10 de julho de 2007

NA SALA ESCURA: As vísceras do dia-a-dia

GULA. «Talvez o possamos definir, não como um filme de terror, mas uma ópera de terror.» JOÃO LOPES in Cinema 2000

Para quem se queixa que as salas de cinema nacionais são cada vez mais invadidas pelo mesmo tipo de cinematografias, nomeadamente os blockbusters do costume, esta bizarra proposta austro-húngara é talvez um dos mais inclassificáveis projectos alguma vez estreados entre nós. E, só por isso, já merece atenção. Trata-se de uma alegoria excessiva, marcada pela crueza da carne, que propõe um olhar enigmático e disruptivo sobre o sentido da vida. TAXIDERMIA é ambicioso, caótico, extremo, desconfortável, grotesco, visualmente repelente, mas inventivo e extremamente dinâmico. Ao decidir contar três gerações marcadas por um dantesco sentido carnal da existência, o realizador György Palfi cria um transgressor objecto que é até difícil de expor em termos narrativos. Se começa como um burlesco retrato de um homem que vive num curral e simula fantasias excessivas com as mulheres da casa, rapidamente passa por uma ode crítica ao comunismo e ao seu predomínio no Leste graças à história seguinte de um homem que se torna campeão na arte de comer até rebentar e que casa com uma mulher com igual dom... No final, é a vida solitária do seu filho, um taxidermista que sonha com o corpo e os limites do impossível que consegue fazer com ele, que ganha forma num dos finais mais impressionantes dos últimos anos. E o que ganhamos com isto tudo? Ganhamos uma experiência cinematográfica única, que nos dá uma visão surrealista e crua da vida, enquanto ironiza sobre as necessidades corporais de cada um. TAXIDERMIA ironiza o corpo, dá-lhe novas fronteiras, cruza-as e trespassa-as com um golpe de faca de talho para nos mostrar que por dentro de cada um há vísceras e um sentido iminentemente caótico em cada um de nós. Só por isso também já vale a pena testemunhar este freak show, embora não seja aconselhável a estômagos sensíveis.

TAXIDERMIA
de György Palfi (2006)
* * *
Deu nas vistas em Cannes e venceu um prémio no Fantasporto, mas a verdade é que esta produção europeia arrasa sensibilidades e corta a monotonia por onde quer que passe. A forma despudorada como lida com o corpo, o corrompe, o desfigura e, no final, tudo parece não passar de uma negra declaração de amor à física visceral do ser humano, é desarmante. TAXIDERMIA merece um lugar de destaque nas propostas mais inventivas e surreais dos últimos tempos, até porque aproveita a sua falta de ligeireza e o seu excesso de choque visual assumido para também extrair críticas à política e às relações afectivas de três gerações distintas. Crise de valores? Emocionais, sim. Mas graficamente muito ousados!

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