com géneros de pouca tradição.

Os exemplos sucedem-se e vão do musical, no delicioso «O Outro Lado da Cama», à sátira desbragada aos western-spaghetti¸ como sucedeu no recente «800 Balas».

Em MORRER EM SAN HILÁRIO, é a farsa de tónica quase medieval ao culto dos mortos que domina, centrando a acção numa pacífica aldeia – a que dá título ao filme e que é descrita como um lugar onde ninguém sabe bem onde fica mas que se acaba sempre por ir lá parar – que se encontra na penúria devido aos «tempos modernos».

A razão para a depressão dos seus habitantes deve-se ao facto de, desde a invenção higiénica das agências funerárias urbanas, a principal fonte de rendimento, que são os faustosos funerais e cultos sepulcrais, se encontrar votada ao abandono e em plena decadência. A chegada de um misterioso forasteiro, Piernas Gierman (Lluís Homar), a este território inóspito permite à população recordar velhos tempos ao preparar, por engano, o seu enterro.

Com um ponto de partida rebuscado como este, MORRER EM SAN HILÁRIO já tem o mérito de, pelo menos, merecer a descoberta
(a fita, apesar de ter despertado a atenção em Espanha, estreou-se no mercado nacional directamente para DVD, numa edição sem extras além do trailer). Porém, vai muito além por tirar o melhor partido do defunto por antecipação que é, afinal, um delinquente vítima de uma troca de identidade.

E por descrever a rotina da bizarra população com um peculiar sentido de acutilância satírica a lembrar as pormenorizadas narrativas queirosianas.

O resultado final não pretende ser tão sério quanto o tema que convoca, explorando o ritual da morte nas múltiplas vertentes sujeitas ao riso sem desembocar nas armadilhas do humor negro mais primário.

A cena em que o protagonista contempla a janela do quarto onde vai ficar hospedado até à data combinada para a morte chegar, com uma vista para o adorado cemitério local, demonstra que a realizadora catalã Laura Mañá soube tirar partido da prometedora premissa da história para a articular com noções cinematográficas interessantes.

MORRER EM SAN HILÁRIO não é, contudo, isento de fragilidades, até porque decide apostar, perto do final, por um registo mais dramático (que colide com o tom satírico erigido anteriormente). Mas deixa no ar a forma como se pode aligeirar um tema que, por exemplo, a multipremiada série «Sete Palmos de Terra» explorou numa outra componente mais densa e tradicional. Na verdade, a morte pode ter graça. A população excêntrica da bizarra aldeia de San Hilário agradece.

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